O destino da garoupa

 

 

Essa é a história de uma garoupa-verdadeira, nome de batismo Epinephelus marginatus,que vivia aprisionada a uma nota de cem reais. Na Casa da Moeda, onde nascera, enturmara-se com a tartaruga-de-pente, a garça-branca-grande, a arara-vermelha, o mico-leão-dourado e a onça-pintada. Lá soube que seu destino seria transitar de mão em mão, sem apegos ou amparos, pelo resto de seus dias. De nada adiantava sonhar com a savana, a selva, os céus ou, no seu caso, os mares. Aquele papel levemente brilhoso, duro e fedorento do Banco Central a confinaria para sempre. Naquela fauna inusitada, nossa garoupa era a mais rara, mais valiosa, e por isso mesmo costumava ser mais preservada nos bolsos e carteiras. Não à toa, permanecia há quase duas semanas com seu primeiro e único dono, um playboy de vinte e cinco anos chamado Rodolfo.

Agora, dobrada na carteira Dolce & Gabbana de Rodolfo, entre uma onça e um mico-leão, a garoupa se empenhava em imaginar a refrescante imensidão do oceano, com suas saborosas lagostas, camarões e moluscos.

Mas o batuque surdo da música eletrônica estraçalhou sua fantasia. Do lado de fora, o ambiente invisível à garoupa era a pista de dança armada na cobertura dos pais de Rodolfo. Flashes de luz colorida cintilavam sem lógica de globos espelhados, revelando mulheres descabeladas com vestidos colados ao corpo, e homens suados de camisa desabotoada. Taças de champanhe eram erguidas com o cigarro entre os dedos, formando minúsculos pontos incandescentes pairando no ar como vagalumes embriagados. No canto, um DJ com boné pra trás, cordão de prata e camisa regata expondo no braço uma enorme tatuagem tribal orquestrava a euforia com "Summer", de Calvin Harris.

Rodolfo atravessou a pista com sua cabeleira loira e olhos azuis, mais parecendo o herdeiro do trono de algum país escandinavo, agarrou Andressa por trás e deu uma mordidinha em seu ouvido. Ela gargalhou, quase caindo de costas. O casal esquivou-se até a varanda, seguidos pelos amigos de Rodolfo, com seus uísques e caipisaquês.

Uma brisa agradável vinha do oceano, agora resumido a linhas de espuma branca no breu da madrugada.

— Vai nevar, Rodolfinho?

Rodolfo tirou a nota azul da carteira e a esticou para mostrar aos amigos: de um lado, a efígie simbólica da República, do outro, nossa garoupa-verdadeira, em seu falso nado, com falsos corais ao fundo.

— Hoje neva até no mar...

Tirou um miniplástico do bolso e derramou o pozinho branco sobre o parapeito. Preparou a linha com o cartão de crédito Prime, enrolou a nota e aspirou tudo, sacudindo em seguida a cabeça feito um cachorro com otite.

Amigos se ouriçavam como crianças diante de uma carrocinha de sorvete, enquanto Andressa, distraída, prendia o cabelo num rabo-de-cavalo, exibindo a palavra "Liberdade" tatuada em suas costas malhadas.

Foi então que um vento forte bateu de súbito, tombou uma cadeira, virou do avesso um guarda-sol e fez a garoupa escapulir da varanda.

— Puta que o pariu!

A nota se abriu como se criasse asas e a garoupa sentiu-se leve, balançando ao sabor do vento, feito suas colegas arara e garça. Por um instante, a luz branca dos postes da orla parecia um farol a guia-la rumo ao seu habitat, o vasto oceano. Mas a esperança de transpor a fronteira logo veio abaixo quando uma brusca mudança de vento a empurrou no sentido contrário. Veloz e sem freios, seguia pelo labirinto de edifícios brilhantes na direção do centro da cidade, até perder os sentidos ainda no ar.

Despertou com o primeiro facho de luz esverdeando seu azul-piscina. Estava encostada ao meio fio, do lado de uma latinha de guaraná amassada. Duas pernas atravessaram a rua, se agacharam ao seu lado, e a garoupa sentiu mãos ásperas, cheias de calos. A fungada trouxe cócegas no contato com o bigode.

— Acordei com a bunda pra lua!

Inserida de qualquer maneira num bolso suado e encardido, a garoupa só viria saber mais tarde que seu novo dono era o estivador Eusébio, um bocado satisfeito por finalmente poder acertar com Firmino, seu agiota. Já estava com o dinheiro para pagar a maior parte da dívida, mas faltavam justamente cem reais! Não gostava de Firmino, muito menos de dever dinheiro a ele. Era a primeira vez que faziam negócio e não pretendia que houvesse uma segunda, o que aumentava sua satisfação ao liquidar de vez o assunto.

Era um domingo e o escritório de Firmino estaria fechado, mas Eusébio tinha seu turno a cumprir. De oito às cinco, operou guinchos, tratores e empilhadeiras, organizando cargas no convés de um navio que partiria no dia seguinte. No intervalo, fartou-se de arroz, feijão, farofa e coxinhas de frango, e gargalhou mais do que seus colegas quando contou a última piada do Joãozinho, que recebera do cunhado por zapzap.

Eusébio voltou contente para casa ao escurecer, mas assim que girou a chave e abriu a porta, seu bem-estar transformou-se em vertigem. Ali estava, na sua sala de estar, frente a frente com sua esposa Angélica, o agiota Firmino, atarracado, com sua cabeça chata e seu bigodinho que mais parecia uma lagarta-de-fogo.

Angélica aproximou-se do marido com cara de tonta, esfregando as mãos no avental de cozinha.

— Querido, esse moço disse que te conhece, que tem um negócio a tratar com você.

Eusébio apertou a mão de Firmino sem dizer uma palavra. Como ousava vir até sua casa sem aviso, num domingo à noite, constrangendo sua esposa, invadindo sua privacidade! O cobrador não parecia incomodar-se com o silêncio, seu olhar passeando pelos poucos objetos de valor presentes na sala: a antiga cadeira de balanço de jacarandá, herança da família de Angélica, a louça de porcelana chinesa que fora presente de casamento e a TV LED de cinquenta polegadas, financiada com o empréstimo do próprio Firmino, onde agora o Faustão anunciava aos berros a "Dança dos Famosos", logo após os reclames do plim-plim.

— Querido, o moço tá esperan...

— Sim, sim, já sei, pode voltar pro seu programa.

Angélica voltou desconfiada ao sofá, mas tão logo se postou na frente da TV, um olhar alienado, quase demente, instalou-se em seu rosto.

— Vamos conversar na cozinha.

No corredor estreito entre a pia e o fogão, sob o cheiro inebriante de alho, Eusébio tirou a nota de cem do bolso, misturou ao restante do dinheiro, e chapou com força as cédulas na mão de Firmino. A garoupa se ressentiu por ser manuseada com tamanha rispidez, sobretudo quando inserida de qualquer maneira numa carteira marrom com cheiro de couro velho, antes ocupada apenas por duas solitárias tartarugas-de-pente.

— Tudo certo? Então vá com Deus...

Eusébio guiava o agiota bruscamente na direção da saída.

— Não se chateie, Eusébio. Só vim porque tenho que buscar amanhã uma encomenda importante e precisava do dinheiro. Sabe como são essas coisas...

— Sei sim, até logo.

A porta bateu com força atrás de Firmino.

Na manhã seguinte, o agiota foi a uma ruela escondida do centro para buscar, numa casa decrépita dos anos trinta, a tal "encomenda importante": o vestido de casamento da esposa, que deixara aos cuidados de uma costureira. A dona do negócio era uma senhora gorda chamada Cleidir, de cabelos grisalhos, pele maltratada e um olhar arguto de quem se manteve ocupada a vida toda. Ela preenchia com caneta a nota de compra, sentada num banquinho frágil que parecia incapaz de aguentar seu peso.

— Noventa e três reais.

Firmino fez uma careta, tirou a carteira do bolso e pagou com a garoupa, que buscava ainda se acostumar àquela vida errante. Cleidir arranhou a nota, a levantou contra a luz e a largou dentro da bolsa, junto a um casaco velho, um celular, a última edição da revista Marie Claire, um cartão da Caixa Econômica, algumas tartarugas, gaivotas, araras e uma onça-pintada.

— Sua senhora vai ficar bonitona com o vestido novo, viu? Garantido.

— Com essa dinheirama que tô pagando, é bom que fique bonita mesmo.

Cleidir abriu um sorrisinho falso escondendo os dentes, e Firmino achou por bem desfazer a má impressão.

— É uma ocasião especial, vinte e cinco anos de casados.

A costureira levantou a cabeça com olhos arregalados e bateu palmas.

— Que maravilha! Bodas de prata! Parabéns ao casal!

Ela ficou de pé e o agiota viu-se obrigado a forçar um sorriso e envolver nos braços aquele monte de banha. O mundo era cheio de doidos. Uns abraçavam estranhos com um ânimo desatinado, como se fossem velhos amigos, outros lhes davam tiros de revolver sem motivo aparente. Pelo menos, Cleidir era do primeiro tipo.

A garoupa, por sua vez, ficou contente por não estar mais confinada a uma sufocante carteira, embora a bolsa de Cleidir cheirasse a esmalte e Leite de Rosas.

Mas o alívio durou pouco. Por volta de meio-dia, a garoupa ouvia o ruído do trânsito, quando a costureira enfiou a mão na bolsa, tirou uma gaivota e a pôs de volta. Depois fez o mesmo com duas araras e resmungou qualquer coisa, até enfim achar o que procurava: a onça.

— Afff, finalmente!

Minutos depois ela mudou de ideia, devolveu a onça e pegou a garoupa, que trocou o ar abafado da bolsa pelo ar poluído da rua. Estava numa fila enorme na calçada, em frente a uma casa lotérica. Cleidir juntou as mãos em forma de reza, a garoupa espremida no meio, e rezou o Pai Nosso ao som de buzinas e freadas de ônibus.

Quando enfim chegou a sua vez, Cleidir entregou a garoupa, misturada a um monte de papel, ao homem atrás do balcão, um mulato jovem, de cabelos dreadlock, vestindo a camisa do Barcelona.

O funcionário conferiu a quantidade de talões preenchidos e encarou Cleidir com um olhar de espanto por trás dos dreads.

— Isso tudo, dona?

— É hômi, e vamo logo que eu tenho serviço me esperando!

— Ô estresse...

Guardou a garoupa na gaveta do móvel à sua frente e tirou algumas tartarugas e garças de troco.

À noite, a garoupa foi bruscamente removida de um sonho agradável, em que nadava em alta velocidade por um mar azul-turquesa. O mulato que a guardara mais cedo a tirou da gaveta, a inseriu no bolso lateral da calça jeans surrada e saiu para a rua, fechando a casa lotérica. Na esquina, um amigo o esperava.

— O Marcelo nem confere os ganhos do dia, então tá tranquilo. Depois dou um jeito de devolver.

O amigo se manteve em silêncio, e o mulato continuou.

— É por uma boa causa! A Joaninha mal tem falado comigo, anda tristinha, mas esse presente vai dar um jeito.

A garoupa descobriu pelo bate-papo que seu novo dono a usaria para comprar o último lançamento da Barbie, que vinha com três bonecas, uma casa e tudo mais, para dar de presente à filha Joana em seu aniversário de cinco anos. Supostamente, todas as amiguinhas da escola zombavam dela por não ter ainda a tal Barbie Real Casa, e ele, como pai, sentia-se no dever de impedir que a filha sofresse bullying.

Pararam em frente a um boteco, e o amigo enfim revelou sua voz:

— Umazinha pra comemorar!

Sentaram na única mesa vazia da calçada e pediram uma Brahma. Em volta, dois sujeitos discutiam ferozmente o resultado do jogo do bicho, um branquelo com óculos de armação grossa e camisa polo acariciava a mão de uma mulher grandona com peito de silicone e gogó saltando do pescoço, e um velho com cabelo desgrenhado e barba por fazer encarava vidrado o copo de cerveja. A garoupa passou a escutar as conversas entre o mulato dos dreads e seu amigo, que fluíam cada vez mais soltas e animadas. O carrinho desleal que o "babaca do Nelson" deu na pelada de domingo à noite levou ao assunto do Messi tornando-se o maior goleador da história da Liga dos Campeões (O hermano tá de sacanagem!), que levou à discussão se o Neymar alcançaria ou não o patamar de seu companheiro de time, que levou ao vídeo da Bruna Marquezine rebolando até o chão, que levou ao dilema não resolvido de quem era a Panicat mais gostosa. De dentro do boteco, vinha o som alto da extinta lambada: Chorando se foi quem um dia só me fez chorar / Chorando estará, ao lembrar de um amor / Que um dia não soube cuidar... A garoupa tentava cochilar, mas era difícil.

Ouviu então o mulato pedir a conta (Fecha aí pra gente, Paraíba!), foi retirada do bolso da calça e jogada aberta sobre a mesa do boteco, ao lado de incontáveis garrafas de cerveja vazias.

Era só o que faltava. Deixava de fazer a alegria de uma criança para financiar a bebedeira de um pai irresponsável.

Mas o destino novamente jogou ao seu favor quando um caminhão de lixo passou ao lado da mesa em alta velocidade e despertou um vento lateral que levou a garoupa embora.

Subiu e subiu, na brisa suave e constante, para percorrer a cidade do alto.  Primeiro o centro histórico, com seus casebres, ruelas e praças, feito uma maquete cenográfica dos anos quarenta. Depois, sobrevoou prédios iluminados e imponentes avenidas onde carros deslizavam com pressa sobre o asfalto. Assim ficou durante muito tempo, aproveitando o doce gostinho da liberdade.

Entretanto, o que a garoupa de fato desejava era a imensidão do mar, e tão logo o sol começou a despontar no horizonte, foi como se os ventos lessem sua mente, pois viu o oceano cada vez mais próximo, brilhando dourado à primeira luz da manhã. Mal continha sua ansiedade. Enfim sentiria o frescor da água e nadaria por ela sem amarras e sem destino.

Atravessou a orla, a praia e ganhou o oceano sem fim.

Já estava bem distante da terra quando os ventos cessaram e a garoupa começou a cair graciosamente até a superfície do mar, seu habitat, livre para sempre da ganância desmedida do mundo dos homens. Mas, destino ou azar, calhou de atingir a mão de um pescador, que voltava pra casa sem peixe.

 

 

 

 

O último dia de Horácio

 

 

Horácio tomou banho no dia em que morreu. Não seu banho habitual, em qualquer fonte de praça pública, com transeuntes em volta se alternando entre o riso, a repulsa ou um pomposo desprezo, mas um banho de verdade, com ducha, xampu, sabonete. Essa tarefa corriqueira, que a maioria cumpre mecanicamente enquanto pensa nos afazeres seguintes, foi para Horácio uma fugaz alegria antes do fatídico fim.

Nesse dia, Horácio despertou embrulhado em papelão na calçada da Presidente Vargas, em frente ao Bradesco. O movimento era intenso e uma fila de gente nervosa já crescia na porta do banco. Livrou-se do calor sufocante das cobertas e se refrescou com a leve brisa no corpo suado.

Espreguiçou-se e sentiu a fisgada, como uma ponta afiada de facão. Há alguns anos a dor nas costas deixara de ser insuportável, incomodando-o apenas ao acordar. Tornara-se parte dele, tal qual a crosta de sujeira que o envolvia dos pés à cabeça e a fome inclemente que levava na barriga. Era como se tivesse nascido com ela, e sabia que com ela morreria. Estava certo.

Escovando os dentes, buscou a hora num relógio de rua, mas este mostrava a temperatura. Um sujeito imediatamente se interpôs em seu campo de visão para armar uma barraca de CDs e DVDs piratas, impossibilitando-o de ver a hora no relógio. Guardou a escova, bochechou a cerveja morna no copo de plástico e ficou de pé, rosnando com o vendedor.

— Sai pra lá, ô chato!          

A réplica não o incomodou, acostumara-se aos insultos. Ainda assim sacudiu-se, fez seu clássico ruído com a língua para fora, espremida entre os lábios, e escarrou um viscoso catarro amarelo-ovo que pousou no asfalto perto de uma secretária baixinha de minissaia, que apertou o passo com cara de nojo. O camelô o encarou, assustado. Sempre dava certo, posar de louco.

Caramba, quase dez horas! Quase nunca dormia até tão tarde, e se soubesse que este dia seria seu último, talvez tivesse levantado mais cedo para aproveitá-lo... Ou talvez desse na mesma. Não tinha nada de novo para fazer, nada que o entusiasmasse.

Horácio era baixo, rechonchudo, de bochechas largas. Banhas transbordavam sob a camiseta rasgada e encardida, apesar da fome. A cabeça parecia uma miniatura do tronco devido ao mesmo formato redondo. Tinha calvície acentuada e uma barba branca, rala, por fazer. O olhar era sempre o mesmo: impassível, ausente, na pasmaceira que era sua vida.

Tomou o saco plástico das Sendas com seus pertences e começou a caminhar. Não se preocupava em desviar das pessoas. Faziam isso por ele, abrindo à sua passagem um largo corredor na calçada, como se reverenciassem um ilustre membro da sociedade. Faltava apenas o tapete vermelho. Horácio ria com a ideia, ignorando o fato de que o real motivo era suas roupas imundas, seu aspecto de indigente, seu cheiro de coisa podre.

Uma das distrações de Horácio era observar os tipos em volta. Camelôs, bicheiros, malandros e pastores evangélicos anunciavam aos berros seus produtos supérfluos, crenças disparatadas e prazeres mundanos. Panfletos de divulgação de consultórios, escritórios, firmas, restaurantes, bares e puteiros passavam de mão em mão até ocupar seu lugar no asfalto.

Homens de terno e gravata cheirando a loção pós-barba sopravam no ar a fumaça pedante de seus cigarros, enquanto jovens executivas de maquiagem pesada e salto alto conferiam telinhas de celular, desdenhosas com seu pedigree em meio a vira-latas.

Horácio desconhecia esse mundo. Entre tantas formigas operárias, ele era um ser invisível, solenemente ignorado. Orgulhava-se de sua ociosidade e falta de propósito. Não precisava de casa, carro, geladeira, fogão, ar condicionado, TV de plasma, Smartphone. Vivia até mesmo sem uma cama confortável, apesar da falta que lhe fazia. Tudo o que tinha levava consigo: a roupa do corpo, a medalhinha de São Judas Tadeu, símbolo de uma vida passada que desvanecera de sua memória debilitada pelo álcool, o canivete que carregava como proteção desde que um grupo de jovens idiotas pusera fogo num índio dormindo na rua (vira na TV), e um velho radinho de pilha, atual passatempo para afastar os espasmos pela falta da cachaça.

Fuçou latas de lixo até conseguir uma maçã mordida e meio sanduíche de atum, que empurrou goela abaixo. Com a barriga semipreenchida, sentiu-se atraído pela vitrine de uma loja de bebidas, as garrafas de tamanhos e formatos variados, os logotipos coloridos. Saliva escorria pelo seu queixo, como um cão raivoso. Revirou os bolsos; nem um tostão. Sua visão começava a anuviar, seu corpo a tremer, seus dentes a trincar, e Horácio saiu rapidamente dali.

Encontrou algum alento no Largo da Carioca, entre pedestres aglomerados em torno de um homem fantasiado de Mister M, que incitava um ar de mistério, enquanto outro de peruca branca e um topete descomunal narrava com a voz grave de Cid Moreira.

— Mister M agora vai queimar uma pessoa viva...

E Mister M esticou os braços à frente, liberando sua magia sobre um sujeito negro como o céu da noite, que assistia o espetáculo com um sorriso branco de arder na vista.

— Ahhhh Mister M... mágico filha da puta...

A gargalhada de Horácio afugentou algumas pessoas e, como uma reação em cadeia, logo a maioria dispersou. Cid e Mister M lançaram-lhe um olhar antipático antes de irem se apresentar em outro local.

Caminhou até a Cinelândia e sentou-se num banco em frente a pombos brigando por grãos de milho sobre um mosaico de pedras portuguesas. Foi quando a viu: Marinalva, com seu vestido caseiro, cabelos malcuidados presos num coque, com fios brancos ouriçados, como se tivesse levado um choque. Ela aproximou-se, com seu sorriso enternecido, até levar as mãos à cintura e tombar a cabeça para o lado como uma tia do jardim de infância se dirigindo a uma criança desmiolada.

— Há quanto tempo que não te via, Horácio!

Ele grunhiu alguma coisa, como um porco.

— Quer tomar um banho?   

Chacoalhou a cabeça, aceitando o convite. Marinalva fez um sinal para que a seguisse, mas ele sabia o caminho. Não era retardado.

Quando entraram no apartamento, Marinalva bateu a porta com força, jogou o molho de chaves sobre a mesa da sala e foi à cozinha. Uma jovem de vinte e poucos anos estava sentada de cabeça baixa no sofá velho, mordendo os lábios e apertando nervosamente uma imagem de São Judas Tadeu, igual a que ele levava presa ao pescoço. O ambiente claramente a oprimia.

Marinalva trouxe um copo d´água a Horácio, que o bebeu num só fôlego, e depois o guiou até o banheiro.

— A toalha tá aqui. Pode vestir essa roupa... Ali tem xampu, sabonete... se lava direitinho pra tirar essa inhaca porque você tá mais fedido que o caminhão de lixo, Horácio.

O carinho de Marinalva o enrubescia. Era uma mulher rechonchuda como ele, os seios lânguidos como geleia. Horácio imaginou que algum dia poderiam ter sido empinados, lisos, agradáveis ao olhar e ao toque. O tempo era especialmente impiedoso com as mulheres, mas a verdade é que ele tampouco gostava de imaginar-se o que de fato era: um velho acabado, barrigudo e pelancudo.

Despiu-se, evitando o espelho, e se rendeu ao banho quente, o vapor envolvendo seu corpo em letargia. Não queria que terminasse e estava quase dormindo, sentado sob o chuveiro, quando Marinalva bateu com força na porta e acabou sua paz.

— Tudo bem aí, Horácio?

Saiu e se enxugou. Sentia-se leve, quase levitando, sem a camada espessa de sujeira que antes o cobria como uma armadura.

Vestiu as roupas novas, uma calça de pijama que amarrava na cintura, uma camiseta velha e outra de botão por cima, penteou para trás os cabelos úmidos e voltou à sala, sentindo-se um novo homem.

A menina estranha do sofá estava agora sentada à mesa da sala ao lado de Marinalva, receosa e apreensiva como antes.

— Sente aqui, Horácio.      

Ele pigarreou e olhou na direção da saída. Depois do banho, Marinalva geralmente dava-lhe um pão francês, uma broa de milho ou goiabada, e ele ia embora. Agora, por algum motivo obscuro, era chamado para uma conversa com a participação de uma mulher que sequer conhecia.

— Essa moçinha veio de longe pra te ver. O nome dela é Lurdes.

A jovem enfim levantou a cabeça, o olhar desamparado num rosto intumescido de lágrimas. Horácio manteve o semblante. Não a reconheceu. Tampouco lhe importava quem era e porque estava interessada nele. Coisa boa não podia ser. Impossível.

— Venha, sente aqui, ande!

O comando impaciente de Marinalva enfim venceu sua desconfiança e ele tomou assento, por respeito à anfitriã.

— Nós nos conhecemos há bastante tempo e eu sempre quis saber quem você era, um pouco sobre seu passado... tirei fotos suas sentado no banco da praça, algumas bem de perto, com o zoom da máquina. Aí tive a ideia de criar seu perfil no Facebook. Não sabia seu sobrenome, então botei só Horácio... mas Horácio, meu filho, nunca podia imaginar o que aconteceu... você foi reconhecido!

Aquelas palavras saíam da boca de Marinalva para cair num espaço vazio em sua mente. Zum, internet, feissibuqui — que diabos era isso? Por que não podia ser como das outras vezes: tomar seu banho, ganhar algo de comer e seguir seu rumo? Não queria escutar aquilo e estava quase levantando para ir embora até subitamente ver-se preso à cadeira. Novas palavras, estas sim repletas de significado, o atingiram como um soco no estômago: filha, tragédia, Santo Antônio do Pinhal, viajou, ver, pai.

O passado que tanto lhe custara esquecer voltou numa enxurrada de imagens: uma cidadezinha do interior, um emprego de balcão, um apartamento humilde, um berço. Os bares, porres, as brigas em casa. Uma faca em sua mão, a esposa caída no chão da sala com uma poça de sangue em volta, e a dor dilacerante da facada em suas próprias costas, enfiada por uma menina sardenta de tranças: Lurdinha, sua filha, a jovem ali presente.

Saiu em disparada pelo corredor e desceu a escada pulando os degraus, a tempo de ouvir os gritos ecoarem pelo mármore do edifício velho.

— Horácio!

— Não vá!

— Pai!

— Pelo amor de Deus!

Ganhou a calçada, o formigueiro humano, o som enervante das buzinas. Avistou um boteco do outro lado da rua e correu rumo à salvação. Queria se esquecer de tudo e conhecia o remédio para isso. O infalível remédio! Ia esquecer, tinha que esquecer... Nem se dera conta de que não tinha um centavo no bolso quando veio o impacto com o ônibus, seu corpo arremessado para o lado entre estilhaços de vidro e metal.

Caiu e ficou, estatelado no asfalto.             

A perspectiva do descanso eterno anestesiava a dor. Não teria que se lembrar, nunca mais. Sua última visão foi de rostos curiosos e assustados aglomerando-se ao redor, emoldurados pelo céu azul. Aqueles que tiveram coragem de mirar a vítima nos olhos surpreenderam-se com o leve sorriso no rosto dilacerado do mendigo de banho tomado.

 

 

[imagem ©marina molares]

 

 
 
 
 
 
 
 
 

Bruno Flores (Rio de Janeiro/RJ, 1985). Jornalista, escritor e gestor cultural. Participou com duas resenhas críticas de antologia em homenagem ao centenário de Jorge Amado. Publica artigos, contos, críticas de cinema e literatura em revistas digitais e blogues. Negocia publicação de seu primeiro romance, Rumah — A saga do povo Kitaran.