Para o Grupo Corpo

 

 

"Eu que venho da dor de viver".

Clarice Lispector

Água Viva

 

 

 

I

 

 

Tenho um Corpo dançarino.

Tenho um corpo contemplativo.

Corpo que escreve

Corpo que sigo signo.

Quando um Corpo

se encontra c'outro,

não há corpo que caia,

só Corpo que se alevante.

Tenho um corpo que escreve

um Corpo que dança.

Quando um Corpo

se encontra c'outro,

Onqotô do Grupo Corpo.

 

 

 

 

 

 

II

 

 

Quando sem o corpo usava óculos

caía, levantava.

Em cinzas, em litanias

caiava vilanias amarronzadas.

Quando com Corpo, óculos

não foram mais mágoas, nem nada,

fui Missa do Orfanato

num abano sem afano do sol

sobre minhas lágrimas.

Vi o casulo do bicho-da-seda

(o algodão do figurino bailarino)

abrir a árvore encantada.

A casa de marimbondo

abrir braços e braços

nas braçadas da flor coreografada.

Abelha desmaiada fui

mortuária Mozart das pernadas.

 

 

 

 

 

 

III

 

 

Maria Maria vi quando

engatinhava na poesia.

Último Trem para

meu corpo descarrilar

no Corpo.

Maria Maria foi a lágrima

menos esgrimada

da minha vida de milagres,

da minha vida estacionada.

Último Trem dos anos

de abertura,

após os de chumbo duros.

Início do baile bem bom

de trem bom num bambolê.

Maria Maria foi a Fé Cega,

a faca amolada

dançada gostosa

da minha primeira namorada.

 

 

 

 

 

 

IV

 

 

Dançar, dançaria na coreografia

da alegria sem pernas,

nem Pedros, nem pedras.

Dançar, repito, repetiria o Corpo

num lundum Benguelê de Maria.

Dançar, dançaria nas graças

das graças, das garças do rio,

da cheia da bacia, porque

vence o abominável homem

das neves o caboclo Pederneiras.

Dançar, dançaria e soluçaria

vindo do Corpo da poesia.

No grave da voz cantaria

Arnaldo Antunes, que

desconstruiria São Francisco

corporificado em mãos e pés

sem as rimas do dia, com a fantasia.

 

 

 

 

 

 

V

 

 

Dançar já dancei com Corpo balancei

num delírio de poesia baile fantasia.

Num ônibus Tom Zé dormir

não dormiria. Acordaria curtumes,

costumes, cordoaria.

Sonho porque sonharia sem corpo

segunda-feira com Corpo

alegria de pião cego na cabra-cega

do dia em ritmia de Parabelo poesia.

Sanfono dia azul, dia vermelho, amarelo

de febre de pares muitas sapatilhas.

Delírio de poesia porque minha ironia

é alegria que delira.

Não componho poema no trânsito,

transito pelo Corpo num baile,

numa bailia em braile de dançarina

dançaria.

 

 

 

 

 

 

VI

 

 

Dançar não dançaria.

Não por preconceito

machismo, nem por

falta de jeito ou por falta de fantasia.

Dançar não dançaria

porque o Corpo faz

isso por mim,

faz isso com alegria.

O Corpo dança

por mim que não

danço por falta de companhia.

Dançar não dançaria,

mas ouviria

Ernesto Nazareth,

como Milton ouviria,

como Lenine

de quatro engatinharia.

Dançar não dançaria,

mas Lecuona

cantaria em talha

de tardar o que feria.

Dançar não dançaria,

porque em fogo de Pina me consumiria.

 

 

 

 

 

 

VII

 

 

Bach baila vai-e-vem.

Pula salta gira

bamboleia.

Alegria concentrada

de lirismo

sem dispersão.

Alongado Corpo

pelo baile.

Alongado baile

pelo Corpo.

Noves fora nada:

a alegria dos corpos

são naves, a prova dos nove.

Bach baila

porque

menino menina

bailam contra

famigerado vilão

que não nos tira

do chão para dançar.

Festejado herói

cumpre missão.

Bach baila corpo

escultura

de movimento são,

de movimento bom.

Bach baila desenho

de órgão

em filosofado

Organon.

Bach baila tubo

do sopro do corpo

em Ímã do Corpo

irmão.

Bach baila sopro

de vida batida

em organizada

reunião.

Tão simples as rimas em ão

como sofisticada

contemporaneidade

corporal no varal

do Corpo em composição.

 

 

 

 

 

 

VIII

 

 

Ímã ímã ímã foi som de Caetano

certa vez.

Ímã em poema para Corpo

é corpo em Corpo.

Atração de palavraverso

no beijo provável de língua

com a dança.

Ímã tem a vibe jazzística do dia,

o baile funk sweet soul music

donde estive hoje.

Coreografia suingada

de sincronia amarelada

como girassóis de Van Gogh

nos olhos da amada.

 

 

 

 

 

 

 

IX

 

 

 

Listras pretas no verde, verdes no preto;

listas amarelas no preto, pretas

no amarelo: os coloridos são retroagidos

em frentes, costas e lados driblados.

O bailado é cenográfico pé sobre linóleo

preto condensado combinado

com geometrias coloridas suspensas.

O corpo destrava a cada chave de pernas

e de braços, de desamarrados laços,

que o Corpo promove nos olhos.

Bailarinos fluidos, bailarinas desviantes

são humores pré-socráticos.

Na companhia da dança,

atinjo maioridades, maiores desejos vontades.

Estou no 21 do Corpo, numa conjunção

para lá da junção.

Na companhia da dança,

a lua uiva belladonna, chá, alta chão.

 

 

 

 

 

 

X

 

 

A memória corriqueira de Ferreira

é teorizada crônica Gullar.

O lago do Ibirapuera tem

mais lodo do que água.

Geladeiras vazias de meus vizinhos

sem casa

geladeira cheia de livros e quinquilharias

aqui em casa.

Geladeiras pagas para guardar

casacos de pele.

Retinas descoladas do jornal,

a pele se desdobra ao sol.

Saída do bunker principal

é coreografia inédita inexistente

do Grupo Corpo. Vejo, ouço, sinto cheiro.

O amor transita não de motoboy,

mas de bikeboy.

Na Paulista, dá seta:

interrogação? antítese?

elipse de pastel de poeta.

 

 

 

 

 

 

 

[imagens: grupo corpo no espetáculo"
sete ou oito peças para um ballet"]

 

 

 

 

Eduardo Sinkevisque. Poeta, ensaísta, professor de literatura brasileira (literatura colonial). Doutor em Letras: literatura brasileira pela FFLCH/USP. Escreve o blog menos: blogmenos.tumblr.com.