As crônicas são narrações históricas, pela ordem do tempo em que se deram os fatos. São, portanto, a fotografia de uma época. Lima Barreto escreveu romances e contos. E contou em seus romances a história de uma época. Neste sentido, as crônicas de Lima Barreto (assinadas em veículos que pulverizaram o autor em publicações de nomes sugestivos como "Marginália", "Bagatelas", "Vida Urbana", "Revista da Época", "Feiras e Mafuás", "Hoje" e "Careta") são um caleidoscópio multicolorido de um Brasil semi-provinciano nas primeiras duas décadas do século XX, ou seja, há 100 anos.

 

Se o país em que vivia, o Brasil, e sua cidade natal, o Rio de Janeiro, eram ainda provincianos, o mesmo não se pode dizer do olhar que a pena de Lima Barreto registrou em suas crônicas. Há, nelas, a observação clínica e crítica de um escritor que não teve medo de apontar vícios de uma sociedade que, apesar de potencialmente vibrante, não tinha pressa de justificar sua História com a marca da justiça. É, portanto, sob a marca da dor e ao som de uma voz que grita sem vez, que o livro Crônicas Escolhidas de Lima Barreto se apresenta para o leitor no início do século XXI.

 

Lima Barreto nasce no dia 13 de maio de 1881 — exatos sete anos antes do dia da Libertação dos Escravos. Morre em primeiro de novembro de 1922, ano em que se realizou a Semana de Arte Moderna, evento que pregava a libertação estética da expressão artística no Brasil. As efemérides de seu nascimento e de sua morte coincidem com a celebração de um ideal que acompanhou Barreto durante seus dias (e que também lhe trouxe alguns desentendimentos): a liberdade. Este foi, certamente, um conceito que caracterizou não apenas o nascimento e a morte do escritor carioca; a liberdade definiu sua personalidade e marcou profundamente sua vida e, particularmente, sua obra.

 

As crônicas de Lima Barreto são uma boa estrada para o leitor ser apresentado ao seu universo literário. Ali, já se delineiam as tintas de um escritor antenado aos fatos relevantes do mundo em que vive, como uma greve de bancários em Berlim, o lançamento de um livro de Monteiro Lobato e a morte da Princesa Isabel. Em suas crônicas, porém, se faz surgir, principalmente, um escritor antenado aos fatos menos relevantes do mundo, como o adultério de uma mulher e seu assassinato pelo marido, ou a passagem da carrocinha a caçar cachorros nas ruas. É justamente no denominador comum, na tênue fronteira, entre o relevante e o irrelevante, que se revelam o estilo e a inteligência barreteanos. É deste encontro que nascerão os personagens principais de sua ficção: Isaías Caminha e Policarpo Quaresma.

 

Filho de uma escrava com um português, Lima Barreto era mulato. E a literatura que produz também é mulata, pois mistura tudo e todos em suas páginas. Suas crônicas são o testemunho de um tempo presente "sem mistificação" (como dizia Drummond). O tempo das crônicas barreteanas é o tempo em que o Brasil tinha vergonha de se assumir mulato. Lima Barreto não esconde o Brasil popular embaixo de tapetes persas pisados por uma elite branca. Ele registra a mistura e o rebolado confusos que marcam nossos primeiros passos no século XX. Tudo e todos estão para Barreto acima de qualquer tapete. E Lima sonha. É um Quixote dos trópicos. Em suas crônicas, ele faz desfilar tipos eruditos de mãos dadas com o popular. Em "Tenho esperança que...", crônica que abre o livro, por exemplo, há referências a Machado de Assis, Fagundes Varela, Castro Alves, mitologia grega e Francis Bacon. Mas, na mesma crônica, andamos de bonde no subúrbio e ouvimos uma voz pedindo mais professores para as escolas públicas da periferia. Em "O caso do mendigo", Lima Barreto olha um mendigo de dentro de suas necessidades e, ao contrário do olhar mais fácil da acusação, enxerga nele um ser humano. Em "Elogio da morte", a crônica mais ácida do livro, o escritor carioca faz colocações com musculatura para provocar crises e sacudir sustentáculos conservadores e também para inspirar o progresso em qualquer área. Veja estas passagens: "A agitação de uma ideia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco. (...) Nunca foram os homens de bom senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretárias chics que fizeram as grandes reformas no mundo. Todas elas têm sido feitas por homens, e, às vezes, mesmo mulheres, tidos por doidos. Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, estaríamos ainda no Cro-Magnon e não teríamos saído das cavernas".

 

Lima Barreto testemunhou fatos importantes da História do Brasil e não deixou de registrá-los em suas crônicas. Em 1921, na crônica "15 de novembro", ele escreve: "Li com tristeza a notícia da morte da princesa Isabel". Nessa crônica, aborda a escravidão libertada e a figura daquela que assinou a Lei Áurea. E define com imensa atualidade as desigualdades que persistem no Brasil (cada vez mais rio de janeirado) no século XXI: "Não será, pensei de mim para mim, que a República é o regime da fachada, da ostentação, do falso brilho e luxo de


Parvenu (novo-rico) tendo como repoussoir (contraste, contraposição) a miséria geral?". Na crônica "Maio", Lima Barreto escreve, em maio de 1911, apenas 23 anos após a assinatura da mesma Lei Áurea, sobre suas lembranças de 13 de maio de 1888, dia de seu aniversário de 7 anos. É interessante para nós, hoje, lermos que aquele foi um dia de festa no Brasil. E voltamos no tempo com o testemunho do cronista: "Eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos hediondos. Era bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei  da abolição foi geral pelo país. Havia de ser, porque já tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão. Quando fui para o colégio, um colégio público, à rua do Resende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos tinha tomado. A professora, Dona Teresa Pimentel, uma senhora muito inteligente, a quem muito deve o meu espírito, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre!".

 

Ler estas Crônicas Escolhidas é ter hoje a experiência da constatação de que cronometramos problemas que persistem em nos acompanhar (enchentes no verão, violência urbana, arquitetura sem memória e até mesmo a ecologia) desde a virada do século XIX para o XX. Lima Barreto foi um grande observador do Brasil e de suas mazelas sociais. Ele nos mostra um país pobre que tenta vender uma imagem de riqueza e prosperidade. É com poesia que ele define esta contradição, na crônica "Variações...", escrita um mês antes da Semana de Arte Moderna: "A questão é do real, esta absoluta e fictícia unidade monetária que nos ilude". Pudesse ele levantar-se do túmulo e caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro hoje, provavelmente seu olhar confirmaria esta afirmação. E que tal a solução proposta para a capital carioca (seda da Olimpíada de 2016): "Que sejam dados a cada indivíduo isolado um machado, um facão, uma espingarda de caça, chumbo, espoletas, enxadas, semente, uma cabra, um papagaio e um exemplar de Robinson Crusoé. O livro de Defoe será como a Bíblia desses mórmons da nova espécie; e com a fé que ele lhes há de inocular, teremos, em breve, a cidade do Rio de Janeiro descongestionada e o sertão devassado e povoado". Olhem aí, Eduardo Paes e Luiz Fernando Pezão!

 

Na última crônica do livro, Lima Barreto defende a existência da vadiagem na sociedade: "Em toda sociedade, há de haver por força vadios. Uns, por doença nativa; outros, por vício. Tem havido até vadios bem notáveis. Dante foi um pouco vagabundo; Camões, idem; Bocage também; e muitos outros que figuram nos dicionários biográficos e têm estátua na praça pública". Lima Barreto foi um vadio notável (mas pouco notado), que pouco figura nos dicionários biográficos e não tem (que eu saiba) estátua em praça pública. Mas construiu uma obra que merece ter um lugar alto na literatura brasileira, pois é de uma modernidade duradoura. Mais duradoura do que uma Semana. Sua obra repercute por todo um Século de Arte Moderna.

 

 

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O livro: Lima Barreto. Crônicas Escolhidas de Lima Barreto.

São Paulo: Ática, 1995, 158 págs.

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junho, 2015