pintura de enio squeff
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Sempre apreciei ritos e os quatro símbolos nacionais. Minha mãe tinha autêntica adoração pela  Bandeira do Brasil. Herdei dela essa admiração e identificação com nossos símbolos maiores: a Bandeira, o Hino, as Armas e o Selo Nacionais. Escrevi, inclusive, um poema saudando a bandeira, no meu livro infantojuvenil "Dias de santos e heróis", em redondilha maior. Todos que trabalham com rimas sabem como é custoso fazê-lo em redondilha — verso de cinco ou sete sílabas, chamadas respectivamente de "menor" e "maior" — mas resolvi experimentar e creio ter alcançado um resultado razoável para os objetivos propostos pelo livro.

Inspirada na bandeira projetada no Império, muitos desconhecem que a atual foi criada por Miguel Lemos e Raimundo Teixeira, com arte final de Vilares. Flora Carvalho bordou as duas primeiras, em tecido de algodão e de seda, respectivamente. Para complementar, decidiram compor um hino em sua homenagem, com música de Francisco Braga e letra do grande poeta Olavo Bilac, injustamente esquecido atualmente. Tanto a bandeira quanto o hino são muito bonitos, pelo menos para mim.

O que não é lá tão bonito é o uso que tem sido feito da nossa bandeira. Em nome do verde-amarelo, suas cores principais, atitudes e comportamentos autoritários e arrogantes proliferaram na história recente do Brasil. Quem é um pouco mais velho lembra-se bem do slogan criado durante a ditadura militar: "Brasil, ame-o ou deixe-o". Assim, sem mais, como se um grupo pudesse falar em nome da nação (mesmo internamente, como foi o caso) e, arrogante, tivesse o poder de banir cidadãos de seu próprio país. A Constituição Federal de 1988 não prevê a extradição de brasileiros (não me lembro agora se a anterior previa, mas estou quase certa de que não) mas quem se importava com isso?  E o tal "amor" a que o slogan se referia não era, claro, amor ao Brasil e sim o "amor" como era entendido pelos ditadores. Não se tratava de amor verdadeiro, amor à própria terra; "amar" o Brasil era concordar com os desmandos, com o arbítrio e a vontade dos governantes.

Infelizmente, a semente dessa ideia, de alguma maneira germinou, ainda que em outros terrenos e com nuances variadas. Partidos políticos e alguns grupos ressuscitaram recentemente o que eu acreditava extinto para sempre, ou seja, o uso injusto e inadequado do verde-amarelo para significar algo que ele não significa. Esquecidos de que a bandeira pertence a todos os cidadãos brasileiros, arrogam-se o direito de utilizá-la para defender suas propostas e pontos de vista.

Manifestações análogas têm ocorrido no resto do mundo. A cada tragédia, a cada horror, a cada mortandade promovida pelo terrorismo ou pelo descaso com o meio-ambiente e outros descasos, surgem nas redes sociais os conhecidos "filtros" ou marcas de identificação: "Eu sou Charlie", "Eu sou Paris", "Eu sou Mariana"; ou então expressões menos pretensiosas, na linha de "Fulano me representa", etc.

Sempre desconfiei dessas manifestações, mesmo sabendo que geralmente a intenção de quem as cria é boa, generosa, e o que se deseja é apenas demonstrar solidariedade com as vítimas das tragédias.

O problema reside nas exceções. Por vezes, o uso aparentemente inocente dos símbolos, das cores e das marcas pode levar a caminhos bastante tortuosos. Como, por exemplo, partidos e grupos julgarem que têm o monopólio da bandeira nacional e do verde-amarelo, com isso querendo apenas ostentar, de maneira arrogante, um sentimento de "brasilidade" e um amor ao País que somente eles possuem e ninguém mais; seriam eles, portanto, os cidadãos de primeira classe, os "brasileiros de verdade", atribuindo arbitrariamente aos outros, igualmente brasileiros, bandeiras de outras cores, o que é absolutamente imperdoável.

Internacionalmente, a história tem mostrado até que ponto a força de certos símbolos, como a suástica, foi capaz de promover  tanta destruição e tantos assassinatos em massa, gratuitos e infames, repelidos por toda a humanidade.

Nas redes sociais, nunca aceitei selos ou filtros coloridos como "Eu sou Charlie", até porque não sou; ninguém me representa, não deleguei e nem delego a ninguém esse poder. A meu respeito, do ponto de vista oficial, só falam a minha certidão de nascimento e a carteira de identidade. E, na vida, se eu conseguir ser fiel aos meus princípios e agir com generosidade e compaixão, creio que estarei suficientemente representada. Por mim mesma. Decididamente, não sou a bandeira nacional (embora a respeite e estime), não sou Charlie, não sou Paris, não sou Mariana e nem mesmo o Rio Doce, embora tenha nascido na região que leva o seu nome. Minha solidariedade aos que sofrem é expressa de outra maneira. Não é necessária essa ostentação toda para mostrar o nosso espanto e a nossa tristeza pelos horrores que ocorrem no mundo. São as nossas ações e o modo como nos situamos no mundo que falam e sempre falarão por nós.

 

 

 

dezembro, 2015