superfície

 

 

o jeito que você se mata é café-com-leite
eu quero subir nos enfeites da ponte e me amassar
contra os carros
quero morrer queimando no mar
quero morrer queimando dentro de alguém ou
com três pessoas dentro de mim
eu quero morrer com meu melhor amigo me beijando
morrer virando fogos de artifício
eu quero morrer hoje
agora
e amanhã de novo
com o meu pior inimigo pedindo pra que eu solte
a faca
solte a foca solte a faca por favor
o mar que você se joga é
gigante
o mar que você se joga é muita coisa pra você
você não merece morrer num infinito assim
o seu sangue é só a superfície do mar
o seu sangue é só a superfície de mim
eu quero morrer com você dentro de mim
eu quero você morrendo em mim
eu quero você hoje agora e amanhã de novo
eu quero morrer chupando
eu quero morrer voando
eu quero morrer com a boca encostando o microfone
antes de terminar a música
eu quero morrer com o batom vermelho
aos pedaços
eu quero morrer com muito sangue
eu quero morrer e você
agora hoje e amanhã de novo.

 

 

 

 

 

 

de sal e sol eu sou

 

 

eu não consigo parar 
de olhar os seus olhos 
invadidos pelo mar 
é refúgio e eu 
te amo 
mesmo enquanto você enfia mais fundo
essa faca fina no meu peito eu
te amo

não sei quem você é por isso não
desvio os olhos
enquanto você me põe de costas e 
controla o ar
eu te amo

um dia eu vou te a
mar
até quando não souber seu nome

 

 

 

 

 

 

*

 

dois metros
olhando através de mim
me tendo atrás de mim
ele segura um cigarro e mexe
os lábios 
sua fúria das tempestades
no meu céu da boca
ele me segura e mexe os seus
lábios
seus lábios são de quem sempre quer falar
e nunca fala
seus lábios prendem os meus com correntes barulhentas
seus lábios e suas mãos pousadas
no meu quadril
me ditam o que fazer

aqui e ali
com menos ou mais
força
em cima, em baixo
direção
ele fala em tridentes
é o rei dos mares e meu corpo nem
nada

ele desenha um mapa do meu corpo
e mexe
mexe
me tendo atrás de mim
olhando através de mim
ele desenha um mapa do meu corpo
e falta coração.

 

 

 

 

 

 

reza

 

 

fui curada
pelas raízes no rosto de dona maria
mãe terra
suas palavras rápidas
curvando-me em reza
quase não a ouvi
enquanto os ramos árvores
encontravam corpo
minha alma ia embora
junto à sujeira na pia
com falta d'água.

aquela nêga que acorda às quatro
com seus joelhos mortos
e manda seus sete filhos à rua
vender
bala
nêga que me cura 
clorofila e água benta
nêga lá de nós
mãe luiza
terra tão tão esquecida
lá planta
colhe
cura o mundo
e depois todos os galhos vão
à lata de lixo.

 

 

 

 

 

 

*

 

vez outra
acordo no meio da escuridão
e vejo
ciço deitado na rede
do meu lado
dizendo
que me ama
ainda
depois de mais de cinquenta anos
além mais cinquenta anos
depois da seca
depois da fumaça
depois do asfalto
depois
da morte.

 

 

 

 

 

 

*

 

amor não é contrato, meu amor
se amor fosse contrato
você se contentaria só com tato
amor não é contrato, amor
não precisa de teto

amor é além céu
sabe 
eu ainda amo meu avô 
se amor fosse contrato, amor
eu teria que apertar a mão do meu avô
mas há teto entre isso
há céu.

amor pode não ser contrato, amor
mas eu não me importo de apertar suas mãos
depois que você bate palma
pro meu coração
o show que a gente faz 
com as cortinas fechadas.

se amor fosse contrato
seria contrato de advogado cego
cheio de buraco, falha, jeitinho 
contrato que se rasga, amor
contrato que juiz num bate martelo.

cê tá ligado, seu delegado
eu posso até acreditar no amor
mas não assino embaixo.

 

 

 

 

 

 

partida

 

 

você foice

 

 

 

 

 

 

*

 

meu coração tem

dor de cabeça

 

 

 

 

 

 

*

 

seca vem quente 
que a gente tá fervendo
morrendo sofrendo
sozinho
porque isso não dá ipobe 
não aparece na novela das nove.

eles vão ver 
quando a televisão apagar
a gente ainda lá
na nossa terra quente
coração na mão
acendendo vela 
pra santo,
tomando banho de sal grosso
porque nosso gado não tá comendo
tá só o osso,
mainha 
lá em nós 
não tem água nem pra lavar o sangue 
antes de enterrar.

só nos resta a prece
ajoelhar pro sol e pedir 
pra que amanhã 
ainda estejamos aqui
pra vê-lo surgir

já que o sol é só o que nasce
por aqui.

 

 

 

 

 

 

nordeste

 

 

é por amor 
que o gado chora:

seus filhos se salvam 
no açude
de suas lágrimas.

 

 

 

 

 

 

*

 

a mando

não sei amar.

 

 

 

[imagens ©thomas saliot]

 

 

 

 
 
Regina Azevedo (Natal/RN, 2000). Publicou Das vezes que morri em você (Jovens Escribas, 2013) e Carne viva o amor estanca (Editora da Tribo, 2014). Fundou, em 2012, o coletivo cultural Iapois, Poesia!. Escreve para O Chaplin e no regina azevedo. Tem outros projetos artísticos, como "amor estanca", um show curto de performance poética autoral e oral. Vive em Natal.