Estela

 

 

Pela janela, Estela, vejo-te como a clamar por um breve encanto, breve sossego desse navegar. Como eu, tens medo das estradas que vão para não mais voltar. As cimitarras, adagas e punhais voam sem pensar. Inevitável pressentir o amargo por detrás de todo doce bom. Sono sagrado, minha alma transborda mais uma vez na beira desse rio, junto às capelas, vazias, à espera de um santo vadio. Mas ninguém riu, pois as sentinelas das feras de dentro calaram ao cio; como se Estela, vista da minha janela, não visse o que viu, enquanto levada a força pela correnteza, mero disfarce do ciúme do rio.

 

 

 

 

Sétima

 

 

Dentro de cada espelho, olhos invisíveis nos devoram sem piscar. O cinema é a dança da vida com a morte. Basta ver Chaplin brincando de patins à beira das garras do abismo, sem que pudesse perceber e sem que seu amor pudesse lhe salvar. Tempos modernos. O cinema é o antídoto mais eficaz contra um quase incontornável processo de desumanização. Filmes são sonhos nascidos do consciente. Sonhos são filmes nascidos do inconsciente. O cinematógrafo ressuscitou o olhar de Deus sobre os homens e reinventou o olhar dos homens sobre Deus. O cinema parte da premissa maior de que tudo o que está dentro transparece aos olhos de fora. É a linguagem que traduz para a experiência pessoal os signos que encerram o mistério das palavras, dos sons e das imagens. O cinema é o espelho de si no outro, uma ponte comunicativa que abre as portas da percepção do real ao entendimento comum das pessoas. Um exercício de investigação do diferente e do semelhante. O cinema nos obriga a enxergar tudo aquilo que evitamos ver. Por não se apresentar ao princípio como espelho, aquele que vê não sente pudor por olhar. Mas quando finalmente compreende que naquela tela branca o que se projeta é, de fato, sua própria vida, já se encontra absolutamente rendido diante da irreversibilidade do entendimento das palavras, sons e imagens, dispostos em determinada ordem e dinâmica. O cinema é a sagrada oportunidade de revivermos nossas vidas pelos olhos e ouvidos do outro. Enquanto nossos pequenos homens ainda dependem dos oráculos da moral, que busquem antes um cinema a uma igreja, já que tão mais importante enxergar o próximo em si a enxergar um Deus invisível, ininteligível e incomunicável. Penso que escrevo filmes porque sempre quis muito poder lembrar em detalhes de todos os sonhos que devo ter a cada noite. Como não consigo, invento sonhos nascidos do meu consciente, para que aqueles como eu possam sonhar acordados. Os filmes, assim como os sonhos, podem ser esquecidos, podem desvanecer pouco tempo depois de serem vistos. Essa comunicação é transitória; é um milagre pontual, situado em um tempo e espaço determinado. Mas não importa, pois se dele guardamos um único olhar, um único gesto, um único quadro, retemos para sempre sua substância vital dentro de nós. Por mais que possamos nos esquecer do nome do filme, do ator, do diretor, do final ou até mesmo da estória inteira, a vaga impressão que nos resta é a perfeita síntese do filme. Quando estamos mal, nada pior do que assistir uma comédia. Não comunica nem alivia. Somente um drama mais forte que o nosso pode nos separar momentaneamente de nossas dores medíocres e consolar qualquer angústia. A identificação das dores redime espectador, autor e personagem. Prefiro situar meus filmes em um passado inda não tão distante do presente. Talvez porque o presente necessariamente se mostre como algo definido, petrificado, imobilizado, sem possibilidades reais de grandes mudanças ou estórias. Já no passado, tenho a impressão de que tudo pode acontecer — como de fato tudo já aconteceu. É como se o presente trouxesse de nascença esse senso de fatalismo, do perdido, da impossibilidade. Não à toa os filmes futuristas apresentam quase sempre um universo regido pelo totalitarismo, pela máxima anulação do indivíduo e pela programação de nossos pensamentos e comportamentos. É porque o presente já traz dentro de si a semente desse fruto macabro, espécie de intuição da queda que sempre permeou a história humana. Mas somos escravos do tempo em que vivemos. Note como mesmo um filme de época revela sem querer a época em que foi de fato realizado, ao transpor sentimentos e dúvidas típicas do tempo em que se vive quando se imagina, com os olhos de hoje, como teria sido o passado. Documentário é o que o olho vê. Ficção é o que a mente enxerga. Dois olhares: um mora fora, outro  nasce dentro. Uma pitada de memória, outra de imaginação, para somar ao terceiro olho, da intuição. Posta à mesa, em duas metades, a Arte: eterna cúmplice da inquietação. Todavia, a grande motivação do cinema é a inveja do poder de criação de Deus, o primeiro roteirista. Que até hoje não descobriu como terminar sua epopeica tragicomédia humana carregada de humor negro. Parece que, dessa vez, o final ficará por conta dos próprios personagens. A não ser que volte finalmente o mitológico consultor de roteiro e ator principal que se perdeu no caminho e já está dois mil anos atrasado. Talvez por ter medo do papel que lhe foi reservado no próximo filme. Dizem que só pega papel bom quando o Pai é diretor. O atraso já custou ao Estúdio Universal duas guerras mundiais e um tanto mais de mazelas e atrocidades; mas nada de o ator principal voltar ao set. O vazio largado é tão grande que, hoje em dia, qualquer figurante, num estalar de dedos passa a coadjuvante e logo a ator principal. Sem mais um roteiro pré-estabelecido ou a velha moral da estória, a ficção torna-se documental, os personagens, diretores e apenas um na plateia. E Deus em coma, amargando milênios de apneia. Não fosse a cinefilia de Jesus, há eras poderia ter acabado a última temporada de nossa infeliz mundo-novela. Um reality show divino, infame purgatório para todos os cretinos que somos nós.

 

 

 

 

Espelho

 

 

O terno é uma arma, cano duplo; o homem, somente o duto, o nome, somente o murro. Torturo o medo do fraco enredo; sisudo, o balbuciar do muro. Acuso, mas só aponto o espelho; na vez que pequei, eu sonho, na voz que calei, eu morto. Suponho não seja teu lar risonho, ao ler esses versos fanhos aos pêsames dos tacanhos. Apanho, não temo tua desforra; que me joguem nas masmorras se meu sangue esfriar. Ao mar os dejetos da peçonha; poucas gotas de vaidade não irão me condenar.

 

 

 

 

Os braços do polvo

 

 

Esse mundo de gente dançando com a morte é um tanto de crente comungando da fome, é um fardo no rosto e um sorriso-chicote. É a besta do tempo sovando a desgraça, é demais desalento pra pouca cachaça; é labuta que serve a cabresto e mordaça. É um ninho de cobras debaixo de um berço, é lamúria, é desterro sem fim nem começo, é na vala do terço que vem arruaça. É um punhado de povo largado aos porões, são os braços do polvo forjando grilhões; é a alma do lodo desses chapadões.

 

 

 

 

Liturgia da palavra

 

 

Eu sou o meu pastor, nenhum Senhor me faltará. Eu sou o meu Senhor, nenhum pastor ordenará. Pasteio o teu Senhor e tudo me há de sobrar.

 

 

 

 

Sobroço

 

 

Alquebrado em quebrantos febris, acossado entre vãs manequins, sobroçado no malogro do pus dos festins, abalroado em fétidas malocas e fugindo ao olfato dos mastins, amordaçado, mastigando de uma só vez os princípios e os fins; atordoado, enquanto negros tordos fardados digerem meus rins.

 

 

 

 

A glande e o ovário do não dito

 

 

O banquete dos vermes, a tartaruga-lira de Hermes, trovoar de alferes; as saudades, Cibeles. As noitadas de chuva, as anáguas são luvas e as escadas são nulas. No sombreiro das tarântulas digladiam tamanduás e lontras. Desço ao cio, subo ao transbordar; seco a paz, bebo ao confessar. Entre turbilhões acrobatas revoam chibatas de línguas de metal. Dissolvem-se as hemácias ao primeiro suspiro sombrio. Por brio, frio ou audácia, revolvo as entranhas e disseco minha própria carcaça, esvaindo em sangue que decora a folha-de-papel-em-branco em que escrevo. Escrevo com os infinitos quilômetros de meu intestino, escrevo expurgando em canções meus próprios desatinos; escrevo empunhando a vergonha como única honra dos renascidos. Escrevo para me suportar, escrevo para ludibriar os sentidos; escrevo como um caminhar por becos estreitos que escapam ao rio. Escrevo como se estivesse no cio, acaricio com todos os poros das mãos a tenra pele virgem da folha-de-papel-em-branco. Preparo-me para voltar ao transe desse delicioso rito, esmero-me para ser a glande e o ovário do não dito. Proscritos, comecem agora a voar pelos ares! Inauditos, soturnos replicantes, que façam da dor mil cantares! Que tracem altares invisíveis sobre cada passo de vossos viveres. Que sejam arcabouços dos mares, fragmentos dos deuses, a caótica completude do Nada; que vejam n'água esmeraldas. Que sejam a voz das mangueiras e a cor das cerejas. Que vejam na Morte apenas novo calor. Que tenham no Tempo seu humilde servo; que sejam senhores do único bem que possuem. E que colham os frutos na medida de vossa coragem. Amém.

 

 

 

 

Rua dos Lamentos

 

 

Sou o habitante profundo das galeras oceânicas de outro mundo, fui outrora navegante de um vulcão, colhi amoras no epicentro de um furacão. Plantei auroras nos desertos da solidão, tracei indicações em um mapa para os cegos do coração. Adentro hoje sombrios quartos a esmo buscando ir de encontro ao mais escuro dos meus medos. Levo o indicador ao fogo para ver se o fogo queima. Vou cavucando um rancor, trago o olhar sucumbido e os cabelos brancos — tão cedo e já tantos. Sem meus tamancos, derivo por olvidados portos, sufoco poemas e entrego aos porcos meus desenganos expostos aos quatro ventos das infames vitrines da Rua dos Lamentos.

 

 

 

 

Porto sem nau

 

 

O sadismo é o gozo do fraco. O contato é o medo do amargo. A autoflagelação é o preço do sentimento livre. O silêncio é o confessor da imprudência. A culpa esbarra nos ladrilhos de nossa carência. A abstinência forçada do sacrifício da inocência nos envolve de dúvida e violência. Quando os sentimentos começaram a rastejar, esquecemo-nos da força que é imaginar e só enxergamos colunas, cansadas de nos suportar. Persegui o erro premeditado para me punir. Escondi o talento desperdiçado para não cair. Despenquei embriagado para me evitar, mas o chão me abraçou e sussurrou cumplicidades anônimas, palavras cacofônicas a me provocar. Assim que as correntes começaram a se desintegrar, tive que escrever sem me deixar pensar, tive que ressuscitar palavras secas dentro do meu lar. Peixes noturnos vieram me desencantar. Templos soterrados de lama emergiram sobre as águas do meu mar. Tudo que um dia se quis enterrar voltou sorridente para me perdoar. Todo quadrado tornou-se circular, no fundo do beco nasceu um pomar e o ranger dos pêndulos parecia cantar. Desfigurando o meio e o fim, voltei ao Vazio para lembrar que nada esqueci. Uma ascendência singular me disse que já estava lá, como se suturas invisíveis do papel sangrassem em êxtase para me decodificar. Que para escrever basta sentir, inútil é pensar. Tudo que sai teve antes que entrar, todo segundo morto volta a espernear. Transformo em palavra tudo que o corpo tentou vomitar. Não é preciso inspiração para desabafar, não é preciso espelho para se enxergar, quando é doce o tempo que começa a terminar, quando o acaso se apaixona por nosso errante vagar. Ritmos olvidados nos levam a sonambular. Cristais quebrados acariciam sadicamente nossos pés anestesiados; a falsa dor ressuscita a coragem de reconstruir os olhos espelhados. Ignorando os gritos do corpo, pisei sobre todos os meus pecados, cantarolando a beleza do instinto destruidor de suas musas. Adentrei novamente o mesmo quarto escuro em que repousava meu indignado desapego, mas não mais senti o desconforto do assédio indecente do tempo. Não mais precisava me esbarrar nos móveis abstêmios do sangue de meus tormentos. E todo lamento mostrou-se fatal ante a excrescência da inércia mortal, ante a desinência do tempo verbal. Dez vezes calei o sinal antes de achar meu porto sem nau. O verso sem rima começa com o ponto final.

 

 

 

 

Genesis (post mortem)

 

 

As centopeias e seus aminoácidos desfrutavam do doce leite dos sargaços; espasmos frígidos voltavam a viver contra a púrpura nitroglicerina do espaço. O sereno quente do mormaço dançou entre gêiseres de poros esfoliáceos; cambaleantes vértebras enfim se viram livres de todo cansaço. As pedras esponjosas tocaram com desejo as sanhas das aranhas que lhes roçavam os membros minerais; no mar, todos os sais derreteram sua memória de pedra no eterno ventre de energia líquida. Lívidas borboletas evaporadas criavam as nuvens, que voavam peladas, sedentas ao redor de uma enorme bola de calor. Por desconhecerem  a dor, os sátiros não imaginavam que a mórbida hiena, enfadada, tramava o cinza das estátuas como última lembrança do Amor. Mas a noite sempre marcha ensimesmante, docemente arrastada por cavalos mágicos ao largo de moinhos de cera, a derreter abaixo do Sol sonambúlico travestido de Lua virgem. Quebrantos temperam as origens do fado pau-a-pique, semeiam seus alpistes aos olhos vociferantes; a carne, sempre em riste. Entre álibis prenunciados pela cartomante imaginária badalam tambores de alfaia, a epiderme da alma serpenteia como lanciforme arraia, trepida em caladas sinfonias sem claves, vislumbra os contornos do silêncio grafitados em palavras que vomitam novos ares e afãs, aguardadas manhãs; galopante saudade do primeiro dia de vida. A noite nunca exige o açoite aos que se trançam em cálidas frontes, aos que palmilham os montes sem medo ou suor; aos que não perdem de vista a eterna ebulição dos horizontes. O mato já dorme tranquilo, o riacho balbucia tenros orgasmos em cada sibilo, a coruja guarda a floresta dos homens enquanto digere nossos desatinos. As veias podem finalmente embalar o sono do sangue venoso. O fundo do poço se abriu ao mar de meu quintal, as mangueiras abraçaram toda incontinência do mal enquanto a terra beijava meus pés descalços, como quem dá a outra face ao carrasco. Banhado em unguento, belisco os cotovelos do vento, semeio esporos ao relento e ouço — pela primeira vez — o choro das pedras em que nunca tropecei.

 

 

 

 

[imagens ©saul leiter]

 

 
 
Fernando Ramos (São Paulo/SP, 1984). Desde 2000, publica poemas, contos e ensaios em mídias impressas e digitais. Em 2005, passa a atuar como compositor. Em 2011, publica ensaio no livro Os Filmes que Sonhamos junto dos principais críticos brasileiros. Em 2012, atua como assistente de direção de Frederico Machado no longa O Exercício do Caos, tido pela crítica como um dos cinco melhores filmes brasileiros lançados em 2013. Em 2013, publica quatro ensaios nos DVDs da Coleção Sérgio Ricardo, da Lume Filmes. Em 2014, funda sua produtora de cinema, Chiaroescuro Filmes e escreve, dirige e monta seu primeiro filme, o documentário A Praça pede Passagem (100 minutos), que participa dos primeiros festivais. Em 2015, publica seu primeiro romance, Egonia: 9 mm de prosa, pela Patuá.