Poetas de ampla trajetória, Ricardo Silvestrin e Celso Gutfreind lançaram juntos os livros Metal e Em defesa de certa desordem (Artes e Ofícios, 2013), brincando que perfaziam 100 anos. Para além da soma das suas idades, ao examinar com atenção as obras, nota-se um tom mais reflexivo, próprio do acúmulo de vida, ressalvado o que segue. Não uma suposta evolução linear da sua poesia, desde os primeiros volumes atrativa aos leitores e digna da atenção de poetas e críticos, visto que certamente não há idade predeterminada para, depois da formação inicial, se passar a produzir bons poemas. Alguém já sugeriu, no entanto, que a poesia se tornaria cada vez mais parecida com a filosofia à medida que o poeta se distanciasse da juventude. Aqui, tal sugestão talvez indicasse a predominância desse tom.

Metal, o livro de Silvestrin, "que nem tudo na vida/ é leve", como diz a certo momento, é dividido em dois. A encosta recortada do poema, a primeira parte, contém vários poemas com essa nova reflexividade, ainda que se possa averiguar antecedências. Em Ele já está na idade, um sujeito, por crer que "o mundo não está/ à sua altura", deseja mesmo a morte natural: "acredita que morrendo/ sairá das aparências/ e verá a vida/ em toda sua essência// mero pretexto/ para disfarçar/ sua inabilidade/ de viver o imperfeito/ espelho insuportável/ que o une à humanidade". Permanecem no conjunto, isto sim, o humor e a característica sonoridade, poemas bons para dizer em voz alta, com rimas sonantes ou toantes, aliterações e assonâncias, paronomásias e ecos, ritmos e cortes. Enfim, tudo aquilo que o aproximaria de Bandeira e Leminski, lidos nos primórdios, nem tão-somente com o intuito de trazer informação e redundância de maneira equilibrada, mas também — e muito — para tirar um som do verbo. Até de gerúndio, o horror para certas recomendações, Silvestrin consegue efeito de rima surpreendente, ao intermear finais de verso toantes em /u/, no lépido final do bem-humorado Mais passarinho, para o qual colaboram seis sibilantes aliterações em /s/: "ficam os três/ por segundos/ cantando/como não subo/ saem voando". 

Acervo pessoal, a segunda parte, comporta 42 telas numeradas, como cenas de película. Busca a imagem através das palavras, a chamada fanopéia segundo a classificação poudiana, às vezes com um leve nonsense, e dispensa o apoio rítmico das rimas, a não ser por exceção. Tela 16: "O senhor respeitável, com os cabelos esvoaçantes,/ terno escuro, camisa branca,/ gravata preta,/ óculos de aro também escuro,/ aparenta ter os pés no chão,/ mas os cabelos/ denunciam/ que quer voar".

 

 

 

 

Em defesa de certa desordem, de Celso Gutfreind, pode ser lido como um elogio à mudança, porque propõe uma abertura de cada um à entropia de si mesmo e, principalmente, ao outro, seja este a pessoa amada e desejada ou não. A aludida reflexividade, por vezes oriunda da experiência do psiquiatra, nunca atrapalha a linguagem poética. A Gutfreind agradam as pausas multiplicadoras de sentido ("reteve-a no céu/ da boca"), a repetição de palavras-chave, as similaridades fônicas menos explícitas, os ritmos mais suaves, a dança das ideias e das imagens, os deslocamentos e a metáfora. Noções como música, entrar, poesia dão conta da relação próxima e afetiva: "O músico tem mais chance que o fotógrafo" (Sua majestade o músico), "Foi para um sexo de prosa corriqueira,/ mas um sopro de poesia como sempre/ trouxe beleza ao recinto como nunca.// E, já um segundo antes/ do silêncio derradeiro/ havia símbolo e vínculo". (Prosa poética).

A afetividade concerne à constituição do sujeito pleno e as células não são definitivas:  "A alegria decide se elas morrem/ ou se ficarão vivas – um olhar." (Aula da Fisiologia). Pequenos prazeres e o alívio do outro habilitam: "A morte/ não é/ maciça" (Maciça não maciça). Incrível é quando surge "o homem capaz de sustentar o seu desejo" (Festival). A rigor não se conquista: "Afirmam possuir-se,/ mas a dança o contesta,/ possuem possuem-se/ na menção de trazer/ para si a autoria/ de estado e posição/ como se apenas um/ fosse dono do embate.// No entanto a dança insiste,/ e vem o teatro. Fora/ dali, dentro dali,/ já irreconhecíveis,// um dá o que tem para o outro". (Cerimônia de Posse). Em A sapataria do bairro a desordem é constituinte e vista com alegria: "Dona Alzira anota os pedidos/ com bic ou lápis sem ponta,/ se pedir marido, ela anota", "Buscar mercadoria é devagar,/ pode levar três dias para achar/ o par, e garantir que tem cadarço/ nada adianta, só gera mais silêncio.// Fora da sapataria, o bairro está perdido".

São dois autores a quem une o propósito de fazer algo no mundo com a linguagem poética, ultrapassada a retórica da poesia sem função nenhuma, mesmo sabendo variável essa função a cada instante e lugar, em suma, a cada leitura. Silvestrin aborda o tema em Não me pergunte pra que serve a arte: "De outro modo,/ como conseguiria/ atravessar nove meses/ sem respostas/ para suas perguntas?" Se até Immanuel Kant, que a seu tempo iniciou com isso, e um ex-estruturalista como Tzvetan Teodorov mudaram de ideia, por que seguir aferrado, como já o qualificou Silvestrin, a esse subproduto da Guerra Fria? Gutfreind escreve Em defesa de certa verdade: "Lúdica é o cacete,/ tem utilidade./ Quero com a arte,/ desenhar o corpo,/ nem que o meu corpo,/ esculpir nariz/ e, com a metáfora,/ pôr o músculo pra fora,/ este músculo minúsculo", "Quero a imagética/ receptividade,/ fechar a porta do só". E ainda, Em defesa de certa emoção: "Estou há muitos anos nesse ofício/ E já posso dizer que a arte/ Não é um artifício". O título desta resenha é ele mesmo uma redundância, e quanto mais o seja, melhor: a poesia faz coisas no mundo com a linguagem porque toda a linguagem faz coisas no mundo, ainda que possa fazer mais ou menos, para um lado ou para outro, etc.

Dante Alighieri, ao escrever o verso "Nel mezzo del cammin di nostra vita", que abre a Divina Comédia, evocava um período reduzido. Hoje, para quem tem acesso à saúde e não sofre com a falta de saneamento, urgências ainda não amplamente resolvidas no nosso país, a expectativa de vida pode ser bem maior do que se imagina, ficando próxima ao dobro da idade para quem tem a dos autores. Ou seja, a maturidade de que tratamos acima, se um meteoro desavisado não cair sobre nós, ainda é mero brinquedo de criança. Bom para se ir ainda mais longe com a poesia.

 

 

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Os livros: Ricardo Silvestrin. Metal. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2013.

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Celso Gutfreind. Em defesa de certa desordem. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2013.

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junho, 2015

 

 

 

Sidnei Schneider. Poeta, ficcionista e tradutor em Porto Alegre. Publicou os livros Andorinhas e outros enganos (Dahmer, 2012), Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer, 1999), Versos Singelos/José Martí (SBS, 1997) e Poemas 1987-1992 (Artesanal, 1992). Participa de Poesia Sempre (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2001), O melhor da festa 1 e 2 (FestiPoa Literária, Porto Alegre, 2008 e 2009), Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, Florianópolis, 2011), Poesia Gaúcha Contemporânea (Assembleia Legislativa-RS, 2013) e outras antologias. 1º lugar em poesia no Concurso Talentos, UFSM, 1995; 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu, UFRGS, 2003; Prêmio Açorianos de Divulgação literária, Prefeitura de Porto Alegre, 2008. Membro da Associação Gaúcha de Escritores.

 

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