O que é a província? Os dicionários a definem como "região mais afastada do governo central e, portanto, mais atrasada, menos sofisticada; interior". Uma concepção bastante usual a seu respeito é a de que a mesma província é uma

região espiritualmente (no sentido laico da palavra) mais circunscrita.

Os grandes centros urbanos, com sua movimentação cultural multifacetada, seu ritmo frenético do dia-a-dia, e seus centros comerciais ebulindo por força de um mundo cada vez mais globalizado e interconectado, tendem a corporificar a ideia do universal, sobretudo na ficção.

Em contraste, a província é, em relação ao mundo, um local de exíguas experiências, mais preso a valores tradicionais e conservadores, claustrofóbico em seus limites existenciais, onde o homem de espírito e visão menos estreitas já cedo entende que a única possibilidade de fazer com que seu nome sobreviva a ele, e habite a memória coletiva, é através daquele célebre registro do nome de família nos bancos que adornam as nostálgicas pracinhas do local...

Mas (e a questão só é pertinente quando restrita ao Brasil) será que a distância é assim tão abismal entre esses dois polos? É essa a pergunta que nos vem a mente no decorrer das páginas de O estranho no corredor, novela premiada com o Jabuti em 2012, do escritor novo-horizontino Chico Lopes.

A resposta a tal pergunta mais que nos aproximar do tormento interior do inominado personagem principal, ou revelar-nos a problemática fulcral da obra, pode nos aproximar terrivelmente da questão central das mazelas culturais do país (ironicamente um dos mais diversificados culturalmente no mundo).

O estranho no corredor conta-nos a estória de um homem já beirando a meia idade, professor e aspirante a escritor, que vem à capital em busca de condições melhores (não meramente financeiras) de existência. nela, conhece um afável e vulgar boêmio, "Russo", com quem se entretêm em um dos vários botecos da cidade.

A estética do livro, as ações que conduzem o movimento narrativo, é, sintomaticamente mais interior que exterior (síntese de um universo estagnado); assim, em torno dessas conversas com Russo, ou com a senhoria da pensão na qual o personagem habita, ou na visita a um bordel com o amigo e no posterior retorno à cidadezinha de V., o que conta são as sensações, lembranças e elucubrações de um ser atormentado, não apenas pela falta de expectativas, ou pelas recordações de um família esfacelada (cuja última remanescente, a tia Ema, é uma espécie de superego castrador para o personagem), ou por um ceticismo exasperador ante a vida, mas também porque acossado por uma estranha figura que segue seus passos pelas ruas, o "estranho".

 

 

A dominação pelo íntimo

 

 

Perseguido pelas lembranças, pela mão em riste (sempre obsessivamente limpa) da tia e pelo "estranho", o protagonista (o leitor se dará conta disso) é mais perseguido por sua própria terra natal.

É sobretudo ela que responde pelos atributos interiores do personagem, tais como uma atitude blasé frente à vida e seus sucessos e, mais importante, um terrível medo da própria vida, que o leva à renúncia, e ganha nuances várias: um sentimento de inadequação social e espiritual, insegurança com a própria virilidade (mote para as cenas mais bizarras da narrativa) e uma claudicante atitude em assumir uma postura, qualquer que seja, para fazer frente a existência.

Exemplo disso são as figuras da tia Ema e do amigo Russo, expressivamente situadas em universos diferentes. Russo, viril, falastrão, voluntarioso, contraventor e sensualista simboliza o caminho da vida prática e boêmia, sem rumos, vida esta que a tia Ema deplora beatamente, simbolizando ela própria um caminho oposto, o da carolice, da probidade e distinção social, da devoção e do carreirismo. Ambos não chegarão a se encontrar na narrativa, quais duas estradas que não se entrelaçam, mas estarão sempre próximas quando, por exemplo, no habitat por excelência de Russo, um bordel, o protagonista inibe-se em copular com uma prostituta ao avistar a imagem da Virgem Maria na parede; mais tarde, na cidadezinha de V., Russo "aparece" nas figuras dos botecos da cidade e nas garrafas bebidas sorrateiramente.

De simbologia mais complexa é o "estranho" do título, figura de características diametralmente opostas ao personagem principal; seguro, petulante e silenciosamente sarcástico, essa figura segue no encalço do protagonista, imitando mesmo o ritmo de suas passadas. É uma espécie de duplo enviesado (pois sua existência remonta aos tempos de infância, nos corredores da casa, quando o caráter do protagonista ainda não se formara), sem a força estética do famoso "Willian Wilson" de Poe, mas ainda sim convidando ao abismo.

Entretanto, a força do livro está essencialmente no personagem principal. Em sua elíptica relação com os outros, em sua inadequação e distinção, entrevemos ecos de Dostoievski e seu Homem do Subterrâneo. É um ser desnorteado ante a constatação de que seja na capital ou no interior — que o formou e o habita como uma herança a que nenhuma procura poderá elidir — a existência será a mesma, as pessoas dispersas com rostos sonolentos ou enfastiados; tolos, sem dúvida, que não sabem que esse "silêncio espiritual" de almas mortas pelo marasmo e a inércia (como, por exemplo, o "homem da horta") é como um câncer crescente:

 

"Por que tudo era tão calmo, regular e aceitável, para não dizer divertido, para as pessoas? Não percebiam o erro fundamental, o peso de cada gesto, a condenação?".

 

         Mas sobretudo o protagonista será o mesmo, numa espécie de solipsismo autossabotador:

 

"Não quero e não posso perder minha vida aqui. Mas há algo que me prende, talvez a delícia da condenação, gestos controlados, nenhuma necessidade de ser".

 

         "Nenhuma necessidade de ser", eis aqui o drama principal desse ser. É esse pragmatismo, esse utilitarismo social que o aturde, balança invisível que pesa e dá fundamento aos homens em sociedade. Nada mais aterrador para um artista, esse outsider da sociedade, ainda mais num país no qual toda tentativa de profissionalização nesse âmbito resulta risível já na instância de ideia formulada. Some-se a isso o componente provinciano que formatou esse ser, e as dimensões serão superlativas.

 

 

"Pintar a 'aldeia'"

 

 

O escritor russo Tolstói certa vez afirmou que o artista que busca o universal "deveria começar por pintar sua aldeia". É, de certa forma, o que Chico Lopes busca fazer em sua arte, em seus diferentes livros, e não é diferente em O estranho no corredor. Entretanto, a "aldeia" propriamente dita está em grande parte no interior do personagem, seja enquanto lembrança, seja no que toca a sua formação (exceto intelectual).

Mais relevante que essa pintura é a atmosfera de marasmo espiritual que se impõe da primeira à última linha do livro, seja qual for o espaço físico descrito, sendo essa uma das duras lições pessimistas que o livro nos dá: a capital e o interior, no fundo, confluem sombriamente, é só nas aparências uma bifurcação.

Essa espécie de "desolação estética" acaba por se disseminar em tudo, nos lugares, nos valores, nas pessoas sobretudo. São todas deploráveis, mormente no aspecto físico, e o mesmo pode ser dito do elemento sexual que, nesse ambiente, materializa-se em experiências eróticas "disformes"; foge da contenção estética deliberada do livro justamente tal  elemento que (salvo engano) é um tema transversal na coluna vertebral do livro.

Por fim, no aspecto formal o leitor sentirá a influência de Graciliano Ramos em dois aspectos centrais: a escrita sintaticamente objetiva que busca cortar as adiposidades vocabulares  e a construção de capítulos autônomos que, assim como em Vidas Secas, segue uma esquema mais interior que cronológico, embora haja um linha lógica (inclusive temporal) que manieta essas partes.

O estranho no corredor é, em poucas palavras, uma experiência agonicamente reveladora do estado de espírito do país atualmente, e formalmente é um livro de leitura fluente ao leitor que, não sendo de inclinações excessivamente "ecumênicas", poderá reconhecer nessas páginas a expressão acabada de um ser humano estrangeiro em sua própria terra natal.

 

 

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O livro: Chico Lopes. O Estranho no Corredor. São Paulo: Editora 34, 2011.

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junho, 2015

 

 

 

Clayton de Souza é escritor, autor do livro Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e colaborador do Jornal Rascunho. Atualmente, trabalha na produção de seu primeiro livro de poemas, Versos de Imprecação Contra o Mundo, em colaboração com o poeta Wítalo Lopes Moreira. Reside em São Paulo.

 

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