*

 

raízes 

sorvem

a morte

de Píramo

 

agora

o sangue

das amoras

tinge 

a saliva

 

colore o beijo

 

eis o ciclo,

não sinta 

vertigens

 

 

 

 

 

 

*

 

A calcinha ao lado da cama. Serpente aninhada, as tiras laterais finas vestidas no corpo da vênus, ficariam foda. Não há silêncio no vermelho esmaecido. Ao juntar a calcinha do chão, surge súbito o desejo de colher seu cheiro selvagem. Flores reais não têm o aroma lapidado por perfumistas. Podem ser indóceis. Achou engraçada a expressão literária: profundos haustos. A calcinha é uma corola sem caule. Dissolve-se na palma da mão. Recorda Clarice, a escritora. Agora tu é quem vive esse claro impasse, falou para si. Ele tem um nariz enorme. O sinônimo para cheiro que mais lhe excita é olor.

 

 

 

 

 

 

*

Buscar alguma drogaria pela madrugada. Comprar comprimidos. Engoli-los, colhendo com a concha das mãos a água direto da torneira. Maneira de manter a esperança. A palavra lenitivo ecoa lentidão. O livro te conduzirá vivo até as primeiras luzes da manhã. Nas horas acesas pensamentos noturnos laceram menos. Ainda tens na geladeira duas cervejas, que não beberás por sede. Não queres soar confessional, mas a pele fez-se página e vice-versa. 

Anotas em manual para automutilações: compreender a pele como página. Simultânea a lâmina escreve e inscreve. Linhas suaves e simples desenham ideogramas.

 

 

 

 

 

 

*

 

no corpo

da praça

o pombo

negro como

um corvo

se curva

sobre alguns

farelos

 

cheiro de maconha

vodca com refrigerante

beijos adolescentes

crianças elétricas

 

um único livro aberto

 

é possível 

que outro 

crânio

esteja

construindo

um poema

 

vejo o pombo

negro como

um corvo:

certo dia Edgar

delirou sozinho

numa rua vazia

de Baltimore

 

quem pensaria isso

entre o movimento

pendular do balanço

e bicicletas cor-de-rosa?

 

aquele que lê

o único livro

aberto no corpo

da praça

aquele que insiste

em imagens do tipo:

como prenúncio

calaram-se todos

os pássaros

 

 

 

 

 

 

FODA-SE

ESTAR

DO LADO DE LÁ

OU DE CÁ.

ALICE

TANTO FAZ.

ME SEI

ESTRANGEIRO

DENTRO

E

FORA

DA PALAVRA

ESPELHO.

 

 

 

 

 

 

*

 

ela tem alzheimer

ela tem os olhos

esculpidos em mármore

ela melhorou um pouco

ao conviver com outros

no asilo, disseram

ela não tem 

memória recente

guardará muito bem

os meus segredos

no definitivo esquecimento:

 

foram só dois ou três 

segundos, lhe contei

não contei, mas haviam

dezenas de pílulas

pensei em engoli-las

todas nesses três ou dois 

segundos, mas depois

tomei apenas uma para dor

de cabeça embora nem

doesse tanto, mas

queria algo mais

dissolvendo-se dentro

do corpo

e não só

o sentido

das coisas

 

 

 

 

 

 

*

 

o comportamento das cápsulas

imersas nos sucos gástricos

lentamente dissolvendo-se

 

desejara a rapidez efervescente

do antiácido num copo de água

 

para um célere alívio

o ideal seriam drogas

intravenosas

 

áspera consciência da espera

 

a poesia relê a prosa

do dia-a-dia alçando-a

à existência poética

 

quanto tempo até

diluírem-se tantas?

interroga Alejandra

 

encomendara ao taxidermista

a alma vazia de vísceras

modelada com um fixo

semissorriso estilo monalisa

o homem virá de táxi

 

áspera consciência da espera

 

 

 

 

 

 

Um toque deflagra o olor

 

 

os dedos obstinados (diria obsessivos)

doçura diversa a de segurar o cigarro

indicar qual a estrela ou

virar a página

de um livro

 

a receita ritual requer

pétalas maceradas ao ponto

de liquefazerem-se em

seiva sanguínea sumo

aromas coagulam como nuvens

 

deflagras o olor

 

relógios não compreendem

o ritmo dos delírios que movem

a delicada estrutura óssea

das tuas mãos

 

deflagras o olor

 

 

 

 

 

 

*

 

Um homem amanhece pensando em reescrever-se, como o personagem em um manuscrito. Mas a consequência dolorosa é ter reescrita toda sua órbita, o que parece injusto.

 

Percebendo a impiedosa beleza do impasse, o poeta decidiu escrever sobre o homem que quisera reescrever-se. Mas, sem aproximar o poema de uma possível fábula moral. 

 

O poeta contempla o caos que habita o homem.

 

O homem sente-se no limite. Não há livro na estante ou discos palatáveis para esse instante.

 

O poeta tenta traduzir em palavras o ritmo do homem.

 

Ambos, o poeta e o homem, querem um vaso próximo onde apagar as pontas de cigarro. Vaso com um cacto plantado. Desses redondos (uma abóbada, abóbora ou cúpula) ou verticais (como um pau duro, o dedo médio em fuck you) tanto faz.

 

O homem e o poeta, cada um à sua maneira, vivem a aridez da dúvida.

 

 

 

 

 

 

*

 

conformar-se:

adaptar a forma

às margens que

a circunscrevem

 

com o mar

há a incerteza

se conformar-se-á

ao cais

à areia

aos olhos

 

a ressaca ruge

avança a linha de espuma:

sintaxe em êxtase poético

 

conformar-se

esculpir-se espelho

dos limites que

o envolvem

 

750 ml de vinho

silenciosos no intestino

da garrafa de vidro

escuro

 

 

até cederem à sede báquica

 

raízes inconformadas

imaginam-se tentáculos

em um jardim submarino

 

os sonhos

incontidos

no crânio

 

o homem estrangeiro

no próprio chão

 

 

 

 

 

 

*

 

Um amigo

que fora monge

beneditino

disse: em êxtase

Santa Teresa

era imune

às chamas

 

Vejo suas mãos

tornarem-se pássaros

acesos

 

Meu amigo

abandonou

o monastério

talvez porque

o fogo da dúvida

já não era indolor

 

Imagino versos

dignos de Maldoror:

Como um sapato que machuque os pés, 

abandoneis vossa fé. 

Sinta toda lascívia da água e do barro 

ao amparar vossos passos.

 

Meu amigo os leria sem tesão

porque Deus ainda sussurra

pelas suas sendas

Apenas a rotina ritual

o voto de silêncio

a castidade, o claustro

desabavam como pálpebras

calando o horizonte

 

Somente o autoflagelo

permitia externar

seu inferno.

 

 

 

 

 

 

*

 

Cortejo de animais

fareja meus poros.

A fêmea sabe-se

corola acesa.

O macho compreende

o odor a quilômetros.

Espécie de cio

inscreve-se na pele.

Cortejo de animais

fareja meus poros.

 

Há lascívia em ler

o aroma do livro novo.

Há lascívia no sommelier.

Há lascívia em colher

uma folha de chá

e cheirá-la.

Em fechar os olhos

e respirar o hálito

com profundos haustos.

 

Exploro.

 

Dedos 

tateiam

tuas pétalas,

 

ornados

 

cada poro

alvéolo

do olor.

 

Ao vê-los

efêmeros,

logo inodoros

insípidos

 

apenas dedos

 

colho teu rastro

maturo o fruto

sirvo-o

ao meu olfato.

Percebo:

perfume

sumo

lume

selvagens.

 

Sigo

o

signo.

Animal

farejo.

 

Cortejo 

de palavras

traduzem:

pele

especular

onde re

vivo

espetáculo,

teu

sexo.

 

 

 

[imagens ©ben giles]

 

 
 
 
 
 

Gustavo Petter (Florianópolis/SC, 1984). Reside em Araçatuba/SP, onde é professor de Língua Portuguesa. Mantém o blogue Agradável Degradado.