AMORI MIEI

 

 

A festa na rua me enojou. Tive mesmo vontade de vomitar. Ouvi gente dando vivas ao presidente, como se ele tivesse algo a ver com o time campeão do mundo. Até o craque preferido do general, um sujeito esquisito chamado Dadá Maravilha, nem pisou em campo. 'Não vai ser fácil fazer esse povo ter consciência dos seus direitos, e ensiná-lo a construir o futuro', pensei. Mas, em seguida, ocorreu-me a ideia de que a cidade de São Paulo não tinha a exclusividade dessa alienação. O povo dançava e cantava em todo o território nacional. Tricampeonato do mundo. Bom, não era pouco.

 

Esta cidade, imaginava, talvez fosse a que melhor aceitaria a nossa Revolução Popular. Era um lugar onde todo mundo trabalhava, e muito, o tempo todo. Luxo, só na elite. A maioria das pessoas, burgueses inclusive, pensava apenas em progredir. Aquilo me impressionava. E não era reação de nordestino classe média. Conheci outras cidades grandes. Estive em Milão, até, num congresso da UNE.

 

A vibração de São Paulo mexia muito comigo, as pessoas correndo de lá pra cá, todo mundo tentando executar com capricho suas obrigações, atendendo rápido nos restaurantes populares, nos cafés. Descobri que até os mendigos eram mais objetivos, pediam e não ficavam olhando pra sua cara, como quem diz "filho da puta burguês, não pode me dar um tostão?". Nada. As pessoas os desprezavam e eles partiam rápido para outras. Cidade incrível.

 

Os companheiros me diziam que o Rio, sim, era politizado. E eu pensava comigo: com toda aquela gente escrota, pelada, passando o dia inteiro na praia? A Revolução Popular teria de ter muito cuidado, no futuro, para não ser avacalhada por lugares como o Rio e Salvador. Todo mundo me advertia, "olha, não generaliza", mas o Brasil da beira mar sempre me pareceu indolente, falso e reacionário.

 

Eu chegara há duas semanas a São Paulo com ordens expressas de me isolar em uma quitinete de um bairro chamado Aclimação. Um "aparelho", como a imprensa apelidava esses esconderijos. Cabo Genro, meu chefe imediato, só me revelara, genericamente, a missão: uma ou duas apropriações, ou assalto a banco. Treinara durante três meses em uma fazenda do norte de Minas e, por causa da missão, fora obrigado a adiar uma viagem a Havana, onde iria me aprimorar no manejo de outras armas. Mas eu me virava muito bem com a metralhadora Ina. E ainda metia uma 45 por baixo da cintura, do lado esquerdo.  "Eu faço o trabalho em São Paulo e depois vou a Cuba, Cabo Genro. Não fico chateado, não."

 

O Cabo, que talvez tivesse escolhido esse nome de guerra por ter sido, no passado, um militar modesto, era um pai para todos nós. Duro, exigente, até grosso, mas um pai.

 

*

 

Giovanna eu vi no meio da feira. Ali mesmo, na Aclimação. Ela se virou pra mim, pediu troco para uma nota de dez. Eu tinha, dei. Ela não passava de uns vinte, vinte e um anos. Mignon, magra, olhos negros enormes.

 

Ela: "Oi".

 

E eu: "Oi". Poderia ter-lhe dito: "eu já não lhe fiz o favor, troquei o dinheiro? Menina: sou um guerrilheiro e não tenho futuro pra você, tão linda que é, franzina, mas expressiva, expondo essa boca vermelha que promete beijos especiais".

 

Como posso explicar uma coisa dessas? A visão de Giovanna, desde aquele primeiro momento, me despertava a vontade de sexo, algo louco, automático, eu me excitava mesmo, pra valer, olhando seus cabelos escuros penteados de lado, a curva terna dos seios sobre a blusa azul claro. Havia acabado de conhecer a moça e já experimentara a primeira ereção, em sua homenagem. Pensei: 'estou carente demais'.

 

"Tá sempre por aqui, comprando?" Ela.

 

"Não, é a primeira vez".

 

*

 

"Não se envolva", dizia o Cabo Genro. "Um soldado é mais forte do que um santo".

 

Eu não era bem assim. Alucinado pelos olhos negros da moça, me deixei levar por ela, naquela primeira vez, até o grande jardim do bairro, um parque imenso com lago que servia a namorados e babás. Uma semana depois já trocávamos beijos de fogo, ela dizendo que não entendia o que lhe estava acontecendo, tão recatada, e eu, já com ciúmes, achando que seria apenas uma de suas trepadinhas pequeno-burguesas. Mas eu corria perigo: durante os dois anos de treinamento fora celibatário; nós todos, os companheiros, concordáramos em não levar mulheres à fazenda; e não havia como procurar profissionais nas cidades próximas. Enfim, estava mesmo descompensado. De sexo e de amor.

 

E já me apaixonara por Giovanna. A ponto de visitar sua casa singela, com quintal, e conhecer seus pais, filhos de imigrantes italianos que conservavam, até nos pequenos detalhes, toda a mística do país de origem. Enquanto meus companheiros não me contatavam, eu ia bebendo aquele vinho honesto, na mesa alegre, ao som de tarantelas, e, reservadamente, sob o caramanchão, acariciava, sugava, comprimia os seios da minha amada.  Houve uma tarde em que lhe tirei a blusa, completamente, e corremos grande risco.

 

"Amore mio", ela me dizia baixinho no ouvido, enquanto se deixava possuir por meus dedos loucos, nem um pouco incomodada com meu apetite agressivo. Havia um quarto de despejo, nos fundos. Giovanna arrumou um colchão velho, não sei onde, e pudemos nos despir.

 

"Não é mais virgem, Giovanna"?

 

"Ninguém mais é virgem".

 

Reagi feito criança, fiquei meio quieto, mas não quis lhe perguntar sobre o número um. Na minha terra não seria tão simples, mas aqui em São Paulo, não.

 

Menti, a ela e aos pais, dizendo-lhe que preparava o vestibular de Direito e que não a deixaria visitar meu apartamento ("é pobre e tenho vergonha"), enquanto ela me levava a conhecer sua enorme cidade, do Zoológico ao Pico do Jaraguá, do estádio do Pacaembu ao centrão, no Pátio do Colégio. Mas gostava da zona chique. Era fascinada por uma loja de roupas, Marie Claire, e sonhava vestir um daqueles conjuntos elegantes. Que eu jamais lhe poderia dar. São Paulo (e essa descoberta foi inquietante) começava a me encantar com seus cheiros. Claro, eu me fixava na colônia de capim-limão, ingênua e nostálgica, que Giovanna usava.

 

Foi em São Paulo que fui obrigado a usar batom de cacau, pela primeira vez, porque meus lábios se rachavam com o frio; tive de vestir pulôver e ainda uma japona por cima. Vi-me no espelho da casa de Giovanna com toda essa roupa e gostei de mim. Fiquei preocupado com isso.

 

Nos fins de tarde, um odor mais profundo, de vaga fumaça, me enchia os pulmões e, por algum motivo que jamais soube explicar, me deixava feliz. E nem me senti estranho quando Giovanna me apresentou à Galeria Metrópole, perto da Rua São Luís, de apartamentos imensos onde a elite morava e curtia seus vícios. A Galeria, com um cinema confortável e alguns bares, fazia desfilar uma alegria supérflua e frouxa, mas eu já não tinha forças para odiá-la.  Tinha gente famosa por lá. Uma tarde, vi Milton Nascimento sentado em uma das mesas, parecendo um pouco triste.

 

*

 

Certo dia, chegou um companheiro, um tal de "Regente", lá no apartamento, e se identificou segundo o combinado com o Cabo Genro.

 

"Os quadros da organização estão sumindo", ele disse. "Tem lido os jornais? (Não tinha). Caiu muita gente no último mês. Precisamos de recursos. Você vai ter de cumprir sua primeira missão. Mas vai ser só você e uma cobertura…"

 

"Qual o objetivo?"

 

"Um banco na Rua dos Pinheiros". Deu-me um papel com o endereço, horário, outras indicações.

 

"Onde encontro a cobertura?"

 

"Na hora, lá mesmo."

 

"Não tem perigo da meganha aparecer? Seremos somente dois…"

 

"Confie, né? O Cabo Genro que mandou."

 

A apropriação aconteceria às onze da manhã de uma terça-feira. Seríamos dois homens contra uma multidão de clientes imprevisíveis, sem contar a segurança armada. Muito arriscado. Na segunda à noite, véspera da missão, quebrei todas as regras e levei Giovanna ao meu aparelho. Mas tive o cuidado de esconder a Ina, a pistola, as caixas de balas e umas bananas de dinamite que guardava para qualquer imprevisto.

 

Ela olhou a quitinete sem móveis, com o colchonete no chão, disse-me que eu precisava de um pouco mais de conforto. Caímos no pobre leito e logo fugimos dele, rolando sobre o piso, animais alegres, eu cada vez mais intrigado com a fome de amor da minha amada. Fizemos o que nem eu conhecia. Ela comandava. ‘Onde aprendeu tudo isso? Será que houve muitos caras além daquele primeiro que a inaugurou?’ No fundo, eu me envergonhava dessas considerações, afinal machistas, e me sentia incapaz de qualquer outro sentimento que não uma espécie de encanto demente, quando ela repetia "sono tua, sono tua, sono mille volte tua…"

 

No dia seguinte, não apareci na Rua dos Pinheiros.

 

*

 

Foi muito dura minha conversa com o Cabo Genro. Disquei o número de telefone que havia decorado e que só poderia usar uma vez, segundo o trato. Meu velho líder estava irreconhecível. Me chamou de sacana e filho da puta umas dez vezes. Eu poderia ter dito que adoecera, uma febre súbita, e por isso não apareci no banco. Mas, de que adiantaria?

 

"Isso deve ser puta, isso deve ser puta!", ele esbravejava no telefone. "Você se corrompeu, cachorro! Se aburguesou! Não toleramos traição, você sabe!"

 

"Puta é a sua mãe, velho corno!"

 

*

 

Agora estou aqui, olhando as manchas no colchonete que me despertam o êxtase e me deixam em transe, sentindo que talvez seja possível viver outra vida que não esta, tão falsa e provisória, suicida; talvez revele meu verdadeiro nome a Giovanna, além de confessar que se ela não repetisse tanto "amore mio, amore mio, amore mio", eu não teria me transformado em um desertor, um rato, um filho da puta infiel. Ou talvez não diga nada, assuma os documentos falsos e morra para a vida revolucionária. Tenho sentido a sensação estranha de que, ao apaixonar-me por Giovanna, passei a gostar de mim mesmo, e muito, de um jeito que jamais imaginara.

 

Não estou bem. Minha cabeça não funciona direito. Há dois dias não apareço na casa dela, na verdade nem saio deste aparelho e não sinto o cheiro esfumaçado da cidade. A qualquer hora, alguém vai tocar a campainha. Pode ser Giovanna, com sua respiração curta de paixão. Pode ser um mensageiro do meu velho líder quase pai. Não vão me justiçar sem que eu reaja. Tenho amores a defender.

 

 

 

 

 

A MÃE

 

 

Veja só: usava o nome de Aurelina. Que bobeira. Gringa, cabelo de palha, sarda no rosto e escrito lá, Aurelina, na carteira falsa de identidade. Conservou o sobrenome, que é seu mesmo, Smith, talvez porque seja extremamente comum. Aurelina Smith Proença, a maior cafetina de todos os tempos.

 

Quando a pegamos, ela deveria estar com uns quarenta e dois, quarenta e cinco anos, se tanto. Na carteira, tinha apenas trinta e sete. Nenhum do grupo que fez a tocaia vai esquecer da cena: uma fazenda maravilhosa, com três piscinas, campo de golfe, futebol society, futebol de campo, quadras de tênis, etc., etc., e, lá dentro, vinte e oito mulheres deslumbrantes.

 

Que top model, que miss, que nada! Aquelas eram as mulheres mais lindas que já vi em toda a minha vida, a mais nova havia completado dezoito anos, a mais velha não passava de vinte e quatro. A fazenda era o jardim do Éden, o próprio, e eu, como chefe da turma, tive de me impor com mão grande: Aparício e Jota Carlos tentaram tirar casquinhas das meninas. E os outros três, se a gente facilitasse… Mas, nessas horas, o profissional tem de se impor. Por maior que seja a tentação.

 

Eu gostaria de ter chegado de uma forma mais discreta, mas havia uma informação reservada de que encontraríamos uma possível resistência. Que nada! O único homem por perto era o jardineiro, com mais de sessenta; o resto dos serviçais, todas mulheres. E havia quatro cachorros, grandes e vira-latas, que nos receberam com rabos em festa.

 

Chegamos em jipes camuflados e alguns dos meus meninos pularam das viaturas com metralhadoras à mão, gritando "polícia! polícia!" Ê zona… Ainda ouvi uns gritinhos, uma das moças desmaiou, mas a maioria conservou a calma. E Aurelina, cujo nome real a Interpol ainda não descobriu, aproximou-se de nós, na maior dignidade, e perguntou pelo responsável.

 

Eu me apresentei e não tive dúvidas: bati forte, pra desmoralizar.

 

"Eu sou o Piva, investigador Lourenço Piva, chefe da missão; você é a cafetina?"

 

Ela falava bem o português, mas o sotaque era triste. Respirou fundo, olhando-me nos olhos.

 

"O senhor, senhor Piva, deve cumprir o seu papel constitucional, vir até aqui, invadir minha propriedade, etc. Mas eu não sou uma cafetina; eu sou a Mãe. A verdadeira."

 

As deusas começaram a se aproximar dela, carinhosamente, algumas chegaram a abraçá-la. Eram bonitas demais, aquelas moças, e até para um cara experimentado como eu ficava difícil acreditar que estava diante de putas. Dei ordem ao Aparício para pedir dois ônibus. As moças se desesperaram. Algumas começaram a chorar mais alto. Outras vieram, solícitas, de dentro do casarão, trazendo bandejas com champanhe. Fiquei irritado.

 

"Dona Mãe, é o seguinte: a senhora e suas filhas vão de ônibus para a cadeia, na capital. Não há outra solução. O meu pessoal vai esperar os ônibus, que deverão chegar em duas horas no máximo. Eles têm cantil para beber água, não aceitarão nada de vocês, são policiais experimentados. E eu vou rezar para que a senhora não me ofereça propinas, porque aí a sua situação se complica de vez. Outra coisa: ninguém vai fugir daqui. Temos pessoal de apoio cercando a fazenda."

 

"O senhor é truculento…"

 

"A senhora não imagina o que é truculência."

 

Pela experiência, eu sabia que prostitutas e travestis são passivos. Quando presos, não fogem. Aguardam o camburão, sofrendo, e seguem, lacrimosos, até o auge da humilhação, como se isso lhes compensasse a alma. Aquelas meninas entrariam nos ônibus, uma a uma, de olhos vermelhos mas altivas, apenas preocupadas com as fotos dos jornais e a repercussão diante das famílias e dos amigos. Agora mesmo, dentro da casa, algumas já deveriam estar ligando, através de celulares, para seus advogados. Os quais, com certeza, iriam alegar violência policial, constrangimento, até calúnia, injúria e difamação, já que não teríamos como provar que se tratava de prostitutas de luxo. Sempre o mesmo filme.

 

Desta vez, no entanto, iriam ter uma surpresa. Nossa operação se iniciara no cliente final, uma rede de boates da Europa, e toda a documentação da encomenda estava conosco, inclusive a programação das passagens na classe executiva.

 

"Posso falar com o senhor reservadamente?", perguntou a Mãe.

 

"Claro, vamos até ali."

 

Seguimos para uma varanda florida, com trepadeiras bem cuidadas. A Mãe recostou-se numa preguiçosa, me ofereceu outra, mas eu fiquei de pé.

 

"É desagradável para mim ficar olhando o senhor desse jeito. Não quero amolecê-lo", ela sorriu, amarga. "Não vou resistir. Por favor, sente-se."

 

Aí me sentei, não sem antes dirigir um olhar de advertência aos homens: nada de conversinhas com as ninfas.

 

"O senhor sabe, senhor investigador, que está destruindo sonhos?"

 

"Sonhos maus, pesadelos, sim, eu sei. As meninas vão chegar à Europa, serão engolidas pelo esquema sujo das próprias boates; vão se viciar em drogas leves, depois nas pesadas, aí destruirão a saúde, a autoestima, e depois a beleza, o frescor da pele, e, decadentes, mudarão de empresa, irão baixando de nível cada vez mais até morrer num beco de cais do porto…"

 

"Visão machista e romântica do negócio do amor, o senhor me desculpe. As minhas meninas acabam se casando com os gringos, tendo filhos e voltando ao Brasil, às vezes como empresárias sérias e produtivas. Pessoas felizes. Ou o senhor acha que mulher gosta de ser profissional o resto da vida? Que não tem outros sonhos?"

 

"A senhora me chamou até aqui para dizer isto? A senhora acha que não conheço puta?"

 

"Por favor, senhor, modos…"

 

"Que modos… A história é a mesma, sempre, dona cafetina, desde o princípio do mundo."

 

Levantei-me, irritado, e fui para junto dos meus. Começou um grande movimento na casa: as mocinhas trocavam de roupa; queriam ser presas de jeans. Umas se transformaram completamente, para disfarçar o mais que pudessem os traços fisionômicos; todas passaram a usar óculos escuros de grife.

 

Os ônibus chegaram na hora certa e achei que as meninas estavam muito confiantes, pois não quiseram levar as próprias malas. Meu pessoal não encontrou muita coisa na fazenda. Mas se impressionou com a infraestrutura de esporte, com aparelhos importados que poucos clubes possuem, e com a quantidade de garrafas de champanhe francês, a única bebida alcoólica, aliás, que havia ali.

 

Subiram no ônibus, como eu imaginava: em silêncio, mas de cabeça erguida. A Mãe foi a última. Trouxe em mãos um álbum de capa dura que me entregou, discretamente. Subiram todas no ônibus. Nós fomos atrás, com nossos jipes ridículos, escoltando. Por algum motivo, não quis abrir o álbum na frente dos outros.

 

Preferi vê-lo em casa, com calma. Um susto: a cada duas páginas, havia um nome de mulher e fotos de famílias, em geral uma mulher bonita, um marido gringo e muitas crianças. Sorrisos. Parques temáticos. Pequenos paraísos, mares azuis. Crianças e o Mickey, na Disneyworld. A elegante esposa com os sogros felizes. Crianças sorrindo em Paris. Reconheci também Nova York, Londres e até cidades árabes, a julgar pelos minaretes. As putas da Mãe vivendo sua segunda vida, o sonho. Fiquei pensando: qual será a porcentagem dessas que renascem, ou nascem para uma vida normal, e desmentem minhas teorias?

 

Nunca mais fui o mesmo depois de folhear aquele álbum.

 

 
 
 
 
 

SESSENTA POR CENTO

 

 

Gosto deste shopping. Ele dá a sensação de que os produtos que compramos aqui são exclusivos. Como conseguem isso, não sei. Nem estou certo, também, se tiveram essa intenção. Estratégias de marketing me parecem, às vezes, tiros no escuro que acabam dando certo por motivos jamais imaginados pelos próprios marqueteiros. Esta é uma discussão bastante complicada.

 

Mas é possível que tenha sido algo deliberado, sim, no momento em que decidiram que todas as lojas, sem exceção, teriam de ser aconchegantes, com gente sorridente, cores suaves, poltronas confortáveis, tudo organizado por meio de uma decoração discreta e de bom gosto. É interessante, por exemplo, que existam, na maioria das lojas, pequenas fontes de água corrente, das mínimas, que cabem em uma mesinha, às de um metro por um metro, graciosas e criativas, com anjinhos barrocos a fazer xixi. Água corrente sempre me fez bem; faz a todo mundo, acredito. Então, as lojas transformaram-se em sítios onde você compra sem pressa e, por isso mesmo, compra muito mais.

 

Já andei bastante por aqui, desde que inauguraram, há uns trinta e cinco anos. Para consumidores preguiçosos, como eu, um shopping é uma delícia: tudo próximo, tudo fácil. Houve uma época de trottoir, também, e muito flertei por estas ruas. Depois, usei o shopping para passear com meus filhos, da infância à adolescência. Consumir, sempre o fiz com alegria e bom humor. Hoje não vai ser diferente.

 

Mas o produto é novo para mim. Jamais imaginei que, um dia, fosse obrigado a usar uma peruca. Na verdade, não sou. Olhando-me no espelho, no entanto, senti que não tinha o direito de assustar as pessoas com a minha calvície súbita.

 

Vaidoso? Talvez. Estético, é a definição mais precisa. Encontrei-me com Roger Stelita, meu velho colega de faculdade que, apesar do adiantado da idade, continua desagradavelmente irreverente.

 

"Trajano!", ele gritou na rua, quando me viu e demorou um pouco a me reconhecer, "você assim, careca, ficou igualzinho a uma caceta"!

 

As pessoas que passavam por perto olharam para ele (e para mim) com uma certa pena. Mas ele se dobrou de dar risada.

 

"Ai, meu Deus! Ai meu Deus! Você me mata de rir, Trajano! Olha, garoto, se você puser uma gola rulê cor-de-rosa vai ser preso por atentado ao pudor!"

 

"Muito bem, Roger, muito bem!", eu disse, sem outro comentário a fazer, e fui saindo, de mansinho.

 

"Ei, figura, a gente não se vê há dez anos e você já está caindo fora? Venha cá, vamos tomar uma aqui perto."

 

Fui mais por piedade. O terno dele: antigo e amassado, cheio de manchas; a gravata fininha, fora de moda, com um excesso de flores coloridas. Roger possuía, também, alguns problemas ortodônticos jamais corrigidos que, com a idade, tornaram-se, digamos, odiosos.

 

Seu rosário de queixas me pareceu inédito, mas ele o desfiava rindo. A tragédia rondava-lhe o lar (perdera um filho num acidente de automóvel; a esposa sofria do Mal de Alzheimer e confundia Roger com o próprio avô dela) e já não conseguia manter sua segunda casa, para onde a amante, trinta anos mais nova do que ele, levara toda a família. Eu não tinha dúvida de que, no final da conversa, Roger iria me pedir algum dinheiro emprestado, mas não foi isso o que aconteceu.

 

"Quando quiser, então, Trajano, vá me visitar. Certamente eu terei mais desgraças para lhe contar. Mas diga-me qual endereço você vai preferir, se o da matriz ou o da filial. A vantagem, na matriz, é que Débora não irá reconhecê-lo. Isso facilitaria o nosso papo, pois não?"

 

Ele ria, ria de si mesmo, e, antes de se despedir, deu-me um conselho.

 

"Trajano, por que você não compra uma peruca? Vai ficar ridículo, mas em compensação você remoçará vinte anos. Tudo na vida tem as suas vantagens e as suas desvantagens, né mesmo?"

 

Disse "vantagens" e "desvantagens" imitando um humorista famoso que já perdera a graça havia anos.

 

"Roger, eu vim pro shopping exatamente para isso: comprar uma peruca."

 

"Pois não lhe ajudo por um motivo muito simples: quem tem duas famílias leoninas não pode perder tempo. Estou fechando um negócio sujo com o governo. É o único jeito de ganhar um dinheirinho mais grosso."

 

"Roger", eu o parei, tocando-lhe o ombro, "sabe que a sua mulher… verdadeira tem razão?"

 

"Ah, é? Em quê?"

 

"Você está a cara do avô dela."

 

Ele morreu de rir, não se embaraçou nem um pouco.

 

"Você resolveu me imitar, figuraça?"

 

Não foi uma ideia fácil de digerir, a de imitá-lo, mas logo voltei à minha pesquisa comercial. Alguém me havia dito que a loja de perucas ficava logo atrás da casa de vinhos. E, realmente, lá estava: o nome da lojinha era "coberturas" e, na vitrine, imagens de carecas famosos usando perucas de photo shop. Um achado do marketing! Todos pareciam mais simpáticos.

 

Lá dentro, somente eu e uma outra cliente, mulher de uns trinta anos. Será que ela procurava uma peça para o marido, vítima de entradas cada vez mais fundas? Ou queria dar um presente no Dia dos Pais ao seu querido velhinho sem pelos? Uma vendedora baixinha, gorducha, muito jovem e linda de rosto, veio me atender com aquele sorriso aberto que era a marca registrada do shopping.

 

"Posso ajudá-lo?"

 

"Muito. A senhora me vê…, não, senhora, não, você parece uma filha mais nova, ou até uma neta… você vê esse meu problema?". Disse-o apontando para a minha própria cabeça, a "caceta". "Preciso cobrir-me de novo, menina. Quero ser feliz. Olhar-me no espelho sem me sentir um ET…"

 

"Temos dezenas de opções maravilhosas para o senhor", continuou o sorriso. "De que cor eram os seus cabelos?" ("Eram", disse ela; nem sequer uma energia etérica ficou no lugar das madeixas; a calva parecia mesmo irreversível).

 

Fiquei mudo por um tempo.

 

"Bem, eram grisalhos."

 

"Sim, mas a cor original?"

 

"Pretos. Quer dizer, não exatamente. Castanho-escuros quase pretos. É possível uma cor assim?"

 

"Desculpe-me, senhor, mas há o preto, o castanho-escuro e o castanho-claro. E outros tons mais claros ainda, até chegar ao loiro. Temos perucas grisalhas também, com a cor básica que o senhor quiser."

 

Levei quase uma hora experimentando as perucas: a cada olhada no espelho, via uma outra pessoa, com um outro nome e personalidade diversa da minha. Com uma "cobertura" curta, castanho-escuro, por exemplo, senti-me um general aposentado, arrogante e manipulador. Mas, em todos os rostos, percebi um certo ar clown, ridículo e postiço ao mesmo tempo, inerente aos peruquentos.

 

"Minha filha, acho que vou desistir. Eu me acho horrível sem cabelo, mas fico pior de peruca. Com qualquer uma delas."

 

"Por que o senhor não tenta o aplique? Gasta-se um pouco de dinheiro, mas há um método novo que se faz fio a fio. Fica perfeito. Nós podemos tratar disso. E o senhor só paga em dez vezes, no cartão."

 

"Há dois problemas", ponderei. "Não sei se o meu médico permitiria qualquer intervenção física, mesmo micro, até um simples implante de cabelo. Outra, é que pessoas como eu não devem fazer compras a prazo."

 

Ela fingiu que não entendeu.

 

"Quimioterapia é uma estratégia arriscada. Ela pode matar o paciente", esclareci.

 

A mocinha fez desfilar um silêncio social.

 

"Talvez o senhor tenha razão", ela disse. "Mas sabe que não parece que o senhor esteja fazendo químio?", mentiu ela. "Em geral, as pessoas ficam muito abatidas."

 

"Bem, de qualquer forma, tenho quarenta por cento de chance do meu cabelo voltar. Segundo as estatísticas."

 

Ela me desejou felicidades, sempre sorrindo, e no íntimo revoltada, certamente, por perder tempo com um sujeito que, apesar de estar sessenta por cento morto, continuava vaidoso. Melhor dizendo, esteta.

 

 

[Conto do livro O Homem dentro de um Cão. São Paulo: Terceiro Nome, 2007]

 

 

 

[imagens ©jennifer collier]

 

 
 

 

Fernando Portela é escritor, jornalista, roteirista e editor. Trabalha intensamente, há muitos anos, as várias formas da comunicação, em especial, a construção do texto. Começou a escrever ficção e não ficção (reportagem) quase ao mesmo tempo, por volta dos treze anos de idade, numa época em que os adolescentes procuravam trabalhar o mais cedo possível. Um dos fundadores do Jornal da Tarde, de São Paulo, é autor de boa parte das grandes reportagens que marcaram aquele jornal. Guerra de Guerrilhas no Brasil (primeiro texto de fôlego sobre a guerrilha do Araguaia) é uma delas e, certamente, a de maior repercussão. Transformada em livro, vende há mais de 30 anos. Esteve no Jornal da Tarde em três períodos, somando 28 anos. Foi de tudo lá dentro, de repórter a editor e repórter especial e, no último período, ocupou o cargo de Diretor de Projetos Especiais. Como escritor de ficção, possui uma vasta produção, adulta, juvenil e até infantil, em conto e novela. Nos últimos anos, publicou uma trilogia de contos adultos com os livros Allegro (2003); O Homem dentro de um Cão (2007); e Memórias Embriagadas (2008). Lançou, na e-bookstore da Amazon, o livro de contos A Velha Chama e A Negra Solidão. Ultimamente, vem trabalhando com cinema, escrevendo roteiros para filmes e peças experimentais de teleteatro, ao lado do diretor italiano Simone Colombo. Mantém a Loqüi Editora, onde produz livros sob encomenda. Escreve no blogue Literatura de Fernando Portela: fernandoportela.wordpress.com. Clique aqui e leia o que disse sobre ele o colunista Ricardo Setti, da revista Veja.