©n. albert

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Lembra-se de como foi dormir tarde naquele dia, seis anos atrás. E de como apagou de uma só vez, devido ao cansaço. Levantou-se também tarde. Era uma sensação estranha saber que se tratava do primeiro dia na casa nova e das primeiras horas de uma vida completamente desconhecida. Levantou-se do colchão posto no piso do quarto e abriu as cortinas. Um sol penetrante de sábado, agrediu-lhe os olhos. No rádio, que ficara ligado a noite toda, Cazuza cantava: "O tempo não para". Pensou que o fato de aquela música estar tocando justamente naquele momento, não podia ser coincidência. Era uma espécie de recado dizendo para seguir sempre em frente. Ouviu de novo a frase, sentiu como ela o tocou por dentro. Não tinha dúvida alguma: era um recado. Acostumou-se à claridade e foi à janela que dava para a parede sem janelas do sobrado ao lado. Quando decidiu alugar, levou em conta tudo isso. Do outro lado, havia apenas uma casa térrea. Seria quase impossível que alguém pudesse incomodar sua solidão, alcançada a custo de sofrimento. No chuveiro, abençoou a água daquele primeiro dia. Mirou-se no espelho e agradeceu a Deus por estar vivo, inteiro, feliz e separado. Não tinha sido nada fácil. Já estava se desesperando, quando as coisas foram se resolvendo por milagre. No fim a separação transcorreu sem baixarias. Felizmente, agora podia cantar, realizar o sonho de viver sozinho... Percebeu um som esquisito.

Parecia uma risada. Fechou a água e apurou o ouvido. Era mesmo uma risada, acompanhada agora por um barulho de pés correndo e chocando-se ao solo. Numa casa nova os ruídos são novidade e não traduzem ainda o que pode estar acontecendo. Ficou imaginando se vinham da rua, ou do sobrado ao lado. Finalmente, o latido denunciou que procediam da casa térrea. Alguma criança brincando com o cachorro, que ele já havia observado. Só não sabia que havia crianças por lá. Também pudera. Viera visitar a casa apenas três vezes e sempre à noite, depois do expediente. Se tivesse feito isso num sábado como aquele, principalmente durante o dia, saberia logo que a criança da vizinha tinha vinte e cinco anos, era dourada, rosada, possuía um sorriso claríssimo, olhos verdes e lábios rubis: uma verdadeira aquarela — e não teria sido pego de surpresa. Logo que se viram — ele no segundo andar do sobrado e ela no quintal da casa térrea — a cena ficou muda feito um retrato. Ela ia jogar a bola para o cachorro e estacou o gesto no ar. Ele percebeu que também havia sido notado e fez menção de encolher-se para o interior da sala, porém, manteve-se ali, paralisado. Ao contrário de outros casamentos, esse começou pela fotografia, numa pose estática, fazendo contraponto à canção de Cazuza, em que o tempo não para.

Acorda hoje, seis anos depois, igualmente num sábado. Ao lado, a Aquarela também desperta com um sorriso nos lábios. Porém, contrariamente à primeira manhã em que acordaram juntos, hoje ele sente uma necessidade inadiável de estar sozinho. E a sensação confirma-se quando, pouco antes do almoço, aparecem os cunhados, acompanhados de dois primos. Às quatro da tarde surge a sogra, trazendo um docinho. Imediatamente dirige-se à cozinha e, com a Aquarela, a filha, emenda uma fuxicada. O sogro mandou uma revista de automobilismo, para que ele visse um carro de que tinha gostado. Lembrou-se de que havia prometido ajudá-lo no financiamento. As horas pareciam não querer passar. O tempo não para, mas às vezes escoa devagar demais.

Só mais tarde todos saem, incluindo a mulher, e ele, finalmente, pode aproveitar um pouco da necessidade de estar sozinho. Resolve curtir um banho refrescante e tranquilo, mas a porta do banheiro está trancada. Ainda tinha sobrado um dos primos. Atordoado, volta para a sala. Ao passar pela janela, surpreende-se com a visão daquele mesmo quintal lá embaixo. Estranhamente, era como se o visse pela primeira vez, como naquela data distante.

Nisso, o primo desocupa o banheiro. Antes de partir para o tão esperado banho, liga o rádio,  sempre cismado que está tudo muito parecido e ao mesmo tempo muito diferente daquele longínquo primeiro dia. Logo encharca o corpo de água fria. Na sala, confirmando que tudo está mesmo muito parecido, o rádio põe-se a tocar a mesma música ouvida naquela primeira manhã. O tempo não para. E justamente quando Cazuza pronuncia a frase tão importante, o primo põe a mão no sintonizador e, sem consultar se ele estava ou não apreciando a música, muda para uma transmissão de futebol.

Depois do banho e dos poucos minutos de paz, ele sai pela sala enxugando o rosto, pensando se não deveria também estar enxugando lágrimas. Da janela, vê todos lá embaixo em animado papo, completamente esquecidos de sua existência. Sente que a lembrança da música tocou-o novamente por dentro. Com um aperto no coração, conclui que o tempo, de fato, não para. Mas, relembrando de como foram poucos os momentos felizes depois da separação e de como tudo se repetiu com o novo casamento,  lamenta profundamente que a sucessão das horas seja tão inabalável e não decorra de maneira diferente. Pois gostaria muitíssimo que — além de parar de vez em quando — o tempo também pudesse voltar, definitivamente, para trás.

 

 

 

março, 2015