87

 

 

então a imagem

a confundir-se

diante dos meus olhos

então pude

a nitidez

minha imagem começa

a perder a nitidez

para mim

 

 

 

 

 

 

88

 

 

um tal pavor

em algo

repentinamente

um tal pavor

em alguma

coisa

 

 

 

 

 

 

89

 

 

imitator dei

para temer a

loucura

 

 

 

 

 

 

90

 

 

eu precisaria

de um peixe

a me comer as dores

 

 

 

 

 

 

91

 

 

um peixe

a me livrar das partes podres

 

 

 

 

 

 

92

 

 

preciso

a me chorar

as dores

 

 

 

 

 

 

93

 

 

livre

às partes

podres

 

 

 

 

 

 

94

os dedos

as partes

ontem,

 

 

 

 

 

 

95

 

 

no início

era a raiva

[   ]

 

 

 

 

 

 

96

 

 

& não é

não é

não é não

é não

 

 

 

 

 

 

97

 

 

o lírico eu é a terceira

pessoa

porque a esperança

é a última na furada

de fila

 

 

 

 

 

 

98

 

 

é sedutor

depois de tudo terminar

de perceber o aborrecimento

sanável apenas pelo abandono

a oportunidade

da escarificação

 

 

 

 

 

 

99

 

 

todos esses objetos

a letra que costumava

ser minha

espalhada por pedaços

de papel

          expostos escondidos

eternamente comparada à

miúda de poucos dias

 

 

 

 

 

 

100

 

 

a sua promessa

de não caminhar portando a cabeça

debaixo do braço após a execução

apenas se a navegação não fosse sobre estrelas

& o vento

o último suspiro dos suspiros tidos

era absurdamente sua

 

 

 

 

 

 

101

 

 

ele se aproximaria dela como

Freud a bela camponesa

entre o tensionamento dos músculos

na subida

ouviria dissolvidos em suas contraturas

os seus sonhos e as saberia remetidas

a cada um dos brutos que lhe salivaram

epiléticos as costas do pescoço

& antes que percebesse

teria as gengivas repletas de bolhas

da comida por ela sempre servida quente

 

 

 

 

 

 

102

ela sentiria amar

& ser amada —, mas não sentiria

---

ele sentiria ser amado e ser amante —,

mas [...]

---

& não sentir seria sentido

 

 

 

 

 

 

103

 

 

o tempo seria marcado

apenas no momento em que

os vidros de shampoo virados

de cabeça para baixo fossem

transformados em clepsidras

— uma de amarelo camomila &

a outra de verde menta

 

 

[Do livro Escarificação: ensimesma, inédito]

 

 

 

segundo capítulo

 

 

1.

resta um, cama de gato, encher fôrma de gelo dá tudo no mesmo.

 

 

2.

se antes eu atravessava a cidade repleto da sua presença, não só na memória, mas também na carta, protegida no bolso mais próximo ao peito, um tanto amassada e umedecida pelo meu corpo, capaz de produzir suor mesmo com dia frio, em virtude dos quilômetros percorridos a passos largos e pernas longas, pela ansiedade, pela ansiedade, ah, esta delícia rara de ter um hábito, sim, um forte e querido, instituído depois de apenas uma ocorrência, como pode, como pôde […] apenas uma carta, tudo diferente. uma parte de mim estava certa de que deveria esperar a sua lentidão de passos calmos à rua para que não padecesse diante da minha velocidade, para quando estivéssemos juntos. eu imploraria que reconhecesse que eu seria lento em tudo o mais. mas se a prova dos nove nos fosse requerida. que imersos estivéssemos no oceano atlântico para que não se falasse mais em peso. mas que desculpasse as pernas que agonizam tanto. donde eu me perguntaria se conseguiria imaginar o tipo de solidão que eu sinto depois de saber que existe. não só o remetente. mas a mão. não só a mão. mas a letra. não só a letra. mas a crueldade a me tirar a resposta. notaria a estética ignóbil de ser sozinho / passada agora a emanar […] apenas um relampejo / de saber que está & respira / todos os meus presentes & futuros / atendentes / como uma espécie de monstro marinho repleto de olhos, olhos, olhos salgados, todos a esperar defronte da caixa do correio. não, não me pergunte como estou.

 

 

3.

se eu deveria querer o do outro? neste momento eu sou o próximo, ele o anterior. anseio-o para não sair de casa: edípico: como se a ejaculação fosse ridiculamente condicionada à tapas doces & a balbucios ‘tudo bem’ .

 

 

4.

quando decidimos morar juntos, foi-nos dado um conjunto de copos. eram atípicos. compostos como prismas em várias pranchas de vidro. pegá-los era ter os dedos numa dessas lâminas. era possível sentir as vilosidades das digitais sendo transferidas para os sarcófagos vários do recipiente. nossa duração se fez exemplar nas quebras desses objetos particulares. a mão sobrando aos braços. toque de quina com pé. lançamento ao ilimitado da atmosfera. início estilhaçado da integridade. deitávamos os nossos olhos àqueles fragmentos. notávamos ter, nestes, por estes, instituído uma marca. um calo. uma data. 'o instante do primeiro tetraedro arrebentado', suspirávamos irônicos.

 

 

5.

todos esses destros, canhotos, ambidestros me enojam.

 

 

6.

não penso que deva existir movimento para iniciativas que não sejam artísticas ou intelectuais, tenho que é o caso de evitar a proliferação dos ruídos. acredito que só se deve instituir no mundo o que ainda não está nele, ou que não esteja nele de todo, e, por isso, algo que ainda passe pela invenção me parece dever ser resguardado, no mais, façamos silêncio e não deixemos marca. pode ser que nem o novo se justifique, mas se nele insistirmos por vício, que seja apenas a ele que abrimos exceção. nada de iniciativas, apenas as alternativas combinações de cores, além do apaziguamento das nossas paixões em formas de vidas. mas a vida está para os excessos de toda ordem, e creio que posso enquadrar essa quebra do ponto de inércia como uma forma de  performance. acho tolo o anúncio de deixar uma soberania para ir para outra, no caso da expectativa do possível viajante não se confirmar, se é para sair de casa, que seja expulso, porque as soberanias, apenas por alguma variação de tempo, costumam ser facínoras de modo bastante semelhante. por isso resisto insone, para ser abatido. mas outra coisa é ir para uma terra nova, como foi a América dos velhos tempos. sem maldade, sem pecado, como amontoado de cor. sim, como amontoado de cor, a despeito mesmo da luz, não me distingo do meu nome. assim, tenho minha passagem, como não existe colonizador sem colonizado, irei apenas sob o estatuto de quem se derrama em outra terra. o sono é coisa séria: adeus.

 

 

7.

irmão mais velho arfa o carrinho de empurrar

ladeira íngreme acima demandante à irmã sorridente:

— tira os pés das rodas

irmão mais velho recebe resposta previsível

mas surpreende e divertida / para o estranho que os escuta:

— não.

 

 

8.

a prosa poética houvera surgido no momento em que se escreveria em público / sem querer entregar antes da ora se tratarem de quebras / por isso as topografias são dissimuladas /

 

 

9.

lembra quando me deu aqueles copos tetraédricos? achei tão divertido, disse: — aceite estes copos tetraédricos. aí, talvez a sua perversão tivesse previsto os efeitos que esses objetos geométricos teriam sobre a minha vida. seria típico da sua maldade sedutora. esses sólidos regateiros no recebimento de cor se tornariam marcadores históricos da minha vida. eram seis tetraédricos copos. daí eles serviam de pontos de referência; tal acontecimento se daria antes ou depois da quebra do sexto, do quinto, do quarto copo etc. a narrativa seria capaz de fornecer a profundidade do drama da minha própria vida. o peso seria sempre o mesmo. ainda que eu pudesse porventura estar num ambiente de felicidade, a quebra denunciaria a inequívoca presença da tristeza. o fato dessa me seguir como uma formiga ao doce. depois de fazer amor / meu pé tocaria o copo ao criado-mudo / este movimento despreocupado faria o vidro alcançar os duros tacos do quarto / evidência de que algo se passou, haveria eloquência naquele movimento, pois o tetraedro se teria quebrado. o mais feliz dos momentos seria lembrado pela não permanência da felicidade, ou de que esta seria a antecipação da tristeza. seria como: — estou feliz, mas eis que está o fastio, o ralentado da intensidade dolorida da vida. sou capaz, pela perda dos copos que me deu, de me descrever de fora, como se eu tivesse uma fotografia diante dos meus olhos. a quebra exerce sobre a minha memória algo comparável à reação do óxido de prata. seria capaz de me ver olhando ao longe, nem alegre nem triste, levemente embriagada, compartilhando o ângulo com o meu cachorro, o meu pior ângulo, o melhor dele, dentre seus muitos melhores. nesta, o copo se me escapa devagar aos dedos. minhas digitais são esticadas por causa da queda. o suor do vidro com gelo ensaboando o atrito. recolhendo as partes secas às partes úmidas. a quebradura do vidro em tamanhos variados, cacos amolados em formas estranhas / deixados quietos sob meu anestesiado sorriso.

 

 

10.

gritar move ou paralisa: subir e descer é o mesmo.

 

 

[Do livro Meu Lúcio, inédito]

 

 

 

 

[imagens ©bavcar]

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 

Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF e do IUPERJ. É autor do livro de poesia Variações:  sobre um tema de Anselm Kiefer. Atua como editor do Caderno-Revista de Poesia 7faces. Autor dos livros Escarificação: ensimesma e Meu Lúcio. O primeiro ainda é inédito e o segundo ainda não terminou de ser escrito e consiste basicamente em conjunto de poemas em prosa sobre Lúcio Cardoso e Clarice Lispector.