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O simbolismo celeste, no qual a astrologia se baseia, parece estar por toda a parte. Poemas, romances, edifícios, tudo parece ecoar o céu.

Isso é mais evidente, para alguém que estude astrologia, justamente nas obras que não falam de signos, planetas, ascendentes, etc.; aquelas em que o simbolismo está na estrutura do texto.

O estudante de astrologia, por causa disso, tem muito a ganhar com a literatura e as artes de forma geral; ele tem mais a aprender com elas do que com os livros-texto especializados.

O contrário também é verdade: o estudo da astrologia pode aumentar bastante a compreensão de obras dos mais diversos autores.

O motivo para haver alguma astrologia nos textos mais díspares não é que seus autores tenham sido astrólogos, nem que tenham tido nenhuma educação astrológica.

O que acontece é que o simbolismo nos revela alguma coisa sobre como a realidade funciona. Essa é a base, na verdade, da técnica astrológica: os planetas, signos, estrelas e casas não nos influenciam nem enviam raios distantes para mudar nossas disposições e qualidades, mas, através das suas relações visíveis, nos apontam o que acontece aqui em baixo.

Assim, encontramos estruturas claramente astrológicas em textos de autores provavelmente sem nenhum contato íntimo com a arte celeste.

Um exemplo claro disso é Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, o Bruxo de Cosme Velho. Bruxo, não astrólogo, apesar da anedota sobre o astrólogo que, cuidando das coisas do alto, caiu num buraco (ele usa a mesma historinha em A Mão e a Luva e no final de O Astrólogo).

Brás Cubas não é particularmente virtuoso ou carismático, mas a narrativa da sua vida nos parece interessante e, apesar de tudo, plausível.

Para garantir isso, Machado o apresenta a nós por meio de vários capítulos curtos, sem uma conexão clara, que contam pequenas histórias sobre sua vida, ou trazem pequenas reflexões. O que esses capítulos fazem, no fundo, é mostrar que ele é um ser humano de verdade. Para isso, eles se inserem em duas sequências bastante relevantes simbolicamente; uma recapitula mitologicamente o nascimento, a outra representa o desenrolar da vida. Só depois de nascer e ter uma vida, ser plenamente humano, o homem pode fazer a jornada que só termina com a morte, ou com o que há após a morte. Ou seja, Machado primeiro nos faz acreditar no personagem, usando duas estruturas simbólicas (conscientemente ou não, isso não importa).

Vamos vê-las de forma resumida.

 

 

A descida pelas esferas – o nascimento de Brás Cubas

 

Um mito bastante poderoso relacionado aos planetas astrológicos é o da descida pelas esferas. A alma passa pelas esferas sucessivas relacionadas a cada um dos sete (Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vênus, Mercúrio e a Lua) e só então vem ao mundo. Só nascemos quando já estamos prontos, completos.

O prólogo e os sete primeiros capítulos do livro nos levam, por assim dizer, a refazer este caminho com Cubas. Vamos junto com ele; para deixar a caminhada mais agradável, vou manter a linguagem astrológica técnica no mínimo indispensável.

 

 

Saturno - Começando pelo fim

 

Nossa jornada começa pelo fim, pela morte do protagonista, contada no prólogo e no primeiro capítulo. Não preciso de muita coisa para mostrar que estamos no reino de Saturno, que é o planeta mais obviamente associado com a morte e com os limites.

Não preciso, mas tenho: a dedicatória ao verme que lhe roeu o cadáver, a quantidade decrescente de leitores (Saturno é o planeta da contração), a preocupação em registrar as horas da morte, a descrição do clima frio, triste e desagradável, tudo nos lembra o Grande Maléfico e suas qualidades pouco convidativas.

O clima soturno e melancólico do trecho é claramente enfatizado no fim do penúltimo parágrafo (o último é anúncio do capítulo seguinte): "A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e logo, e coisa nenhuma". Morte, inconsciência, imobilidade, pedra, nada.

 

 

Júpiter – A abundância que cura

 

Do planeta da contração, passamos ao da expansão.

Temos, então, a história de um emplastro (Júpiter é tanto o planeta das bênçãos, da cura, quanto dos óleos, das substâncias untuosas), uma ideia grandiosa e útil (dois atributos joviais). O emplastro deveria aliviar a melancólica humanidade, algo só possível para o único planeta quente e úmido dos sete.

Lemos sobre o amor da glória, da nomeada, sobre a filantropia, e dois tios, um oficial e outro cônego. Sobre os tamanhos e tão profundos efeitos do produto, e sobre o gosto de ver muitos panfletos e anúncios em muitos lugares diferentes.

Ou seja, lemos sobre coisas grandes, abundância, excesso, crescer, religião, hierarquia... coisas relacionadas a Júpiter.

Do reino da abundância, vamos para o capítulo 3, o reino de Marte.

 

 

Marte – arrebatando cubas aos mouros

 

Tanoeiros não são marciais; era preciso arranjar uma atividade mais belicosa para os ancestrais do nosso protagonista. Um cavaleiro, herói em incursões militares, que arrebatou cubas aos inimigos mouros, deve servir.

 

 

Sol – o centro; os líderes

 

Esse é o capítulo menos óbvio, nessa nossa descida pelas esferas.

No entanto, aqui ele fala sobre como a ideia do emplastro era fixa, como era importante e fundamental, atributos solares — o Sol é o rei dos sete astros. É o primeiro capítulo que menciona homens com autoridade: Cromwell, Cláudio, Bismarck.

Este é o capítulo central desta primeira parte, na qual ele conversa com o leitor sobre a própria narrativa, o que cabe melhor aqui, na esfera central.

 

 

Vênus – aparece a mulher

 

Nesse capítulo, a referência é mais clara. É nesse capítulo que vemos a primeira figura feminina. Além disso, Machado faz questão de mencionar, a pretexto da sua morte, que ela aconteceu na sexta-feira, dia regido por Vênus.

 

 

Mercúrio – Virgília à porta

 

A semelhança do nome da mulher (que só ouvimos neste capítulo) com o signo de Virgem, regido por Mercúrio, não é, nem de longe, o único indício de estarmos no reino do planeta-mensageiro. Virgílio era o guia de Dante na Divina Comédia (guias são mercuriais).

Na primeira vez que a vimos, a mulher com o nome do poeta-guia está à porta, nem fora nem dentro; Mercúrio era o psicopompo, quem fazia a conexão entre o mundo dos homens e o dos deuses na mitologia greco-romana.

Há um estranho no quarto, que entra quando Virgília sai. A função deste homem é trazer ao doente notícias; especialmente, sobre o câmbio (dinheiro é coisa mercurial), colonização (choque entre culturas) e da necessidade (Mercúrio é o planeta relacionado à necessidade. A parte árabe da necessidade é conhecida também como parte de Mercúrio) de desenvolver a via férrea (conexão).

Virgília também lhe dá "longas notícias de fora, narrando-as com graça, com um certo travo de má língua, que era o sal da palestra". O moribundo, entre os dois mundos, sentia um "prazer satânico" em mofar do mundo dos vivos (Mercúrio e Saturno são dois planetas usados para significar o demônio, mas Mercúrio é o zombador, enquanto Saturno é o carrasco).

O filho de Virgília, que aparece no fim do capítulo, é bacharel, atividade mercurial; ele era enganado quando era pequeno, e estava a ser enganado de novo, o que não nos surpreende na esfera do planeta relacionado ao bobo-da-corte, às galhofas e à zombaria.

Agora vamos ao último capítulo dessa jornada.

 

 

A Lua – o Delírio

 

Assim como no primeiro estágio, o nosso último passo da descida é muito bem marcado.

Estamos em pleno delírio, nos domínios da Lua. Os lunáticos eram chamados assim porque se acreditava que seu problema estava relacionado com a Lua, astro regente da mente, da alma, mas também das substâncias inebriantes.

O barbeiro chinês era bojudo (redondo como a Lua. A China era regida por Câncer, signo da Lua), o mandarim, caprichoso (a Lua é o astro da inconstância, sendo o único que nunca repete a forma); a Summa Theologica tinha fechos de prata (metal lunar), que eram as mãos de Brás Cubas cruzadas sobre o ventre; em seguida, ele volta a ser humano, mas é arrebatado... por um hipopótamo. A sucessão de imagens lunares é impressionante.

Eles vão, o hipopótamo e o nosso moribundo em delírio, à origem dos séculos; passam por planícies brancas de neve, com montanhas de neve, vegetação de neve, animais grandes e de neve, até o sol era de neve. A natureza toda tem a cor da Lua, o planeta da renovação, dos inícios.

A Lua é também a mãe; e veja quem Brás Cubas encontra: "Natureza ou Pandora [...] tua mãe e tua inimiga", que leva nas bolsas "os bens e os males", inclusive a virtude teologal associada à Lua, "a esperança, consolação dos homens".

Junto a essa mãe cruel, Cubas encerra sua descida, com a vida que é morte: vida para o novo ser, morte para a alma, que cai, presa, no ventre da Mãe Natureza.

Nosso protagonista está astrologicamente formado, pronto para nascer.

Esta descida pelas esferas é recorrente; é possível encontrá-la em textos mais antigos que qualquer livro astrológico conhecido. A estrutura inicial da Odisséia, por exemplo, segue essa descida. Telêmaco visita Nestor, o velho (Saturno), depois Menelau, que o enche de presentes, comida, bebida (Júpiter), se envolve em uma luta (Marte); a história corta e aparece Ulisses, sentado na praia, ao raiar do dia, levantando-se (o  Sol; Ulisses é o herói solar por excelência), etc.

Não é possível discutir todas as significações possíveis, nem a abrangência, muito menos a origem desse esquema, mas é interessante notar que o fato de encontrá-lo num romance do século XVIII e num poema de quase três mil anos atrás sugere que a estrutura por baixo dela esteja presente na realidade mesma (ou, pelo menos, na mente humana).

A outra sequência interessante é o das casas astrológicas.

Enquanto a descida pelas esferas está relacionada à alma encarnando no corpo, as casas simbolizam os diversos assuntos da vida: então, sua sucessão sugere as mudanças relacionadas à passagem do tempo, ao desenrolar das nossas vidas.

Aqui, a correspondência não me pareceu tão forte, nem tão óbvia, mas ainda assim é digna de menção.

 

 

As casas astrológicas – caminhando pela vida

 

 

Casa um – a cabeça

 

No capítulo oito, depois do delírio, vemos a Razão recuperar sua casa, depois que a Sandice fez o que quis no capítulo anterior.

A casa da razão é a cabeça do ser humano, que é um dos principais significados da casa um.

 

 

Casa dois – transição

 

O capítulo nove não nos diz muita coisa. A ênfase de Machado/Cubas na transição, no entanto, me faz lembrar que as casa dois é uma das casas sucedentes, que fazem a transição entre as casas cardinais (um, quatro, sete, dez) e as cadentes (três, seis, onze, doze).

 

 

Casa três – comunicação, habilidades básicas, familiares, vizinhos.

 

Aqui, no capítulo 10, o pequeno Brás é apresentado à família; também é o capítulo em que ele aparece aprendendo a andar, falar e a repetir o nome dos padrinhos.

 

 

Casa quatro – terras, pai, mãe, antepassados.

 

Aqui, podemos ler sobre a vida na casa do pai e como eram o pai, a mãe e os tios de Brás Cubas.

 

 

Casa cinco – crianças, festas, divertimentos, sexo

 

O capítulo 12 nos leva a uma festa, na qual o menino Brás denuncia um beijo escondido entre dois amantes.

 

Casa seis – doenças, animais pequenos, acidentes, desventuras

 

Depois da festa, Machado gasta um capítulo falando dos castigos da escola, do antigo mestre, e do amigo Quincas Borba.

O mesmo Quincas Borba que daria seu nome ao próprio cachorro.

 

 

Casa sete – relacionamentos

 

Marcela aparece pela primeira vez, eles se beijam.

 

 

Casa oito – morte, posses do(a) parceiro(a)

 

O significado mais comum da casa oito é a morte. O segundo significado mais comum, as posses do parceiro, é o assunto principal do capítulo 15, das joias aos móveis.

 

 

Casa nove – religião, peregrinações, viagens longas, estudos superiores

 

Depois de um pequeno capítulo de transição, chegamos no ponto (capítulos 17, 18 e 19) em que o pai do protagonista, para terminar o caso entre ele e Marcela, o envia para a Europa, para estudar, juntando dois assuntos da casa nove numa única ação.

 

 

Casa dez – profissão

 

Nosso herói vira bacharel (capítulo 20).

 

 

Casa onze – amigos, bênçãos, presentes do alto

 

No capítulo 21, Brás Cubas é salvo por um almocreve. O favor não é pago de forma satisfatória, porque as bênçãos nunca são.

 

 

Casa doze – tentações, pecados, sofrimentos auto-inflingidos, temores, tristezas.

 

O protagonista volta ao Rio de Janeiro para ver sua mãe definhar e morrer (capítulos 22 e 23).

 

E assim voltamos ao começo: Brás reencontra a mãe, estando, por assim dizer, pronto para nascer de novo. A casa doze significa também partos; segundo a ordem dos signos, da doze chegamos à casa um de novo.

Agora, depois desse renascimento, Machado passa a nos contar os eventos da vida adulta de Brás Cubas; nosso herói está pronto para viver de fato.

Eu sou o primeiro a admitir que algumas associações são mais claras, ou mais diretas, que outras; mas espero ter mostrado que há alguma ligação — na minha opinião, importante — entre o começo do livro, o simbolismo astrológico básico e o desenvolvimento do personagem Brás Cubas de modo verossímil.

Não, eu não acredito que haja uma linha de astrólogos secretos que vai de Homero a Brás Cubas, nem que astrologia era ensinada em segredo a escritores talentosos de todos os tempos. Como eu disse antes, o que faz sentido é: eles estão retirando isso do legado cultural comum, ou da estrutura mesma da realidade, ou de um modo particular com que a mente humana trabalha.

Qualquer que seja a resposta correta, astrólogos têm muito o que aprender com a grande literatura; e leitores e escritores talvez tenham alguma coisa a ganhar com astrologia.

Então, agradeço à paciência dos leitores e me despeço como o próprio defunto autor o fez.

"A obra em si mesma é tudo; se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus".

 

 

 

março, 2015

 

 

 

Marcos Monteiro é astrólogo, tradutor e autor de Introdução à Astrologia Ocidental (e-book, publicado pela Amazon).