*

 

era claro e havia o silêncio

e só quando escuro

havia a palavra

 

você insistiu

em negar todas as noites

e a exatidão

me perguntava

todos os significados

 

mas eu te fiz o escuro

de olhos abertos

sente só: o ar que eu

passei entre os seus dedos,

só assim é bicho e homem

é silêncio e palavra

 

e mar

 

 

 

 

 

 

voz do mundo

 

 

em meio aos mortos pendurados

nos varais

o desespero escorre sem consolo

 

em meio às mortes das mulheres

encobertas

sendo uma sua carne finge a febre

 

ela queimando em cólera

esconde os olhos castanhos

nos muros dos versículos

esconde o gozo infrutífero

na aurora da mudez

 

mente o sexo do ventre

prenhe e as coxas que arderam

cegas em obrigação

por um filho

 

na rua de poeiras

intranquila percorre

o passado

e não esquece a faca

que sangrou seus dedos

em fôlego de luta última

 

abandona o silêncio absoluto

e os demônios sufocando

sua garganta

extravia a infligida pureza

com o toque de sua existência

exposta em grito e sussurro

 

delicada e vil apunhala

o ventre dos fantasmas

e atravessando as sentenças pode

enfim ser a carne que goza frutos

 

ser olhos de cair lágrima

pedra que escorre sangue

 

 

 

 

 

 

*

 

rouxinol antigo

prazeroso vestia o sol

em idos anos quarenta

e tantos mares embaçados

ciscava pão na praça

na velhice de agora

incontestável só canto

lembranças

 

intervalo de três tempos

 

em nossos anos noventa

e poucos ainda ciscam

com fome na praça

às quatro horas eu vadia

em pés de sapato púrpura

ando faminta de algum corpo

 

vejo e toco o rouxinol

em malogros de cena

veias do santo avô

dão forma a minha carne

e os olhos de vadia

revivem o pássaro

só os olhos de vadia

santificam

 

 

 

 

 

 

*

 

você se enche de tudo

você se enche de cana caiana

você se enche de música clássica

para depois cortar o tímpano

você se enche de pina bausch

num domingo às três da tarde

você se enche de medo de dragões

você se enche de pés e buracos

em marte ou aqui mesmo dentro de mim

você se enche de cana caiana

você se enche de bonecos sem falas

você se enche de lubrificante no avião

você se enche de água no deserto

do atacama e fica louca

você se enche de tranças e pulseiras

você se enche de mar nos lábios

e me diz que é vermelho o que não vejo

você se enche de rilke só para queimar

o dia com um único palito de fósforo

você se enche de cana caiana

e sente na língua a vertigem

você se enche de tudo

você se enche de sal

você se enche de sal

você se enche de sal

 

e me diz que não tem jeito o doce

que sobra na ponta das facas

 

 

 

 

 

 

*

 

longe no ar se esfacela o gesto
o alarme ensurdece quando anuncia
o incêndio

a orquestra romântica de cuba
toca no rádio e se torna concha
que lembra o mar

e o vazio sem causa rompe o medo
porque hoje encaramos o que é terrível
e vermelho

a última oferta antes da desistência
a inconsistência das verdades
o vômito antes da partida
o fogo aqui te arrancando do fundo do mar
o aço apesar de tudo

na encruzilhada encontramos o desprezível
e nos deleitamos na sua carne úmida

o alarme de incêndio silencia
há sempre o aço no fim, em júbilo
aço e sangue apesar de tudo

 

 

 

 

 

 

*

 

a cidade na sua boca não é falta

e o que é súbito e olha azul

por dentro da pele não é falta

 

nem é falta essa traição que ensaio

o veneno na borda das janelas

a sua febre na minha face

 

não é falta, meu bem,

o seu veneno além da borda

invadindo a minha garganta

 

além da borda, em primavera,

não é falta essa sede e esse tempo

o seu silêncio leve que me cobre

 

 

 

 

Izabela Orlandi é autora dos livros O que esperar de uma flor amarela? (Patuá, 2013) e Vão dos bichos (Patuá, 2015). Nasceu em Vitória/ES, em 1991, e estuda psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).