©tiffany dryburgh

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Esquecer Guillermo. E, na deliberação de esquecê-lo, de contornar lembranças, eu cumpri um dever paradoxal: fui a G., que não visitava desde a morte de minha mãe, para, estando lá, olhando para a casa, a calçada, a rua, captando sinais de interpretação segura, saber exatamente o que me perturbava, descansar de imaginá-lo. Ele me daria paz se eu o entendesse, se eu o fixasse bem num quadro reconhecível. Estaria finalmente situado em algum escaninho sem possibilidade de equívoco, de lutas vãs pela posse de um fiapo.

Furtivo, desemboquei na cidade, me esgueirando do claro da lua, assustado por ter chegado, por ter descido do ônibus, com vontade de novamente tomá-lo, de voltar ao lugar bem distante de G. onde eu envelhecia a salvo do passado.

Não queria entregar-me ao lugar, andava torto, de sobreaviso. Quando minha mãe morrera, eu sentira que não podia mais com a pestilência dos olhares, a persistência dos cochichos. Mas, agora era um consolo que não pudesse vê-la ou a lembrasse com uma imprecisão benevolente. Que muitos amigos e conhecidos houvessem já morrido e eu não me deparasse com eles. Temia que, sem palavra, pelo simples reconhecimento mútuo das identidades puídas, concluíssemos que tudo que de pior suspeitávamos da vida estivesse a essa altura totalmente confirmado. Mas filhos e talvez netos deles estivessem passando por mim, sem que eu soubesse. Na rua principal, inteiramente mudada e cheia de uma horda espessamente alheia, ninguém que me reconhecesse. Segui em frente. A certa altura, contornando uma rua onde uma figueira assinalaria a descida para um quarteirão escuro, a casa. Como há muito fora vendida, teria novos donos imprevisíveis. Um vulto bronco poderia estar à janela, poderia estranhar meus olhares de interesse.

No entanto, a casa estava ali, não tão drasticamente outra, mas com uma porta de garagem lateral que parecia servir para algum comércio diurno.  Era ainda, em parte, o que minha mãe, entre sarcasmo e lágrima, chamava de "pensão do Guillé". Porque Guillermo, com seu portunhol sedutor, era de passagens curtas, decididamente esporádicas, vindo para vê-la muito de veneta e sumir rápido com os amigos de sinuca, dissolver-se na cidade, soltar gritos de madrugada para chamá-la, entrando bêbado e obrigando-a a longas horas de conversas e risos que mal me deixavam dormir.

A cada vez que o caminhão parava, carregado de toras de eucalipto que pareciam recém-cortadas, tão intenso o cheiro, e ele descia, eu sabia que a perderia para a sua presença. Grandalhão, os olhos castanhos como que decididos a saber tudo e tudo notar, os cabelos pretos rebrilhando, o canino de ouro precioso que exibia dando sorrisos muito abertos, com um maço de Fulgor no bolso da camisa, a binga cheirando a querosene, o pavio que dava em chama exagerada, era ele, ele, que a fazia sofrer, espernear, ir à igreja e virar a menos crível das beatas, quando sua ausência era persistente demais. Mas, ao voltar, lambia-lhe o pescoço e cantava "Si, te quero mucho / mucho mucho mucho / tanto como entonces /siempre hasta morir", e tudo resolvido. Ela o amava mais que a qualquer santo, sua reza devia conter apelos obscenos sem disfarces. Quanto a mim, eu o via, mas o via apenas como uns olhos que se fixavam sobre alguém que lhe saíra dos bagos, mas não se parecia com sua ideia de um filho. As mãos, ele as puxava, subindo-as para os cabelos, que despenteava com um bufar de exasperação, balançando a cabeça, tapando as orelhas a uma reclamação estridente de minha mãe. Ela se punha entre ele e eu, ameaçando-o também, como se brincasse, crispando os dedos de unhas muito esmaltadas, fazendo menção de retalhar seu rosto, e precisava dissuadi-lo de me bater com a cinta ou com o que tivesse à mão arrastando-o com sussurros, com piadinhas, com empurrões delicados, para a cama.

Só um dia, aos treze anos, acho que o vi inteiro — entendi que nem era tão alto, que os cabelos não eram tão pretos e os olhos não tão argutos; deixara de ser aquele composto de risadas, voz tonitruante, bolero de Nat King Cole, dente de ouro luzindo no breu, pernas grossas, binga de incêndio, e, por algum motivo, passara talvez duas semanas ou todo um mês conosco. Razão para que eu achasse mais difícil ficar em casa. Ia tornando-se mais concreto, seus relevos agora eram ofensivos, ofensiva a sua marcha nu pelo corredor, quando interrompia o que fazia regularmente no meio da noite e ia urinar com estrépito. Eu era só medo. "Maldita sea la leche que te deran!", berrava, porque, ao xingar, nunca o fazia em português. "Cocío, cocío", repetia, achando-me mole, fraco, tímido — apalpava seus bíceps e pedia inutilmente que eu o apalpasse, eu não queria saber da sinuca, não gostava das velhas canções. Não queria ouvir o que tinha a contar sobre o avô malaguenho, sobre certa viagem pelos Andes, "te cagarias, en la altitud...". Sim, era cabeça para altas nuvens e corpo para os sacrifícios mais viris. Não nos parecíamos, e a dessemelhança o esmagava. Minha mãe tanto me protegia quanto parecia fascinada por suas gritarias, a cuspida no chão, o "me cago en la hóstia". "Mãe, ele ainda me mata..."; "Não é tão bruto assim"; "Então, por quê?..."; "É só bravata, só blasfêmia; a família dele sempre foi assim, barulhenta, gente que se xinga o tempo todo, mas não é maldade, é só grossura, uns bichos... Venha, me dá um abraço"; "O que quer dizer cocío?"; "Não pense nessas coisas, esqueça, esqueça...".

Esquecer. Sobre o muro da casa, saltou brusco um gato, e eu lembrei-me de Cigana, seu olho amarelo todo inquiridor, no colo de minha mãe. Um amor exclusivista e nervoso, tudo para a gata, à falta de Guillé, que desaparecera dessa vez por um, dois, três, finalmente quatro, cinco, seis anos. Eu quase um homem, os deveres de trabalho, de sair da cidade, os dias passando, ela junto ao rádio, quase sufocando Cigana, de apertá-la junto aos seios. Guillermo não voltaria, era coisa certa. Aliança, ele não lhe dera nem uma daquelas que vinham de brinde nos doces de venda. Dinheiro, afinal, fora poucas vezes que deixara para as nossas despesas, que ela cobria com bordados e costuras. Mas, milagre, voltou numa noite de agosto. Saiu aos berros, trôpega, pisando em flores das quais tinha ciúme letal, quando o caminhão buzinou, nenhuma sutileza, madrugada alta, ao portão. Até Cigana pareceu lançar-me um olhar, cúmplice na birra, quando ela o abraçou e ele a trouxe no colo para dentro.

 

Guillermo outra vez, mas havia alguma mudança, talvez estivesse falando mais baixo  e parecia magro, cansado, uns fios de cabelos brancos que, para ela, só o deixavam mais irresistível. Bebia menos, andava decididamente mais pensativo. Noites, noites, em que Cigana, incansável, se punha à porta do quarto de minha mãe, arranhando, e nada da dona sair de lá. Como se para patentear uma desobediência desaforada, ganhava a rua, demorava a voltar, aparecendo machucada, de manhã, quando, os dois grudados à mesa do café, minha mãe se irritava com o excessivo roçar dos pelos em suas canelas, não reclamava quando o hóspede magnífico a chutava para longe. Mais e mais eu me encolhia, me esquivava, contornava os cantos onde eles estariam, infalíveis, machucando-se, rindo, e mais me aliava a Cigana, pegando-a no meu colo.

Mas, era espaço exíguo demais para que nos ignorássemos, e uma noite, ao acordar, saindo para a sala, notei-o lá, o vulto mais delgado, no sofá, com seu cigarro, sem fumá-lo. Pensei ter visto o lampejo do dente, um murmúrio em seu idioma, baixei a cabeça, encaminhei-me pelo corredor ao banheiro. Gritou meu nome, parou-me. Ao virar-me, vi as mãos que se erguiam para a cabeça, para despentear os cabelos, e eu então que me preparasse, que começasse a morrer, porque a exasperação significava que agora iria, sem mãe no caminho, acabar com sua diferença. Eu só tremia, a um triz de desaparecer. Levantou-se, mas devagar. A luz da rua era pouca para a sala, mas tudo era mais do que óbvio quando ergueu as mãos, aproximando-as, balançando-as enfaticamente e depois, menos tenso, soltou-as, baixou-as sobre as coxas, incerto. Olhou-as, como se estivesse surpreso com o que lhe ia pela cabeça. Elas continham um pensamento, um pensamento que hesitava. Protegi meu pescoço, com minhas ínfimas, de um estrangulamento silencioso. Mas, não houve nada senão ele sentar-se, balançando a cabeça, e de novo ficar no sofá, o cigarro apagado, um suspiro. Estava — o que teria me intrigado mais se eu sentisse menos medo — triste. Consegui, ainda quase sem sentir minhas pernas, avançar um tanto mais pelo corredor, sem olhar para trás.

Nunca pudéramos ter certeza nenhuma de quando iria ou viria, eu e ela, e por que teríamos de ele estar vivo ou morto? Porque alguma montanha, floresta, rio ou cidade muito distante o tragou, não se viu mais o caminhão, os amigos de sinuca o declararam lenda, G. o decretou mais um calhorda que estava melhor bem longe, em pé ou comido por urubus. Foram ainda mais três homens os que passaram por ela — e, se bem que tivessem olhos castanhos e cabelos pretos, e fossem muito robustos, e falassem alto, e a esmagassem com o charme predador e soubessem até alguns boleros, não eram Guillé. Eu estava já muito longe, tão longe quanto ele conseguira ficar de nós talvez, quando um telefone soou na noite e, ainda um menino sobressaltado com os ruídos abruptos de certas madrugadas, recebi a notícia. Cheguei para vê-la no caixão, velada pelo que restava dos tios e por alguns curiosos que, em maioria, nunca a tinham achado senão debochada.Agora, a casa. Não entro, não posso entrar, e não quereria, se pudesse. O gato que acabou de deslizar do muro para um saco preto entreaberto, numa esquina de terreno baldio, olhou-me sem interesse. Estou aqui há tempo demais, à espera de algum sinal, já convicto da estupidez deste retorno, mas há um ônibus que volta amanhã de manhã, posso pegá-lo depois, posso ficar mais tempo. Ainda consigo ouvir passos inequivocamente masculinos e ofensivos, sinto cheiro das toras de eucalipto, confundo com um dente de ouro uma luzinha lá no fundo, o amarelo brilhante fundindo-se com o âmbar do olho incisivo de Cigana.

Um vulto. O vulto hostil que eu esperava à janela, alguém que saísse, indignado por meu interesse, aparece. E é estranho que nos fitemos por muito tempo, dois homens velhos que não se conhecem, mas se avaliam. Por que esse silêncio de tanto tempo, silêncio que gato algum ou passagem alguma de vento pela figueira consegue romper? Não seria natural que puxássemos alguma conversa, besta que fosse? Ele se move, recuando, e eu faço o mesmo, no lado de cá. Uma desistência tácita. Vejo as mãos, longas, brancas, destacando-se de uns braços cobertos por um pijama. Com elas, ao invés de fechar com força as folhas da janela, ele as puxa suavemente, e depois ouço o trinco passando com um rangido do outro lado. Nada mais.

Mãos de Guillermo. Manoplas, ele tinha, mas hoje acho que as minhas nem são menores, nem meus porres tão pequenos, nem meus amores tão estáveis, nem meus desejos menos violentos. As mãos que cresciam, cresciam, talvez estivessem se preparando não para um estrangulamento, mas para um abraço. Abraço que, natimorto, ele carregou consigo para alguma altura do Andes, ou para a fundura de uma vala anônima.

 

 

junho, 2015