[dois cavalheiros de preto]

 

 

dois cavalheiros de preto sentaram-se ao fundo pra fumar.

uma senhora fez objeção.

um dos dois levantou-se e foi ao banheiro.

o outro engoliu o cigarro.

 

o que foi ao banheiro logo voltou e acendeu novo cigarro.

o que engoliu nunca mais fumou.

a senhora objetiva assistiu ao evento com os cabelos sujos

e se retirou ao fim com uma mala cheia de ossos.

 

o cavalheiro vivo osculou-lhe a face, aguando rugas.

o morto limitou-se a resmungar.

a senhora sentou-se em seu carro e pôs-se confortável.

o cavalheiro com um cigarro nos lábios vomitou etiquetas.

o outro gargalhou insetos.

 

os cavalheiros de preto retiraram-se da sala, em sempre.

um ia fumar.

um, fenecer.

 

a senhora que fez objeção acendeu um cigarro e dormiu.

 

 

 

 

 

 

[vida]

 

 

sob protesto perdemos

o terno pelo terreno.

mas logo a foz dá ao sigilo,

sob o reverso do grito.

 

 

 

 

 

 

[cânon]

 

 

canonizado o autor

(que se consagra a quem?),

transubstanciou

-se (a Cúria o dita!)

em algo além

de folha e tinta.

 

meu sacer pluris

a tal não alude.

traz certo o oblívio.

após me pôr,

quero ser lido

— só.

 

 

 

 

 

 

[status]

 

 

o mundo vai turvo

se vale só o vulto!

me escuse o esconjuro.

 

melhor que no furo

se meta uma gude,

em vez de um canudo.

 

pernóstico aludo

a um módico astuto:

o lúcido é lúdico.

 

 

 

 

 

 

 [proposta]

 

 

"amor: humor"
— disse o Oswald.

"amor: horror"
— é o que sei.

a mesclarmo-nos,
mescalinados,
metamos um
"horror: humor".

amei!

 

 

 

 

 

 

[despertei!]

 

 

bota a beca já batida,

empapa a crina e hesita

só no relógio de rifa.

 

o cinto cutuca as tripas.

há lagos em sua camisa

a sentar sépia na bíblia.

 

pelas ruelas roídas,

a mesma estrofe vomita

a cada mouco que avista.

 

numa aziaga matina,

tal sorumbática erínia,

me mói a trins. — minha sina!

 

ajeito a baba e me agarro

a algum farrapo... e me

largo à fonte da arritmia.

 

sorri-me: "amigo, bom dia.

eu vim saber se tua lida

permite a pausa de um salmo".

 

o fito de cima a baixo,

vou à cozinha e lhe passo

bom trago: "prefiro Baco".

 

 

 

 

 

 

[feedback]

 

 

a nau de caspa singra o duto que a cerveja

na flora hirsuta erode ao descer do nariz

por rubras trilhas que hoje não há quem não veja.

"poema é um troço muito perigoso", diz.

 

se cala inflama o beque e guarda a nuve anã

no cárcere encarnado enquanto evita a ideia

pra não perder a brasa nesse inútil afã.

o amigo mal o ouviu e é a única plateia.

 

 

 

 

 

 

[hakuna matata]

 

 

sob o arvoredo réstias de outono

imerso em cancros farpas de vida.

viesse um filho fender-me o sono,

a mão pendia... mas comovida.

 

risca-me a sede um tísico frasco.

os cachos... aos dedos das senhoras.

instantes cedo ao luís que masco.

kadish freme, o peito, às horas.

 

após: lis... varais de acordes...

espaços pra repor a grassa rima...

ao nada as vestes! para os fiordes!

crepusculares vêm, pesar-me em cima.

 

preocupar-me, devo? sei ser de todos

(de reto mesmo só o tombar das toras).

mas pode a sanha de um visigodo

monções cravar ao s'ir das moras?

 

 

 

 

 

 

[inspiração]

 

 

a palavra quer

colo,

semântico afago

e tabefe

no auge do espasmo.

 

logo o jorro escava a

glote,

à apneia invade

e lhe finca um nó

não o desate.

 

 

 

 

 

 

[aduana]

 

 

aquém da fronteira

da carne, o canto

abriga o imenso.

 

vórtice e ápice.

um ídolo único

em templo de taipa.

 

qual campo privado

de alentos e trilos,

o corpo nos cerra.

 

nações hesitantes,

comércio buscamos.

que muro é sem brecha?

 

 

 

 

 

 

[existirmos]

 

 

a vista nota

quiçá uma nódoa

 

(será humana?)

 

no cós do ambiente

 

(não lhe pertence,

mas lá esteve...

quis dizer "sempre")

 

até que foca...

e faz-se ausente.

 

 

 

 

 

 

[episteme]

 

 

o que eu sei é uma coma

no infinito ruído.

 

nem o que eu mesmo cicio

posso dizer que domino.

 

no que creio, não creio; sinto.

mas silêncio... o tédio impede.

 

meu pensamento hoje visto

como vesti minha pele.

 

 

 

 

 

 

[parto]

 

 

com um cigarro aos dedos

e os lábios pensos,

jogo as mãos às teclas.

e o que pesco? aspas.

 

debalde pretender postas

em poças. bife de sola?

talvez pôr chumbo nas tripas!

um gole de alheio rasga.

 

com um cigarro no espelho,

as mãos como arrimo e a casa

empesteada de palcos,

contemplo a página a meio.

 

tanto suor, pouco arreio.

grávida... interrompida.

um carteado de imagens

sob conhaque barato.

 

mas morde o ventre essa estrofe

e meu cigarro escasseia.

mais uma rima e o arremate,

que o verso logo mal-cheira.

 

com os olhos secos

e o peito dado a bolores,

agrilhoei outro espasmo.

encapa e lança ao ocaso.

 

 

 

 

[imagens ©dane shitagi]

 

 
 

Diego Callazans. Autor do livro A poesia agora é o que me resta (Patuá, 2013). Nasceu no dia 26 de julho de 1982, na cidade baiana de Ilhéus. Mora em Aracaju desde os cinco anos. Vários poemas seus foram publicados em revistas literárias — tanto impressas, dentre as quais a Celuzlose, a Novitas e o Jornal RelevO, quanto digitais, como a Mallarmargens, a Diversos Afins, a Blecaute e a Reversos. Seu segundo livro de poemas está no prelo. No momento, desenvolve seu primeiro livro de contos.

 

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