painéis de boris anrep | ilustração dos provérbios do inferno

de william blake | tate britain | londres
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

— Mas, então, você defende a tese de que o homem é o ser que deseja?

— Não lhe parece?

— Bom, antes de desejar, é preciso sobreviver. A água e o alimento, antes de nos serem prazerosos, são uma necessidade.

— Não discordo, evidentemente — aliás, quem o faria? Mas você não gostaria de ver suas satisfações reduzidas à mera sobrevivência, gostaria?

— Claro que não. Apenas afirmo que, no limite, o homem pode ser privado de todas e quaisquer benesses, mas ninguém vai muito longe sem comer e beber.

— Ora, ora, veja só: me parece que você, a despeito do seu materialismo filosófico, não está lidando com o homem realmente existente, o homem de carne e osso.

— Pois eu não vejo como.

— Então, vejamos: por que será que alguns milionários se matam quando veem seus muitos zeros à direita entrarem na fila da sopa e do pão à esquerda?

— Hum…

— Consta que, em uma quinta-feira chuvosa, o Sr. Geld Lust se hospeda na suíte presidencial do Waldorf Astoria, em Nova Iorque. Tapetes vermelhos, champanhe, canapés, caviar, chocolates belgas, nada lhe poderia faltar. O gerente se encarrega, pessoalmente, de providenciar uma sósia de Marilyn Monroe para ciceronear o Sr. Lust. Ocorre que, precisamente às 23:59:59, um grito afiado como um punhal leva todo o staff do hotel ao 69º andar. É preciso arrombar a porta, a irmã nua de Marilyn Monroe ainda se encontra em estado de choque. "Mas o que foi que aconteceu? Onde está o Sr. Lust?". Marilyn só faz emitir grunhidos histéricos, mas seu indicador direito, trêmulo como um passarinho, não deixa de apontar para o terraço. O gerente vai até lá: nem sinal do Sr. Lust. Súbito, sirenes de ambulâncias e viaturas atiçam o poder dedutivo do funcionário. Ele se debruça sobre o parapeito e, após driblar a vertigem, consegue discernir, 69 andares abaixo, a multidão que se aglomera ao redor do cadáver do Sr. Geld Lust. Um novo grito: o concierge alega ter descoberto o motivo da tragédia sobre a calcinha vermelha de Marilyn geometricamente disposta no centro da cama king size.

— O que foi que ele encontrou?

— Sobre a calcinha vermelha de Marilyn Monroe geometricamente disposta no centro da cama king size, o concierge encontra dois extratos bancários. O primeiro, com data de 23 de outubro, apresenta o saldo credor de US$ 10.000.000.000,00. O segundo extrato apresenta o saldo devedor de US$ 1.000.000,00. Data: 24 de outubro de 1929.

— Dia de Finados em Wall Street.

— Que Deus tenha o Sr. Geld Lust em bom lugar.

— Será que a concubina teve que pagar a conta do Waldorf Astoria?

— Consta que a sósia de Marilyn ligou para a irmã famosa e ficou tudo resolvido.

— I see your point, meu caro: o homem é o mundo dos homens, o homem quer entre os demais, o homem quer como os outros — o homem é insuflado a querer mais do que os outros.

— Ecce homo: eis o homem de carne e osso. O homem nasce, verdadeiramente, quando pode desejar. A história do homem começa sobre o túmulo da necessidade.

— Ora, então nosso século XXI ainda convive, em enorme medida, com a pré-história do homem.

— Subproletários de todos os países, uni-vos!

— Mas, de fato, you have a point: o desejo tem uma face humana que falta à necessidade dos animais.

— O bom e velho Marx já dissera: as abelhas erigem suas colmeias mimeticamente, ao passo que o homem, antes de soerguer a Torre de Babel, constrói (e deseja) o edifício mentalmente. 

— Interessante, bem interessante. Mas, se me permite, gostaria de lhe dizer que, neste momento, é você quem não está falando sobre e com o homem de carne de osso.

— Pois eu não vejo como.

— Então, vejamos: não lhe parece que, hoje, o capitalismo faz os desejos regredirem à condição de suma necessidade? É preciso desejar. Quando caminho pelos bairros pequeno-burgueses de Chicago, me deparo, a cada quarteirão, com o desejo industrialmente perfilado. Casas idênticas e geometricamente postadas: os mesmos jardins frontais e laterais, os mesmos tamanhos, as mesmas fachadas, o mesmo número de quartos, dois andares, o porão, a garagem na parte anterior do terreno, o cortador de grama, o cachorrinho. Mudam apenas as cores, mas é bem possível deduzir que, quando o Sr. e a Sra. Smith pintarem sua casa de bege, o Sr. e a Sra. Johnson abandonarão o bege e pintarão a sua de azul, ao passo que o Sr. e a Sra. Williams, enjoados do azul, optarão pelo amarelo claro. (Quando dobrarmos a esquina, o Sr. e a Sra. Jones, o Sr. e a Sra. Brown e o Sr. e a Sra. Davis desdobrarão o padrão cromático de seus vizinhos de quarteirão com as demais cores do espectro.) Aqueles que não assistirem a mais um capítulo da minissérie dominical não conseguirão participar das rodas de debate com os colegas de escritório na segunda-feira. (É bem possível deduzir os desdobramentos da minissérie com suas novidades sempre idênticas, já que as tramas se repetem assim como a sucessão idiota das semanas, mas as abelhas humanas concebem o happy end, antes de mais nada, no clastro da imaginação, mentalmente, para só depois, com a confirmação da mesmidade, o happy end sempre idêntico usurpar de todos e cada um de nós o ímpeto por algo realmente diferente em nossas vidas. "Ah, felicidade é coisa de novela. Fazer o quê? C'est la vie".) Não foram, de forma alguma, o socialismo e suas migalhas que levaram a igualdade às últimas consequências. O capitalismo, veja só!, é que pode advogar para si a equiparação quantitativa e qualitativa dos homens e mulheres. O desejo se torna uma derivação estatística. A liberdade pertence à margem de erro. A crise do capitalismo torna ainda mais masoquista o ímpeto pela diluição de si na massa industrial. A crise torna a igualdade ainda mais negativa: o que antes era idêntico em abundância agora passsa a ser igualmente escasso. O imperativo categórico do gozo, ao invés de nos levar a orgasmos múltiplos, multiplica as prescrições de receitas de bem viver. As drágeas recarregam as pilhas do controle remoto. A tarja preta se esgueira sob as cores vivazes das fachadas. Diante dos slogans e jingles que nos doutrinam a viver, onde estaria, meu caro, a polifonia do homem que deseja?

— Hum… Mas e se a doença estiver incubando sua própria cura?

— Pois eu não vejo como.

— Então, vejamos: a depressão aponta não apenas para a impossibilidade de continuar a ejacular a tautologia do consumo. É mais do que esperado que os ramos reacionários da psiquiatria e da psicologia enquadrem a inadaptação dos indivíduos industriais — vale dizer, a impossibilidade de trabalhar — como uma patologia que requer tratamento oral e/ou intravenoso. (O açoite do eletrochoque só é utilizado em último caso, é claro. Afinal, somos a vanguarda da civilização.) Quando o todo está doente, a inadaptação das partes — seus escombros e estilhaços — tem muito a nos dizer. É bem verdade que a administração dos desejos coage todas e cada uma de nossas vontades para a (re)produção do existente. Mas a depressão também aponta para um desejo que não ainda não pôde vir à tona, um desejo que ainda não está aqui, um desejo que ainda não tem nome. A imaginação contém em germe o ímpeto de algo inteiramente outro. Veja só: há alguns meses, eu tava ficando com uma moça que é psicóloga. Ela me contou uma história bem curiosa sobre um paciente que alternava picos de entusiasmo e inação muito pronunciados. Walter — chamemo-lo assim — não parava em emprego algum. A Juliana me dizia que ele tinha uma vontade difusa, uma vontade que transbordava o mundo. Na cabeça dele, tudo era efusivo, vibrante, elétrico. Quando ele aterrissava no nosso vale de lágrimas, o ímpeto se arrefecia. Walter se ensimesmava. A Juli o poderia ter tipificado como um neurótico à beira da psicose com surtos de autismo, ansiolíticos e antidepressivos estavam à mão, mas ela insistiu em ouvi-lo. Ele tinha algo a dizer, mas ainda não sabia o que era. [Aliás, em uma sociedade como a nossa, o que e quem poderia ajudá-lo a (re)conhecer-se?] A Juli teve a ideia de, com cautela, pedir alguns conselhos ao Walter. Como o mundo com o qual ele lidava tinha muitos elementos projetados pela imaginação — o alter ego vive no alter mundo —, a Juli pensou que, se chamasse o Walter para lidar com alguns problemas que vinham dela, ele daria mais indicações sobre como sua dinâmica de pensamento transbordava, na mesma medida em que teria que se posicionar como conselheiro em relação a questões que não vinham de sua Atlântida submersa. E não é que a heterodoxia da Juli fez com que o Walter se expandisse? A euforia começou a encontrar objetos, ele passou a fazer planos e pensava em maneiras concretas para executá-los — a Juli me disse que o Walter era tão autorreflexivo, mas tão autorreflexivo, que o fato de ele ter que pensar sobre questões que vinham dela fez com que ele tivesse que reconsiderar a própria percepção que tinha do mundo — do seu mundo. Esses momentos, a Juli me dizia sorrindo, pareciam uma epifania. Até que, um dia, o Walter não foi à terapia. Uma falta, duas faltas, três faltas. A Juli nem precisou ligar pra mãe do Walter, a Dona Arsênia apareceu por lá desesperada!

— E o que é que tinha acontecido?

— Elas ficaram sabendo um mês depois. Walter largou mais um trabalho, sacou o que tinha e o que não tinha do banco e se empirulitou num ônibus com destino ao Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses. Consta que ele levou cinco dias para chegar até lá — o trajeto teria incluído caronas e trechos a pé. Os guias começaram a estranhar aquele rapaz que passava dias e mais dias contemplando o desenho errante das dunas à beira das lagunas. Até que a fotógrafa dinamarquesa Inga reparou na forma pela qual Walter movia a cabeça a reboque da direção do vento para acompanhar a modulação das dunas. Inga lhe emprestou sua Leica de estimação. "Acho que você vai encontrar sua linguagem através dessas lentes". Walter logo se familiarizou com tudo. O zoom era sua investigação favorita. Com ele Walter fotografou as gotículas de água salpicadas de areia sobre os pés de Inga — Juli me mostrou a foto que ficou formidável com o verde cristalino e desfocado da laguna ao fundo. Walter também se mostrou um eximío esteta do corpo feminino: ele fotografou a quase nudez de Inga ao amanhecer, quando apenas um lençol branco e suave lhe ondulava o corpo e fazia entrever os bicos intumescidos dos seios. Os lábios levemente entreabertos prenunciavam a abertura dos olhos, mas Walter coagulou Inga imediatamente antes de ela acordar.

— Ora, nós precisamos da loucura de Walter!

— E da entrega de Inga.

— Que encontro, hein?

— Me parece que Walter e Inga já estão tateando por um terreno poroso e totalmente outro. O que é que lhes vai acontecer? Eles vão ficar juntos? Mas o que é ficar juntos para eles? Imaginemos Walter e Inga a conversar em meio ao cosmos fotográfico. Seus sentimentos são cores, texturas, a ambivalência do foco. Eles são os peregrinos do alter mundo. A renovação da humanidade sempre precisou dos nômades.

— Mas a humanidade assentada pelo advento da agricultura tem um pavor atávico do nomadismo — lembranças da intermitência da caça e da fome.

— Sem dúvida. O homem, ao ser o mundo dos homens, traz consigo o entrecruzamento de todos os tempos, ideias e temores. O arqueólogo do espírito escava a tangibilidade do corpo e encontra as raízes soterradas (e supuradas) da memória. O homem é um sítio arqueológico que quer reconciliar o que ainda não foi cicatrizado.

— Isso me lembra a epígrafe de um velho livro que eu nunca pude esquecer.

— Sou todo ouvidos.

— "Life does not live".

— A administração totalitária da vida está quase fazendo com que a vida viva por nós.

— É por isso que, no crepúsculo do indivíduo e no réquiem da liberdade, "life does not live" nos incita ao nomadismo para que transbordemos de nosso torpor.

— O bom e velho poeta William Blake concordaria com você.

— Você quer dizer que, "se o doido persistisse na sua loucura, ele se tornaria sensato?".

— Na verdade, eu tinha em mente três dos Proverbs of Hell.

— Sou todo ouvidos.

— Tese: "One thought fills immensity".

— E a antítese?

— "What is now proved was once only imagined".

— Será que há uma síntese?

— O terceiro provérbio desponta como a promessa de redenção de seus dois irmãos mais velhos: "The cistern contains, the fountain overflows".

— Ora, ora, a promessa, por si só, não nos traz o dilúvio.

— Ué?! Agora eu não entendi! Não fora você que, a princípio, me falara sobre a água como a necessidade primária e anterior a todo e qualquer desejo? Onde está sua sede agora?

 

 

Chicago, 15 e 16 de fevereiro de 2015.

 

 

 

março, 2015