Diagnosis

 

 

                   (para a vó dele)

 

 

Qual flor

desperta cedo

e sem sair do lugar

perambula por aí

respirando a curiosidade

dos que velhinhos

veem tudo como a primeira

e a última vez

 

Depois segue

recordando a vida

crianças pequerruchas

que se escondem debaixo da saia

da mãe e do pai

sentem medo

mas saltam no pescoço

agarrando sonhos

recolhendo os trapos e as roupas

pedaços de traumas

estendidos no varal

 

Caminha pela sala

o campo verde

lagos

busca o sol

dá a volta ao mundo

sem quase sair do eixo

girassol

 

Depois esquece

vegeta vendo televisão

repete qualquer coisa

sobre o artista da novela

parece que se alimenta de luz

pergunta sobre o que vai ter no almoço

e come pouco

 

Sofre arrancando os lábios

toma os remédios

morde com medo de morrer

sofre mastigando os dentes

sofre devorando o medo

e às vezes vomita

e briga com a morte

murcha

 

se banha vagarosamente

acariciando os infinitos lábios

que seu corpo enrugado construiu

escala montanhas com os dedos

a pele fina das pétalas

 

se perfuma

e cheira as costas da mão alheia

que lhe ajuda e lhe beija

veste algodão e agradece a noite

é hora das lágrimas escorrerem pela terra

hidratando os corações-sementes

 

dorme e sonha com os netos

imaginários

e algum fantasma

 

Parece que vai viver para sempre

e vai.

 

 

 

 

Retratos

 

 

Eu não me lembro dos meus avós paternos

Eu tinha quatro e cinco quando Emilia e Osny faleceram

Não tirei foto com eles

e depois nunca consegui falar deles

Mas sempre que viajo sozinha

e encontro uma borboleta branca ou preta

sorrio e digo Oi vó ou Oi vô

Na minha cabeça,

eles têm a cara da Virginia Woolf

e do Carlos Drummond de Andrade.

 

 

 

 

 

Teoria do cansaço

 

 

Sentei-me no meio do caminho

me gritaram pedra

me tocaram pedra

me notaram pedra

me quiseram pedra

não chorei, não movi, não cantei, não senti

me cobriram de musgos

formigas e flores

me fizeram um poema

me traduziram

projetaram levar-me a um museu

quando ao final descansei

eu com minhas retinas livres

me levantei e parti.

 

 

 

 

 

 

A poesia viverá

ainda que ninguém me escute

e veja a escuridão

ainda que a água siga subindo

e me doa o corpo

ainda que a rejeição se misture ao esquecimento

e nasçam ratos

ainda que me peçam caos

e se abra um buraco no chão

ainda que eu morra na fuga

e alguém me chame

ainda que eu veja a luz

e a água siga baixando

ainda que me doa a alma

e o abraço se misture à memória

ainda que nasçam flores

e me peçam silêncio

ainda que se faça amor no chão

e eu morra na espera

A poesia viverá

 

 

 

 

 

 

Mulher terra em transe

 

 

É frio

de trincar anseios

joanete morde meias

rasga segunda pele

dilata couro

arrebenta botas

escancara seu tamanho

(contido)

osso que faz doer

abrochar a pressa

tesa

trocar qualquer caminho

pelo esticar do dedo

 

Desatados os nós,

não semeia gritos

 

aponta:

 

vermelho

roxo

branco

e preto

 

descalça,

meu joanete é metonímico

um corpo em expansão.

 

 

 

 

 

 

Prólogo

 

 

                            "Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho...".

                            Luís Vaz de Camões

 

 

Quando as noites ganharam patas

e deixaram de rastejar pela beira

respirando cada vez menos dentro d'água

enfiando seu focinho gelado pelo lodo

e abrindo a boca atrás de outras criaturas

que, como elas, já sobreviviam fora do rio

eu deixei de amar você.

Isso foi quando estas já não discutiam se os homens

eram seres inteligentes ou somente os predadores mais ferozes dos últimos tempos

capazes de causar tempestades químicas com a mesma paixão

que aplaudiam um teatro de fantoches

quando às religiões convinha conter a verdade ou à natureza das coisas

e era patrimônio imaterial da humanidade a cultura da memória

Depois, tudo foi epílogo.

 

 

 

 

 

 

Lista de presenças

 

 

Desprender da leveza

do gozo matutino

recebido carinhosamente

por ele

tão fluido

quanto o peso

do suor tenso

que escorre

em certas noites

nas ruas com medo

do outro

 

Despedir da lágrima

de saudade de quem nunca

pertenceu e esperar que a saliva

preencha o vazio da fome

(ainda não é hora de correr

nem comer)

 

Habitar a nuvem

que dissipa e se condensa

proporcionalmente à

quantidade de água

acumulada

 

Ser setenta por cento

líquido

e outros trinta por cento

carne encharcada

secando ao sol

 

Reconhecer a alteridade

e o caos na composição

que há em cada gota

milenar do corpo

e desistir de todo e qualquer

preconceito

 

já que eu também sou você.

 

 

 

 

 

 

Falha distância

 

 

De longe vi a cena

e naquele momento soube

que através daquele furto

ele seria mais um homem

dos quais eu tenho medo.

Depois fui para o outro lado

desconfiada

escavando fendas

vasculhando lapsos

Quando foi

que eu deixei de perceber

que também sou bicho?

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Fantasia

é sentir poesia

fazendo sexo.

Valentia

é sentir sexo

lendo poesia.

 

 

(para Armando Freitas Filho)

 

 

 

 

 

 

O desejo

 

 

incha o algodão de sangue antes do sangue

antes

antes de cair

uma só gota incha o algodão

de sangue.

 

 

 

 

 

 

Uma cena

 

 

você analisa o poema sentado na cama

como quem faz um ditado

tece um discurso sobre a originalidade sintática

a potência dos últimos versos

o léxico, que léxico!

seus olhos pendem entre a página do livro

e algum lugar entre minha boca e nariz

sem tocar minha pele

escuto sua voz atentamente

como um aluno recém-alfabetizado

escrevo a imagem primeiro com meus olhos

e sem que você se dê conta

os fecho pausadamente

a cada ponto final deste texto

penso que eles se desfalecerão

alguns anos antes ou depois

desse poema

dessa memória.

 

 

 

 

[imagens ©laura ferreira]
 
 
 

Ellen Maria Vasconcellos veio de Santos e hoje vive em São Paulo. É formada em Letras pela USP, onde atualmente faz o mestrado em literatura hispano-americana contemporânea. Autora do livro de poemas Chacharitas & gambuzinos, em edição bilíngue (São Paulo: Patuá, 2015). Tem textos publicados em diversos jornais e revistas impressos e digitais, e em onze antologias poéticas no Brasil, México, Chile e Espanha. Além disso, é revisora e tradutora. Sua tradução mais recente é o premiado Ângulo de guinada, do autor estadunidense Ben Lerner, publicado em e-book pela e-galáxia. Seu site: ellenmartins.wix.com/home.