De um calendário

 

 

as coisas, depois, têm o tamanho da bagagem.
cada um sabe o peso das alças, a medida do que
escorre. e comungam, além do instante e das
coordenadas, a dose de um tédio que rumina e
aprende a doer,

depois.

primeiro, as coisas morrem.

 

 

 

 

 

 

Chiaroscuro

 

 

talvez sob a noite
calejada de grilos
um
meu filho
talvez
existisse
e, baldio, evitasse uma sílaba
enquanto
pastoreia
o caminho do brinquedo:

um ferrorama
que não carrega vozes
em suas vísceras plásticas
que não atrasa
como os trens do interior
e — alheio aos
olhos de gude —
apenas
cumpre
os trilhos
desta noite
de pânico e  

esgrima.

 

 

 

 

 

 

Visita

 

 

da mesma matéria
de que são feitos
os domingos
— tédio e vapor em pedra-sabão —
compunha-se a espera
num gesto mais

branco

 

 

[Do livro Primeiro as coisas morrem. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004]

 

 

 

 

 

 

Benfica

 

 

das guerras que sempre respiram
em algum lugar do mundo,
pousa aqui este
atrito
contra a tarde pronta para
esmurrar meu abraço
na lembrança de você dizendo caminhar
por uma cidade
desconhecida é tomar a vida
de alguém,
emprestada,
contra a luz (e seu monólogo,
esta milonga), esta
bela infelicidade a jogar
ligue-os-pontos
com cumeeiras, árvores
e sombras do bairro
unidas sem voz
como em uma
língua
de estátuas

 

 

 

 

 

 

Ela e fones de ouvido

 

 

contra a ladeira e um pelotão de nuvens gordas.

farelos povoando o vestido.

ela pisa.

alastra deriva.

contra os cheiros da rua.

senta no cimento, espera.

alheia.

dentro do ônibus a vizinhança do rapaz

    [com cinto de rebites e uma tristeza cinética será só outro

    [coágulo da manhã.

ela não olha o relógio e espera.

alheia ao torvelinho.

à ronda de cronópios, famas e

     [esperanças.

enquanto o marulho das miçangas.

atadas ao pulso é o.

termômetro do pugilato com o sono ela.

interrompe o road movie que partilha sem perceber

     [quando sobe a plataforma e

     [os dedos trocam de canção

 

 

 

 

 

 

Mangá

 

 

ler primeiro o quarto, bunker de sapatos tristes — e algum amor

ali a respirar com dificuldade, ou que já secasse em mãos alheias.

 

depois o corredor, um verso estirado,

 

a sala lançando anzóis contra o rabo do olho, que hesita e escapa

 

para o vão, mas parece que a narrativa rompe de fora, que as

paredes assinam o trabalho de um ghost writer

 

até que, fechando a porta (e a história) sair e perceber: aqui

começa a casa.

 

 

 

 

 

Livro magro

 

 

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p.s. 1:

 

porque um mínimo azul despencasse

 

aqui, enquanto existimos — e, até conseguir

machucar, já o relevo involuntário no

 

esmalte, o sotaque, as mechas — indeciso

castanho , haveriam me visitado.

 

porque não supusesse com um gesto deflagrar

o azul — azuis que não morrem mínimos — e,

 

espalhada no sofá, toda beleza e dentes,

ela retrucasse meu silêncio-éter com um

 

sorriso-arremesso

 

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p.s. 2:

 

(ainda, aqui,

 

qualquer coisa dentro e gris

insistisse em ser dentre as coisas

 

uma cor sem remetente)

 

 

 

 

 

 

Escotilha

 

 

o foco é de um agrado

no dorso do navio

à distância, à janela

de emprestar pequenez

 

— navio entre mãos — ao

que dizemos paisagem

(tela em fuga), mas já

da chaleira ventríloqua

 

que te ocupas e ensaia

outro riff de vapor,

adivinho um roteiro

 

para alergia, âncora,

borralho (teu semblante

de pré-fotografia)

 

 

 

 

 

 

Xilogravura

    

 

no rosto o tropeço

da mão, volver em

contorno por raízes

brancas e dobras (e

esta e outras tardes

costuradas), ela deita

por deitar, ela toca

a pele, erosão enquan-

to senha, dedos em

passeio no que seria

agrimensura da cavei-

ra a pulsar sob, ou -

"o tempo é barroco"

— quase artesania, um

talho ao que lê, sem

urgência ou espelho,

o rosto não em flor

 

 

 

 

 

 

Instalação

          

 

matéria orgânica, ganchos

inox, técnica mista, 125 cm

x 45 cm., 2007. os números

 

talhados em pincel atômico

azul sobre as superfícies ver-

melhas (que migram para

 

roxo ao passar dos dias) a

um só tempo distinguem

e anulam as peças dispostas

 

de lado, sublinhando o viés

passadista, o estatuto do pre-

cário que acompanha objetos

 

seriados. a crítica aponta um

certo desgaste das possíveis

metáforas, i.e, crueza, consu-

 

mo, interioridade — o mesmo

valendo para a solução formal,

já que não deixa de ser um

 

ready-made. mas a leitura do

artista convidado fixou o tom

de celebração da finitude, além

 

de problematizar — uma vez

mais — não apenas as idéias de

sublimação pela arte, mas a

 

própria idéia de "obra" (apud

Warhol), pela sutil referência

a um conhecido eufemismo

 

(açougue boutique de carne),

e que tangencia mais uma

questão atual: the thine boundaries

 

between art and fashion, em espe-

cial no vidro (vitrine?) que isola

público e pedaços suspensos por

 

correntes, mas que não impede

(outro ponto forte), entre ambos

mundos, o livre trânsito de moscas

 

 

 

 

 

 

Em vestidos de flores
 
 
 algum livro que diz: o trópico
 cheira a fruta podre (um estar-em-casa,
 o cheiro aceso na fruta, perímetro
 de rugas na fruta). em outro:
 esta é a idade
 
 do ferro, e o enredo sobre grades
 e uma velha do sul da África cujo câncer
 começa a morder. eu digo: não
 
 sei porque leio sempre
 entre semáforos, até perceber só ter
 passado os olhos e tenho
 que voltar, sempre tenho que
 
 voltar. ela não diz: deixa-se
 chegar (lentes escuras/mp4/mochila
 atrás feito um
 casco) à
 
 porta do carro, sorrindo. eu
 
 digo: mesmo na luz de guarda baixa das
 dezenove e quinze, e sendo difícil
 precisar os desenhos
 no ramalhete a lhe cobrir, eu digo:
 
 o vestido parece bem à vontade
 envergando o seu corpo,
 
 ela diz: quando criança, tinha
 um alter-ego, alguém que se visse
 como que saída de uma graphic novel,
 trazendo o sobrenome
 russo de uma linhagem antiga
 de czares (- Romanoff!),
 e que dizia: "a dor
 é minha amiga" e "isso é uma
 doença, eu sei",
 
 em comum, ainda,
 o amor (dela
 e da personagem) por
 exercícios de Linguística e
 coca-cola, ela diz: o problema
 foi só nascer no século
 errado.
 
 eu digo: noites assim parecem
 sombra em camadas, como
 as cebolas sete horas antes, como duas
 horas antes, um céu
 lilás trocando de pele. ela diz: morrendo
 
 de medo, mas o futuro parece
 ser bom. para nós, digo. eu
 
 digo: guarde,
 
 você também, as instruções
 para (quando o império
 contra-ataca) montar esta
 valsa de livros no carro, poliéster
 e você em um molde de flores,
 beirando as dezenove
 e vinte e três, vê a cidade?
 também
 a cidade, como seu cabelo
 já quase seco, lírio
 em desalinho.

 

 

[Do livro Nenhum nome onde morar. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014]

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©mirela momanu] 

 

Diego Vinhas (Fortaleza/CE, 1980). Publicou os livros de poemas Primeiro as coisas morrem (2004) e Nenhum nome onde morar (2014), ambos pela Editora 7Letras, e mais algumas outras coisas.