©kboing

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

A cada dia fico mais apavorada com a ausência de civilidade que vejo por aí. Chamar a maior autoridade do país de "anta" em um "hino" que conclama ao impeachment é fora de qualquer parâmetro. Será que não existem maneiras mais civilizadas de demonstrar insatisfação e de protestar? Seja quem for o governante, seja qual for a situação, é necessário ter um mínimo de polidez. Tirando isso, melhor seria voltar aos tempos das cavernas.

Independentemente de se referir à presidenta da República, utilizar a palavra anta para qualificar alguém é de uma agressividade e de uma violência sem limites. Se abrimos o dicionário do Houaiss,  vemos que um dos significados do termo é "indivíduo de inteligência limitada; burro, estúpido". Será que alguém, em sã consciência e de boa-fé, acha que uma pessoa pode chegar a ocupar o mais alto cargo da nação, tendo sido eleita pelo voto popular, se não possuir algum atributo? Especialmente se levarmos em conta que o gênero feminino tem de dar o dobro de braçadas exigidas do masculino para chegar à praia?

O problema não se prende ao fato de aprovarmos ou não as decisões de Dilma Roussef na presidência. Trata-se de algo muito mais abrangente, que extrapola a esfera da política partidária, ovo que vem sendo lentamente chocado, para agora resultar nesse rebento horroroso, capaz de assustar até os mais desavisados: nós, que nunca fomos considerados educados pelos estrangeiros, mas que pelo menos éramos tidos como simpáticos, generosos, até suaves, por  vezes, estamos perdendo a tramontana, rodando em círculos por direções inusitadas, de  maneira nada cordial e muito menos polida.

Um rápido passeio pelas redes virtuais nos mostra uma face que nem de longe suspeitávamos que tivéssemos. Parece que uma grande e pesada onda de ódio, intolerância,  grosseria, má educação e impaciência está à solta, disposta a levar consigo quem encontrar pelo caminho. O fenômeno macabro não poupa ninguém, na sua voracidade. Não escolhe idade, nem gênero, nem nível de escolaridade, nem coisa alguma. Assemelha-se a um monstro doidivanas e destrambelhado que sai a todo vapor, numa velocidade comparável à da luz, destruindo o que estiver à frente.

Sem querer ser moralista — até porque a questão, antes de tudo, é da ordem da estética e da ética — o que sinto é a existência de um crescente e lamentável empobrecimento dos nossos valores, da nossa linguagem e dos nossos modos tradicionais de convivência. Uma falta de compostura generalizada — "incorporada" por muitos escritores, professores, poetas e outros intelectuais, dos quais dificilmente poder-se-ia esperar uma reação desse tipo. Não se passa nem um dia sequer sem que eu tenha uma surpresa desagradável com alguém que julgava minimamente educado. Um comentário ali, outra frase acolá, uma palavra alhures e já dá pra sentir os movimentos do ser horripilante emergindo das cascas grotescas onde se ocultava até pouco tempo.

Minha sensibilidade tenta reagir de maneira saudável, mas confesso que é difícil. São sustos demais, um atrás do outro. Os que apreciam e foram criados para atuar em um mundo feito de pequenas delicadezas, gestos de boa vontade ou pelo menos de tolerância mínima, sentem-se deslocados, incômodos, desconfortáveis, inadequados, pra não dizer completamente à gauche.

E o ovo, pergunto, quando surgiu? Há séculos, há décadas? Em que momento infeliz e ingrato, quando o universo feito de bondade e de finura estava distraído, essa coisa sem nome começou a tomar forma?  O que ocorreu conosco, como povo? Por que estamos perdendo a serenidade diante de qualquer comentário banal, ou simplesmente porque alguém discorda das nossas opiniões?

A cada momento, quando não posso expressar a  minha indignação, repito baixinho, só pra mim, o título do adorável livro do Fernando Gabeira, que deu origem ao filme: o que é isso, companheiro?! Não uso o termo companheiro para indicar filiação partidária, ou por ter sido muito utilizada pelo ex-presidente da República, até porque não sou filiada a nenhum partido político. Mas utilizo a palavra pelo seu magnífico e amplo significado: aquele que participa do destino de outra pessoa, aquele que caminha lado a lado nem que seja por compartilhar o mesmo contexto histórico.

Há quem justifique esse "mal-estar do país" por meio da responsabilização de representantes da categoria política. É claro que os políticos têm sim uma grande parcela de culpa, sem dúvida. Ninguém fica incólume diante de tantos casos de corrupção e de operações suspeitas. Há membros de outras categorias também, como a dos juristas, que não têm apresentado um comportamento exemplar, digamos. Mas seria sensata e proveitosa essa disseminação de atitudes vingativas, que visam a mera desforra, essa brigalhada de pessoas ditas "maduras", antes amigas ou pelo menos aparentemente pacíficas? Não seria por demais infantil e tola essa postura de "Belém, Belém, nunca mais tô de bem?". Que frutos podem resultar de tal emaranhado de paixões, sensações, explosões temperamentais, frissons, emoções fáceis e à flor da pele?

Tenho muito medo dos seres que nascem desses ovos. Quem assistiu ao filme de Ingmar Bergman intitulado O ovo da serpente sabe bem do que estou falando. Para quem não teve a oportunidade de ver o filme, conto que a película, estrelada por Liv Ullmann e David Carradine, se passa na Berlim de 1923. Em um contexto de absoluta recessão econômica, os dois — que fazem papéis de cunhados no filme — sobrevivem a duras penas. Sem compreender a conjuntura e as forças políticas atuantes na Alemanha daquele período, vão trabalhar em uma clínica clandestina, que realiza experiências com seres humanos.

Como toda a obra de Bergman, é um filme profundo. Mestre em criar atmosferas claustrofóbicas e ao mesmo tempo verossímeis, o cineasta realiza, nesse filme, um trabalho marcante e esclarecedor. É dessas obras que, uma vez vistas, permanecem para sempre dentro de nós. Um filme inesquecível.

Estarei exagerando em minhas percepções? Pode até ser. Mas creio que todo cuidado é pouco, em épocas como essa. Há que vigiar e não deixar as tocas sombrias encobertas, deixando que a luz do sol, com seu poder curador, ilumine esse país magnífico. É preciso fertilizar sempre e mais o solo para que continuemos a colher orquídeas, margaridas, angélicas, girassóis. E camélias, as flores prediletas da princesa Isabel. Sobretudo, a mais bonita de todas, capaz de mudar o mundo, a incomparável esperança.

 

 

março, 2015