A poeta, cronista e contista Elza A. Ramos Amaral (1927–2014) ultrapassou a rara barreira dos oitenta anos produzindo. Os títulos que antecedem seu nome são incapazes de reverberar tudo o que ela fez ou representou. Uma vida de estudos e buscas incansáveis. Um legado ímpar de escritos publicados e inéditos, reveladores de imensa versatilidade (produziu ensaios, poesia, crônicas, literatura infantil). É nessa toada, em declaração de amor-preservação-memória, que sua filha, a escritora Beatriz Helena Ramos Amaral, também poeta e ensaísta, encarou como projeto trazer à luz o que a Elza deixou pronto para ser lido. O primeiro passo foi o recém-lançado livro a A Patinha Deolinda (RG Editores), que inaugura um acervo de infantis.

O lançamento de A Patinha Deolinda aconteceu em São Paulo, na Casa das Rosas (que estava completamente lotada de admiradores, leitores e amigos da homenageada). O evento, intitulado Nas Asas da Invenção, consistiu de mesa de debates, apresentação de vídeos, videopoesia, lançamento de CD, música ao vivo, lançamento do site de Elza [www.elzaaramosamaral.com.br] e foi tomado de comoção, depoimentos e agradecimentos. O livro, editado pela RG Editores, foi pensado como a primeira de uma série de homenagens.

Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, depõe na segunda estrofe do poema "Se eu morrer novo" em defesa dos escritos publicados de forma póstuma, como é o caso do livro de Elza, seu quinto livro e primeiro de literatura infantil. Mais do que em defesa, o poeta declama a necessidade de trazê-los "à vista":

 

 

"Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,

Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.

Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,

Porque as raízes podem estar debaixo da terra

Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.

Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir"

 

 

Elza teve vida longa, mas produziu muito além dos anos que esteve entre nós. Deixar o material guardado, até para Caeiro, seria resvalar em heresia para com a arte.

Além disso, A Patinha Deolinda é uma espécie de apanhado dos estudos da sua vida e interesses. O infantil traz a natureza e o misticismo para o universo da criança.  É como diz Beatriz em trecho do breve prefácio: "Elza Ramos Amaral sempre cultivou o convívio com os anjos e estimulou em mim e em sua legião de amigos e admiradores a familiaridade com esses mensageiros especiais. Sobre eles escreveu um livro, Os Anjos estão chegando (ensaio, Escrituras:1997)".

A ligação entre a autora e a natureza era visível e tema recorrente também em seus poemas. E bons exemplos são os livros Primeira Lua (haicais, Massao Ohno Editor, escrito em colaboração com Beatriz H. R. Amaral, 1990) e O Voo Azul da Libélula (2007, haicais, Ed. Autor).

Portanto, A Patinha Deolinda une e sublinha esses dois interesses (anjos e natureza) em um mesmo livro de 24 páginas. Aliás, a própria autora chegou a deixar no manuscrito original uma série de colagens para nortear o trabalho de ilustração, explicitando, dessa forma, página a página, como desejava sua obra.

Como um bom livro infantil, A Patinha Deolinda destaca as ilustrações assinadas pela artista plástica Suzana Meyer Garcia. A inspiração para o estilo dos desenhos do livro foi o clássico "O Pequeno Príncipe". Suzana criou ilustrações em aquarela para dar vida aos modelos de colagens deixados por Elza. O livro não tem margens ou bordas. Cada página é um conjunto de desenhos feitos à mão com cores e detalhes que invadem as letras.

Elza, aliás, trabalha no livro predominantemente a cor azul: a família de Deolinda vivia em um parque chamado "Jardim azul", por exemplo. Usando-se disso, Suzana (que também diagramou o livro) escolheu abusar dos tons de azul.

A edição acertadamente enfatiza o azul tingindo a palavra da mesma cor sempre que ela aparece no texto. O livro é cheio desses pequenos detalhes quase imperceptíveis aos desatentos, mas que fazem toda a diferença.

 

 

Azul é a cor mais fria e também a que representa o mítico — de céu a mar. É fundamental para que a magia do livro seja transmitida. Aliás, é azul também o ovo de que nasce Deolinda, uma patinha com poderes de ajudar as crianças boas.

Como símbolo desse poder mítico, Deolinda tem uma estrela (também azul) em sua testa. Mas Elza — atenta a temas de espiritualidade que tanto estudou — escolheu uma estrela de cinco pontas. A estrela de cinco pontas é especialmente mítica. Em seu simbolismo, guarda a força dos quatro elementos da natureza (água, terra, fogo e ar) e a capacidade do autoconhecimento.

Elza poderia usar um ser mítico do imaginário, como fadas ou gnomos. No entanto, a ligação com o verossímil ficaria mais difícil. Recorrendo à fábula e a uma patinha como personagem principal, a escritora consegue se aproximar mais das crianças para transmitir a sua mensagem: a importância de ser bom para que boas coisas aconteçam.

No livro, verdade e fábula, crença e realidade se unem e convergem em um universo onírico. O cenário é um parque (real), e as grandes personagens patas em momento algum falam em língua humana. Os patos grasnam e pensam. Ao mesmo tempo, há no ambiente e no texto algo mágico que não necessita de comprovação: basta acreditar.

Com sua opção, Elza transita no cenário infantil com real e com o imaginário. Por isso, é um livro para crianças e também para adultos, tão necessitados de recuperar no vocabulário essa palavrinha mágica que é acreditar! 

 

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O livro: Elza A. Ramos Amaral. A Patinha Deolinda.

São Paulo: RG Editores, 2015, 24 págs., R$ 35,00

Para comprar: pedido@rgeditores.com.br

Tels.: (011) 3105-1743 | 99880-7850 | Fax: (011) 3106-6275

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Leia/veja sobre/de Elza A. Ramos Amaral


> Poemas na Germina

> A Luminosidade dos Haicais na Poética de Elza A. Ramos Amaral, por Maria Cecília de Salles Freire César

> Valsa Op. 69, n.1 -  F. Chopin (piano)

> Noturno O. Farinello (piano)

> Prelúdio Op.28, n.20 (piano)

> Discussão — Tom Jobim/Newton Mendonça (voz e violão)

> Inútil Paisagem — Tom Jobim/Aloysio de Oliveira (voz e violão)

> Site pessoal: http://www.elzaaramosamaral.com.br

 

 

junho, 2015

 

 

 

Kyra Piscitelli é jornalista, crítica de arte, membro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e editora assistente do site Aplauso Brasil.