Um homem remendado...

 

 

Um homem remendado

Francamente Frankenstein

Feito de fraturas, fragmentos,

Frações e medos e arremedos

ancestrais

Isolado em invólucros, alvéolos,

Redes de esgoto, de desgosto

Sociais

Busca uma visão do todo.

Mas o todo é o alvéolo

É o invólucro

É o instante.

A abstração do conjunto

Não resiste ao um mais um mais um mais um...

Só há estilhaços

E as estradas de ferro e aço

Ligam nada

A lugar nenhum.

 

 

 

 

 

 

As cidades: A cidade

 

 

As cidades, ácidas,

Onde o homem é o centro e o cetro

Onde o homem consubstancia-se

Fazendo-se pedra

Fazendo concreto

E geométrico, euclidiano

Traça metas-retas-planos

Através das origens concêntricas

De seu espírito espiralado;

 

As cidades, aliciantes, aliciadas,

Onde subterrâneos, subcutâneos,

Em trilhos sonoros e sem sono

Trens estremecem Alices, alicerces,

E sucessos e danos

Igualmente

Sucedâneos;

 

As cidades, assediadas,

Sedes da fome e da sede,

Onde o medo precede

A fuga e o ataque

E uma refeição frugal

Mal suporta o baque

De tantas incertezas sempre refeitas,

Sempre refênix;

 

A cidade, sitiada,

Onde o rock rap hip-hop

Dão a letra

Dão a cara

Feridas de violência letal

Ultravioleta

E cantam suas rimas pobres

Sobre um ambiente ambíguo e podre

Pródigo para a reprodução em cativeiro

De uma espécie em extinção

Que suga dos ubres dessa urbe

Seu cimento colostral;

 

A cidade, citadina,

E o seu chão cinza

E o seu ar cinza

E sua alma cinza

E seu todo cinza,

De dizer sim

A outra cor mais aérea, menos venérea,

Será capaz

Ainda?

A cidade e sua unicidade

A cidade e suas siglas, sua sina, sua SIDA

A cidade assassina e suicida;

 

A cidade, sem unicidade, contradita,

Com seus olhos e óleos ambivalentes,

A grande Mãe e a grande Prostituta,

Ela vivendo nela

Entre cancros e morangos

Seringas e cerejas

Muros e amoras

Túmulos e tâmaras

Morcegos, ascos

Pêssegos, damascos

E a foice que ceifará os cachos

Da videira da Terra

Porque as uvas já estão maduras;

 

A cidade e suas sete faces

Setenta e sete vezes sete faces

Ciclone enciclopédico varrendo átomos e literatura

Em meio aos fogos e artifícios de um ano novo envelhecido

Saltos de janelas e de trens não-romanescos

Sortes-sem-acertos

Erros-sem-azares

E ruas-becos-iludidos-sem-saída:

Porque toda entrada é saída retorcida...

... Oh! Baby! You are so alone!

Cause you are (in)

Babilon…

E a tenda (a cidade das cidades)

A surgir dos céus

A surgir do ardor

A surgir do além

Jerusalém

Tardará... tardará... tardará...

Tardar é o seu princípio

(O princípio dos princípios)

Hosana! Aleluia! Amém!

 

 

 

[Poemas do livro Bromas & Bromélias. Penalux, 2015]

 

 

 

Cactos

 

 

Ao sol escaldante deste inferno sem fim

Com perícia, com calma

Minhas folhas espalmadas enrodilho-as

Sobre si:

Punhos Cerrados em promessa de revide

Um abraçar-se, insígnia maior de salvaguarda.

 

Para que nada me calcine

cauterize

espezinhe

Tramo espinhos:

Debilidade afetada de insolência

O sempre-medo a enrijecer fragilidades

Repositório a represar a água exígua.

 

 

 

 

 

 

Desertos

 

 

Arenosa, arenífera, aérea imensidão

De onde toda mansidão se desagrega.

 

Arena aracnídea constituída de espinhos e espreitas

Movimentos prestos

E espera

Regida pela fluência áspera

Da areia

A declamar estrias, coreografias, sulcos

Pela influência cortante

Da areia

A ressecar córregos, hálitos, olhos

Pela dicção sequiosa dicção de areia

E suas perenes securas seculares.

 

Espaços ermos onde a fome e a carestia são a bússola

Magnetizada por golpes de caudal lança,

Vigilância

E a predileção por esta noite escorpiônica

EscorpiôNix.

 

Talvez me perguntes:

Será somente dos desertos que ora falo?

 

Essa manufatura provendo apenas o precário

Provisório

Essa vastidão elaborada com silício

E silêncio...

 

 

 

 

 

 

Microcosmo

 

 

A dor que você me infligia

Creio até que não doía tanto

Um pouco

Eu até fingia

Pra ver se aumentava o seu espanto.

 

Não aumentava.

E ainda dizia

—Engole o choro

Que não é pra tanto.

 

Pelo que se tornava honesto

Meu sofrimento beduíno

Num microcosmo exemplar de humanidade

Atravessando seus desertos falsos

E genuínos.

 

 

 

 

[imagem ©java acuña] 

 

Arzírio Cardoso. Escritor e professor paranaense. Graduado em Letras [Português-Espanhol], dedica-se à poesia desde 2003. Alguns de seus poemas, publicados aqui e acolá em blogues e páginas na internet, fazem parte de seu livro de estreia, Bromas & Bromélias, publicado em 2015 pela Editora Penalux. Em seus versos, percebe-se a consciente tentativa de comprimir e sintetizar a linguagem, numa busca pela concisão, precisão e recorte. Paronomásias, jogos de palavras, figuras sonoras e ludicidade são características marcantes em seu estilo a um tempo esmerado, jocoso e reflexivo. Sua poesia brinca com o leitor e a este distribui piscadelas cujo significado tanto pode ser um convite à apreciação e à exploração das oceânicas potencialidades da linguagem como um "Arrá, por essa você não esperava, hein!".