Confesso que quase cedi à tentação de chamar o Luiz Bras de "Mario de Andrade em esteroides" para conjurar uma imagem simples, mas logo percebi que seria uma tremenda injustiça. É claro que há ecos do Mario de Andrade na obra do Luiz Bras, na ousadia linguística e na transposição de elementos mitológicos brasileiros, neste caso para um cenário de ficção científica (ou talvez, mais apropriadamente ficção especulativa). Mas se a imaginação aparentemente sem limites de Luiz Bras já era evidente de Paraíso Líquido a Máquina Macunaíma (e de forma mais comportada mas não menos genial, em Sozinho no Deserto Extremo), Distrito Federal confirma definitivamente o autor como uma voz sem qualquer paralelo no cenário literário.

 

Já na primeiras páginas, Distrito Federal apresenta uma descrição gráfica de um corpo eviscerado, seus órgãos artisticamente dispostos sobre o piso do salão de festas do ministério da fazenda. Seria de se esperar que o livro fosse simplesmente uma divertida fantasia  de vingança (escatológica, mas inteligente e bem-humorada) contra corruptos. Quem não se lembra dos aplausos entusiasmados no cinema quando o herói do filme Tropa de Elite encheu de porrada um político corrupto? É provável que nove entre dez brasileiros se divertiriam com uma versão literata de Desejo de Matar, onde o Charles Bronson fosse substituído por um misterioso assassino encarnado pelo espírito do Curupira e outros demônios e os membros de gangues urbanas substituídos por corruptos.

 

Mas o livro, com texto sedutor e hipnótico, não só surpreende essa expectativa ingênua. Distrito Federal é tão amplo e ambicioso, que merece uma categoria própria. Não só como experimento estilístico bem sucedido, mas como uma rara distopia futurista que é simultaneamente uma utopia: uma narrativa extremamente clara e divertida e ao mesmo tempo densa e profunda.

 

O tema central do livro, a vingança da natureza devastada contra a corrupção moral e o avanço destrutivo da "civilização cinética" seria um prato cheio para maniqueísmos. Mas é claro que  Luiz Bras é muito mais inteligente do que isso. Se a devassidão humana, a destruição da natureza e a alienação em drogas ou no jogo de RPG online que dá o nome ao livro parecem danar o ser humano além do perdão, as inteli-artis, que deliberadamente se expressam utilizando metáforas corpóreas, nos lembram constantemente da fragilidade da condição humana. Num debate, as inteligências artificiais criadas pelos homens se dividem entre desprezo, pena e admiração por seus criadores. Muitas vezes, essas inteli-artis lembram mais Samantha, a inteligência artificial do filme Her, do que o HAL de 2001. Elas filosofam e se indagam constantemente, tem sede de entender tudo e sabem da dor da mortalidade inevitável ("nascer, envelhecer, morrer" — ou citando Ionesco — "por que nasci, se não seria para sempre?"), da patética ilusão de livre arbítrio dos seres humanos. Sabem, acima de tudo, que diferentemente delas os seres humanos precisam conviver com o permanente medo da morte.

 

Os temas de vingança e justiça também são frequentemente abordados, mas nunca de forma didática ou moralista, claro. Quando um âncora de tevê sugere um vírus cancerígeno que causasse câncer sempre que detectasse um impulso criminoso, o chefe da redação (bêbado, diga-se de passagem) sugere "um mundo melhor, sem crimes e sem câncer, sem vítimas", mas completa: "sonho com um mundo em que todas as pessoas teriam uma microbomba implantada no cérebro. Segundos antes de cometer um crime, seu cérebro implodiria silenciosamente. Puf". Os obtusos vivem discutindo e pontificando sobre justiça, mas cabe aos demônios vingadores, ao Curupira, ao Saci e à pequena-pequeno Maria José Maria (encarnada por um espírito-legião) purgar o mundo, livrar-se do fedor da corrupção e vingar a natureza.

 

De alguma forma, essas entidades revelam que nem toda a dialética do mundo pode resolver a condição humana. O Curupira mata por instinto, guiado pelo insuportável cheiro de podre que emana dos corruptos, seu hospedeiro tenta racionalizar, analisar, entender. Infelizmente, a natureza existe a despeito da lógica. Já a pequena cunhantã-curumim que é macho e fêmea, infantil e sensual,  ingênua e ancestral, é ainda mais mortal.

 

Ainda que a derrocada da civilização cinética pareça uma extrapolação razoável, ou racionalizável, do nosso ímpeto de consumo e temperamento destrutivo, nossas nêmeses são manifestações de forças que estão além da compreensão dos obtusos ou mesmo das inteli-artis.

 

Distrito Federal, escrito na forma musical de rapsódia, com frases curtas  e refrãos, é um livro para se ler várias vezes.

 

Na primeira leitura, pode-se deixar conduzir pelos sons, pelo lirismo e o humor das imagens, pelos insultos mais divertidos já criados ("Cinco  obtusas muito elegantes & penteadas, Cinco bonecas bem penteadas, Recheadas de carne estragada, Merda, Ovo podre" ou o pingue-pongue "que os corruptores & corrompidos  praticam dia sim, dia sim. Com raquetes de cinismo e bolinhas de estrume"); curtir o prazer proibido de imaginar o destino fatal de políticos e empresários corruptos na mão de demônios e divertir-se quando acossados por um surto de honestidade, políticos se declaram chupameradas da república. Acima de tudo, a primeira leitura é conduzida por uma trama que começa com assassinatos em série, revela copycats que forçam o criminoso a confrontar seus crimes, segue acompanhando a prisão de uma outra mais pura de violência e evolui até revelar um complexo cenário apocalíptico cyberpunk.

 

Na segunda leitura, você pode prestar atenção na descrição brilhante da rede de inteligência artificial ubíqua, uma esfera-cubo-pirâmide quase onisciente e na ideia de que a interconexão de sensores e processadores possam emergir e transformar cidades em grandes organismos (não há como não sorrir lendo a descrição de Brasília  deslizando confiante em direção ao amor e acasalando com o Rio de Janeiro ao por do sol). Pode curtir cada personagem secundário, do "neuro-carcereiro" que foi roteirista de cinema e mágico de efeitos especiais ao robô pichador, que é, na verdade, uma legião de microrobôs descendentes de um experimento de feira de ciências; do Saci no corpo de uma mulher sedutora ao coiote, do vizinho deslumbrado com um cubo quase mágico à raríssima política íntegra (talvez o elemento menos crível da narrativa, mas ainda assim executado de forma brilhante).

 

Mas o livro comporta leituras susbsequentes, para saborear as digressões filosóficas (sempre bem humoradas, com um certo cinismo e autocrítica) e caçar todas as referências pop, sempre sensacionais.

 

A densidade de Distrito Federal é ordens de magnitude acima de quase todos os livros de ficção que você encontra nas livrarias. A mitologia brasileira, raramente presente, aparece não só nas criaturas da mata, mas nas referências a Olorum, deus criador do orum e Manon, criador do céu, da terra, dos homens e dos animais. Diferentemente do deus abraâmico, um bully não desprezível, o dilúvio que Manon manda sobre a terra é um dilúvio de fogo, apropriado para a purgação da vez...

 

O livro cita na "Nota do suposto autor" algumas das fontes de que bebeu, mas estabelece os contornos de um Universo que de alguma forma engloba boa parte da obra do Luiz Bras, com demônios, criaturas subterrâneas, ciência tão futurista que parece mágica e uma boa dose de humanidade. É uma delícia imaginar o potencial desse universo de ser expandido e explorado em vários volumes subsequentes. Esperarei ansiosamente, em modo de recursividade.

 

 

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O livro: Luiz Bras. Distrito Federal. São Paulo: Patuá, 2014, 280 págs.

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março, 2015

 

 

 

Ricardo Josua nasceu em 1976 no Rio de Janeiro e mudou-se para São Paulo em 1991. Trabalhou no mercado financeiro e no setor de tecnologia da informação e foi um dos idealizadores dos podcasts e do jornal literário Letra Libris. Publicou seu primeiro romance, Desabandono, pela editora Tordesilhas, em 2013.