O fusca verde

 

 

Modelo ano 1970, volante gigantesco, na ponta do câmbio uma pesada bola de ferro preta de rosquear.

A imagem mais distante que me vem: eu sentado no banco de trás, meu vô no da frente, ambos comendo churros no estacionamento do Carrefour. Meu vô "formiga", sempre catando doces sorrateiramente na geladeira de madrugada (faço igual, vô!).

O fusca verde foi comprado pelo vovô quando ele mudou para perto de nós, em SP. Mas logo depois de realizar o sonho de ir viver perto de nós, ele faleceu, muito rápido, inacreditavelmente, imprevisivelmente, por um erro médico. Foi-se assim de chofre, mas deixou-nos o fusca verde, que virou o carro de minha mãe.

A imagem segundamente mais distante: minha mãe no volante do carro herdado, estacionado na ladeira da rua do Colégio Doze de Outubro. Ela ali nos esperando, eu saindo por um lado da rua, minha irmã pelo outro prédio, no lado oposto. E sempre que, passando pelo portão de ferro, eu via o fusca verde estacionado com minha mãe ali dentro, lendo uma revista ou costurando, meus medos todos sumiam, as tensões associadas à manhã de aula e à luta pela sobrevivência social se esvaíam naquela espécie de regaço, o fusquinha verde com minha mãe nos acenando.

Depois de alguns anos mudamos de cidade, e o fusca do vovô também se foi pela via Dutra, para o RJ, em 1984. Já um adolescente "acariocado", eu não pensava naquele tempo no churros e no colégio Doze de Outubro, não pensava no meu avô e na tristeza da minha mãe. A vida coincidia total e egoisticamente com o meu presente — estranho que as memórias demorem tanto tempo para aflorar e cobrar seu espaço, deslocando com insistência o presente apenas num tempo muito futuro, afirmando-se viva e de igual importância.

E não tardou para que eu começasse a dirigir o fusca verde, escondido. Quando minha mãe não estava, ou quando dormia à tarde, eu me metia no volante e aproveitava o contorno-retorno abaulado no fim da rua do condomínio Vilarejo — nossa casa era a penúltima — para dar cavalos de pau e acelerar-frear como um bom despirocado de 15 anos de idade: o chão marcado, o cheiro de borracha queimada, o risco de perder o controle do carro — excitações de adolescente.

A terceira lembrança de trás pra frente: um dia, numa curva, dia de chuva, com minha mãe no volante e eu e minha irmã atrás, o fusca verde rodopiou na divisa da Barra com Jacarepaguá, perto da Cidade de Deus, voltando das compras. Por segundos, tive muito medo, achei que morreríamos. Na calçada, segundos depois, todos pálidos, molhados, esperando o reboque chegar, minha mãe chorando e nos abraçando. Trauma: depois disso, por anos a fio, sempre que entrávamos numa curva, assaltava-me o temor de que iríamos derrapar de novo e chocar-nos contra o meio-fio.

Há um branco na minha memória por essa época que se segue ao acidente, mas tenho a impressão que, por conta dele, venderam o fusca verde para um parente pobre da professora Carmem, nossa vizinha. Não mais o vi. E ele seguramente não existe mais, virou uma sucata muitos anos atrás, virou outra coisa, objeto estranho, alheio a todas essas histórias.

A não ser que... a não ser que sua alma de lata também tenha batido asas no ferro velho, vô, e que, remontado à perfeição, ele tenha voltado para você, aí no meio de uma nuvem qualquer. Mas se for assim, já te deixo avisado do seguinte: quando eu chegar aí vô, porque um dia vou chegar e você ainda será meu avô comedor de doces, vou roubar a chave e dar umas piruetas enquanto você estiver distraído, tirando uma soneca.

 

 

 

 

Dois homens

 

 

O homem novo parado na calçada, à frente do carrinho, curvado, ensinando a bebê a contar nos dedos, em inglês e português. Ela respondia imitando-o, com voz angelical, quase acertando as palavras, mexendo meio sem jeito os dedos das mãos, mais de um por vez. O homem novo ali cheio de esperanças, o futuro maciço à sua frente, inocente. E nisso passava a seu lado o homem velho (mas não tão velho), caminhando relativamente rápido, fazendo exercício, sem olhar nada ao redor, sem ver a bebê, sem perceber que alguém logo a seu lado via o mundo com estranho otimismo. Seguiu adiante do mesmo modo que se aproximou, nem feliz nem triste, com semblante vazio de esperanças, resignado estranhamente com tudo, apenas aguardando o dia seguinte, e talvez ainda o outro, passarem.

Eu que não sou nenhum desses homens e ao mesmo tempo ambos, simplesmente admirava-os.

 

 

 

 

O menino polonês

 

 

Andando pelas ruas de uma cidade pequena na Polônia, vi uma criança à janela, que me olhava fixamente, talvez pelas minhas roupas estrangeiras.

Alternava-me, caminhando muito devagar, entre olhar o menino e admirar a bela rua antiga e estreita, as construções do pré-guerra, tudo convidando a infinitas conjecturas.

Quis por uns minutos ser eu verdadeiramente aquela criança, quis imensamente ter vivido uma infância ali (e não estar apenas de passagem), naquela rua, falando aquela língua dura, sentindo-me polonês.

Queria, não por vaidade, mas por melancolia, viver mil vidas, em mil lugares diferentes, para depois poder me recordar de mil distintos passados e sentir mil diferentes saudades.

Mas a vida é uma só, e é justamente isso que torna a literatura absolutamente indispensável. É através dela que me torno um menino polonês, olhando-me pela janela.

 

 

 

 

Um encontro triste

 

 

Ele me tratava, quando erámos jovens, como um irmão mais novo. Aconselhava-me sempre sobre diversos assuntos e até escrevia-me quando viajava (isso na época das cartas). Era parte da nossa família, e todos o acolhiam com carinho lá em casa. Eu gostava bastante dele, muito mesmo, eu que não tinha irmão, apenas uma irmã mais velha. Mas aquele afeto que parecia para sempre, não durou. 20 anos atrás uma reviravolta inesperada afastou-o de mim, de nós todos. Ele foi para longe, buscou a solidão. Entristeci, como frente a uma morte, não só por perder a companhia de um quase irmão, mas por ele, pela tristeza que o assolou então, pela minha impossibilidade de consolá-lo.

Faz alguns meses, o revi. Num giro demoradíssimo de 360 graus, hoje somos quase vizinhos de novo. Descobrimos isso almoçando juntos perto do seu trabalho, logo após uma troca de e-mails (ele sabia que me havia tornado professor da USP). Falamos muito dos nossos filhos, das esposas, dos estudos, e eu via que ele estava feliz por me reencontrar, me chamando pelo apelido antigo, quase esquecido. No entanto, no fundo dos seus olhos eu notava que aquela tristeza subsistia, e que ao me ver, um pouco da sua dor adormecida retornava, por associação. Claro, evitei sequer tangenciar o assunto e, na superfície, tudo correu bem. Mas me parecia que um redemoinho rodopiava dentro dele, e eu sentia que uma força triste e avassaladora o subjugava — ele claramente já pensava apenas na lembrança dela.

Já no fim do nosso breve encontro, quando tínhamos poucas revelações adicionais para fazermos um ao outro, um rubor húmido e quase imperceptível brotou em seus olhos. Fingindo não perceber seu mergulho ao passado, preparei-me para responder à pergunta que me parecia iminente. Mas ela não veio, e nos despedimos com promessas mútuas de nos revermos mais amiúde.

Nas semanas seguintes, tentei em vão agendar um encontro entre as nossas famílias, e depois da terceira tentativa fracassada resignei-me, por respeito ao seu passado.

 

 

 

 

[imagens ©sezer kari]

 

 
 
Carlos Eduardo Soares Gonçalves é doutor em Economia, professor da USP e contista. Publicou os livros Pequenas estórias (7Letras) e Sob a Lupa do Economista (Campus).