"Para conseguir a representação do sentimento, a função intelectual é necessária. O poema imita emoções, mas não se elabora com elas. O instrumento do poeta não são os seus estados de ânimo e sim uma forma determinada de mensagem linguística, para cuja articulação é imprescindível o concurso do intelecto. Além disso, as próprias emoções podem ter as ideias por tema [...]".

 

José Guilherme Merquior

 

"O Lugar de Rilke na Poesia do Pensamento", in Crítica — 1964/1989: Ensaios sobre Arte e Literatura. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1990.

 

 

Para um leitor brasileiro da poesia portuguesa mais recente, isto é, da que enquadra no cômputo das suas realizações nomes tão distintos e obras tão diversificadas quanto as de Luís Quintais (1968), Pedro Mexia (1972), Manuel de Freitas (1972), José Mário Silva (1972), Margarida Vale de Gato (1973), Paulo Tavares (1977), Miguel-Manso (1979) ou Raquel Nobre Guerra (1979), o que primeiramente se poderá dizer é que essa geração tem registado uma vitalidade que não julgaríamos possível. Depois de um século XX absolutamente original e com tanta qualidade poética mais difícil se torna, às gerações seguintes. É sabido: após um período de abundância, há sempre crises de produção.

A poesia portuguesa que nestes primeiros quinze anos do século XXI se tem vindo a publicar, tem procurado responder à dita abundância de qualidade desse "século de oiro" (indiscutível, se pensarmos que de Pessoa a Luís Miguel Nava não chegam as duas mãos para enumerar os poetas de primeiro plano que tal período congregou)1 com experiências de linguagem que, em especial, no feminino, importa destacar. Ruy Ventura, porém, não está nem do lado desse discurso visceral no feminino, nem do lado do realismo mais consabido que tem em Manuel de Freitas e seus epígonos as necessárias contrafacções.

É na poesia feita por mulheres que se tem vindo a assistir a uma renovação de linguagem, a qual não devemos menoscabar. Para efeitos de contextualização da poesia de Ruy Ventura, e por razões futuras de possível trabalho comparatista, é justo que a isso nos refiramos.

É essa poesia no feminino uma poesia visceral, ora elíptica e com sintaxe entrecortada, com exigente recurso ao encavalgamento (em Vale de Gato), feita da observação crudelíssima dos factos sociais (em Golgona), ora torrencial, exuberante e exclamativa (em Raquel Nobre-Guerra), filiando o discurso no feminino nas conquistas que, desde os anos 60, com Maria Teresa Horta e Luíza Neto Jorge, foram dando espessura ao feminino como poesia corpórea, carnal, deitando por terra todos os tabus. Os problemas relativos à identidade, ao lugar ou não-lugar que a mulher-poeta detém no espaço simbólico da literatura, o lugar reservado ao sexual, ao político, são primaciais para um entendimento também sociológico e, logo, estilístico, das alterações que a linguagem poética portuguesa está hoje sofrendo. Para que conste, acrescentemos: Tatiana Faia, nascida em 1986, mais nova que Ruy Ventura treze anos, não é englobável na mesma geração poética do autor de Chave de Ignição, mas a mesma preocupação com o tratamento da imagem e um certo fundo espiritualizante tornam-nos autores relativamente aproximáveis.

Como facilmente qualquer leitor de poesia, mesmo no Brasil, pode aferir, o que se torna digno de registo em Ruy Ventura é o modo como, a partir da sua poesia, podemos falar de deslocação em relação a um paradigma narrativo ou literal que vem pautando o que se tem feito. Já o dissémos: Ruy Ventura não cabe nessa "constelação dominante" que se pauta por um discurso anti-retórico a que pertencem também, se quisermos, certo Diogo Vaz Pinto ou Ana Duarte. Assim, Ventura não está nem do lado de uma poesia urbana, antipoética, feita de derrisão e paródia do próprio poético, nem do lado virulento que anima aquela poesia no feminino a que me referi acima.

O autor de Contramina recusa, desde o início do seu percurso, iniciado nos finais da década de 90 — num tempo em que irrompia essa nova "doutrina" poética, parafraseando um equivocado "regresso ao real" —, quer o epigonismo urbanorealista, que substitui metáfora por alegoria, quer o que se joga apenas nos trilhos de um humor negro, sinónimo de deflação da linguagem ou impossibilidade de apreender o real com "certo espírito secreto", como confessou esse poeta do realismo, Cesário Verde. Em rigor, também Ventura poderia ter escrito que, ao seu olhar, tudo o que é da ordem da realidade tem um certo espírito secreto, tal qual o autor de Cristalizações. Veremos por quê.

Ruy Ventura — que grafou o nome próprio com y, homenageando, assim, Ruy Belo — tem já em Arquitectura do Silêncio (2000) uma dicção que o singulariza dos seus companheiros de geração. Essa singularidade é uma "insularidade", porquanto a sua poesia viva num arquipélago onde realismo casa com espiritualidade, sem rechaçar referentes. Pode falar-se sobre o Largo do Carmo, em Lisboa, percebendo nesse lugar um indecifrável significado que não deixa de ter relação directa com o tempo vazio em que se vive. Note-se, nesta antologia, que os poemas, todos eles em prosa, mesclam denotação com conotação. O espírito secreto que parece obrigar o poeta ao olhar fotográfico por meio do qual se possa fazer uma espécie de zoom relativamente ao que nesse real observado é ou está oculto:

 

"Fotografo uma certeza. Apenas na memória. O espaço e o alimento permanecem. Vestígios de um tempo. O presente é, contudo, apenas uma fronteira. Desaparece".

 

Tal projecto de, em prosa, dar conta da poeticidade de um mundo, acaba por fazer entroncar esta obra na linhagem dos poetas-videntes. Rimbaud não pode deixar de ser aqui convocado. A fotografia do real, levada ao laboratório da escrita, lembra o processo rimbaudiano de fazer o poema. Diz o autor na Carta ao Vidente: "O poeta é mesmo um ladrão do fogo. Ele é encarregado da humanidade, dos animais até; ele deveria fazer sentir, apalpar, escutar as suas invenções; se o que ele traz de lá tem forma, ele dá forma; se é informe, ele dá uma forma informe".

Com efeito, o poeta tem a função de simular o objeto real, ou fantástico, na sua poesia. O poema torna-se, então, um simulacro-mimético do objeto-modelo, no qual se alicerça a essência poética. Em Ventura o poema imita o objeto. É a transcrição verbal e simbólica da natureza de seu tema-objecto. Se o movimento da escrita obedece a um ritmo da memória, tal se deve, no limite, a uma capacidade de recriação dos objectos, paisagens, pessoas, fantasmas que participam desse real que agarra o responsável pela escrita que se pretende fotográfica. Essa escrita que parte do real para o simular depois na página onde tudo se recriará procura ser um outro código para o sujeito que se empenha em perscrutar a natureza. Ferido pelas imagens do mundo, querendo fotografar tudo, mas nada tendo para revelar, tudo acontece, então, num plano em que a linguagem se deixa deslumbrar com o seu próprio movimento:

 

"Deixei-me ferir por essa imagem.

 

Fica-nos uma espécie de deslumbramento. Mesmo durante o inverno, com a ribeira seca. Ao lado da estação, o jardim surpreende-nos. A criança apanha uma réstia de sol entre a rama dos canteiros. Nasce uma flor. Por entre o cimento. Desenhamos uma palavra. Ou apenas a água da ribeira?".

 

A escrita e seu gesto é, portanto, o que parece fazer deflagrar uma nova realidade: a que vê, no acto de desenhar, a palavra de onde o mundo (re)nasce.

Há, por outro lado, uma faceta, digamos assim, mental e linguística que nos pode levar a aproximar Ruy Ventura deum poeta como Luís Quintais. O que lemos no poeta de Angst, de algum modo é tangencial à concepção da poesia como lugar do pensamento, tal qual Ruy Ventura o projecta. Ao mundo pós-apocalíptico de Quintais sobrevém o mundo feito de presenças-ausentes de Ventura. De algum modo complementares. Se Quintais, já agora, questiona o que é da ordem da biografia e o que é impossível esquecer (ou não esquecer), pois que na opacidade da linguagem o mundo é um interdito (o que está entre o dito e o não dito, entenda-se) e a biografia um produto da irredimível ficção, em Ruy Ventura, a opacidade do mundo é diluída até a um ponto em que ao excesso de fantasmas, de imagens-fantasma, se sucede um excesso de ausências, palpáveis, posto que luminiscentes. Dito de outro modo: em Quintais o processo mental da escrita é um mergulho na História, a pessoal e a colectiva, que obriga o sujeito a aprender com a queda no quadro negro da dor representada; em Ventura o processo mental da escrita traduz-se numa atenção a pormenores do real que, portadores de uma luz própria, como que encandeiam e provocam uma cegueira lúcida sobre a qual se tem de escrever:

 

"Vejo o teu corpo, luzindo na noite. A água atinge a mais longínqua ponte. Escorre sobre os flancos da serra. Fecunda o coração da montanha? Ultrapasso a barragem. Flutuo como um ancoradouro. Que pensaria sobre o mundo? De novo vejo a luz do teu corpo. A noite de trovoada rasgando a terra. Ligando tudo. Como as argolas deste caderno, ligando as folhas aos dedos e à raiz".

 

Veja-se que aqui é o haver trovoada, a hipótese de trovões e relâmpagos, que propicia a associação entre realidades que não são de fácil associação, mas que obedecem àquele princípio de luminescência do real. Um corpo reluz na noite, o sujeito vê, no horizonte longínquo, uma ponte e esse rio, esse mar, essa ponte, como que se expande. É pelo olhar (o processo mental que faz com que se diga que imaginar é olhar) que o "eu" ultrapassa a barragem. Flutuam (os olhos) "como um ancoradouro". À injunção "Que pensaria sobre o mundo?", de forte ressonância à Caeiro ("Que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso"), responde a natureza luminosa desse corpo imaginado, metonímia da própria noite que, relampejando, vai "rasgando a terra. Ligando tudo". O que mais interessa: a comparação. Assim como os trovões e os relâmpagos, no entrechoque das nuvens, iluminam a terra, o corpo absoluto, natureza naturada e natureza naturante, também assim tudo se liga: folhas (do caderno), dedos e raiz (da escrita).

Num esclarecedor prefácio inserto em Arquitectura do Silêncio, José do Carmo Francisco não hesitou em colocar sob o signo da casa a poesia de Ventura. Poema-casa, poema, habitação / terra do pensamento. À casa, lugar habitável, como o poema, compreende uma necessária arquitectura. De silêncio, no caso do autor. Isso tem repercussões: Ruy Ventura, mesmo se pode atentar em aspectos da realidade mais circunstancial, mesmo se pode fazer poesia de situação, não se exime a tecer o poema em torno da arquitectura que o define e lhe dá contorno: a linguagem. Linguagem de pensamento, como em Rilke, em Ventura há a perseguição de uma essência (daí o silêncio) radical. Essência da palavra, do inominável, mas, sobretudo, perseguição dessa associação da sensibilidade entre ideia e emoção.

 

"A estrada atravessa o vazio, a imagem — uma ponte rompendo o nevoeiro, o metal identificando a manhã. O bilhete entra no espaço (a incisão da cor no interior do sono). O som, a voz da viagem, corta a linha que atravessará o rio (percurso que amadurece).

 

A escrita transcreve do corpo o segredo que reencontra a montanha. A estrada segue a escrita e o sono, o olhar interrompido pela descoberta do sol nas árvores. Resume, amplia o corpo, a paisagem — a passagem onde se eleva a presença dos objectos".

 

Deste ponto de vista, como não deixar de ver nesta obra o tom "sotto voce" de que ela é feita? Não é que Ventura queira dirigir-se a quaisquer anjos situados numa qualquer hierarquia idealizada. Quem o ouviria, de resto? O que acontece é ter o poeta a consciência de que o poema, silenciosa e meditativamente feito, é labor, ou melhor, uma sageza que não desconhece a negatividade do poético. Por isso também a palavra de poesia como coisa simultaneamente negra e mínima, sem falsidades marginais. Por isso ainda, outro elemento: a certeza de que, podendo não ser ouvido, cabe ao Poeta interrogar...

Leia-se, desse arquitectural livro de estreia (e essa noção de engenharia não terá passado despercebida a Fiama, membro do júri que deu a Arquitectura do Silêncio o Prémio da APE e do IPLB, de 1997) um fragmento. Aí se escreve: "a mão delimita o espaço / a inclinação da voz". É, evidentemente, uma arte poética. Uma teoria que podíamos tornar extensível a quanto Ruy Ventura vem escrevendo. A mão, extensão do pensamento emocionado, delimita o espaço (o espaço da casa? do poema-casa?) e, elipticamente, delimita a modulação (o poeta escreve "inclinação") da enunciação. Mas, note-se, a ambiguidade fecunda o solo da escrita: a inclinação é não só da voz que pode dizer o poema, lendo-o, mas a voz da escrita que exigiu a inclinação (a posição inclinada) do poeta sobre a mesa de trabalho. A mão, a mão escrevente, torna inclinada a voz (a vocação) da poesia, no texto fixa.

Ruy Ventura, desde 1997, publicou diversos volumes de poesia: Arquitectura do Silêncio (2000; Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores), Sete capítulos do mundo (2003), Assim se deixa uma casa (2003), Um pouco mais sobre a cidade (2004), O lugar, a imagem (2006), Chave de Ignição (2009), Instrumentos de Sopro (2010) e Contramina (2013). Autor prolífico em poesia, mas também na tradução e na investigação, como tive oportunidade de escrever sobre um livro de 2013, Contramina, o texto é o lugar, a casa, o sítio de uma escrita em constante pensamento, movência e procura. Lugar onde é possível e desejável "assumir que a poesia pode ser o lugar onde há uma espécie de epifania, de 'visão interior', a mesma de que falam os seus mestres — mestres da linguagem — Herberto Helder, Cesariny, Fiama ou Carlos de Oliveira".

Referia-me, na circunstância, a aspectos relacionáveis com aquilo que, para além daquele "espírito secreto" que vem de Cesário é, nos autores atrás citados, a dimensão alquímica (em Herberto), associativa ou surrealizante (em Cesariny), esotérica (em Fiama) ou de pesquisa verbal (em Oliveira) que fazem desta obra singular um dos lugares também mais estranhos da nossa poesia dos últimos quinze anos. Refiro-me também ao fundo religioso que a percorre, indissociável do

pensamento que a molda e das imagens que nela se projectam. Ruy Ventura leu os místicos. Eckart, San Juan de la Cruz. Talvez Soror Violante do Céu. A uma certa aridez que pressentimos na paisagem da Arrábida, erma e vital, corresponde a forte consciência, no plano da criação das imagens e no plano da coincidência entre vida e escrita, a certeza de que "poetry is matter of fact" (W. Stevens). Esse facto de linguagem não está, em todo caso, destituído de uma sugestão espiritual. Por isso, no poeta de Instrumentos de Sopro não é possível escapar a outras vozes silenciosas: a de Eliot e a de Manuel Gusmão.

Se me reporto a esses dois mestres é porque de um — de Eliot — bebe Ruy Ventura a procura daquela conciliação entre emoção e textualidade que sugeri. Sendo que de outro — de Manuel Gusmão — Ventura recolhe a mesma noção de "mão imaginante" tangencial à ideia de escrita da poesia como gesto de escritura. Acresce, por fim, um qualquer eco (místico?) em que escrever é aceitar um chamamento religioso. Ruy Belo, particularmente o de Aquele Grande Rio Eufrates, é fulcral neste enquadramento.

O que teríamos, por hipótese, seria, então, o seguinte: uma poesia que nasce de um impulso mental, a que se dá prolongamento gráfico, misturado com certa dicção elíptica e/ou conotativa, mesmo quando no texto se pretendem explicar os processos da escrita e sua construção. Por isso, à "mão imaginante" gusmaniana ou à alquimia herbertiana, Ventura toma de empréstimo um sábio deambulismo da escrita que nos reenvia ainda a Ruy Belo e Eliot, ambos tão próximos dessa poesia do pensamento em viagem. Soma-se, a tudo isto, a importância da visão refractada da realidade, ofuscada pelo "sono"/"sonho" do poeta que deambula pelos espaços e tempos de uma vida escrita e de uma escrita-vida.

Vale a pena, meramente a título ilustrativo, ver um magnífico texto, precisamente intitulado "Escritura", de Instrumentos de Sopro:

 

"escrevo nesta árvore. sobre a ponte. /vou embalando aquela melodia. abro a porta. /sigo durante a noite o sorriso, a pedra / que nos devolve essa chuva. // que ângulo contemplarei? a lira recuperando o minério? / o crânio resguardando o incenso? o ouro cobrindo estes passos? / palavras sucedem a palavras mais antigas. vestígios / de tecido sobre a madeira, sob o corpo há tanto tempo reclinado".

 

Não quero, neste prefácio que se quer de apresentação de um poeta português que chega ao Brasil, maçar o leitor com uma introdução que mais não é do que contributo possível para a apreensão das linhas de força mais gerais desta poética.

Em todo o caso, chamaria a atenção para lexemas presentes neste poema, os quais atravessam tant bien que mal outros livros de Ruy Ventura. Esse elenco vocabular poderá ajudar o leitor a ver — a par do trabalho versificatório (ora elíptico, ora com certa (in)contida torrencialidade) — que tem em mãos uma obra rara.

Assim, "árvore", "melodia" (reenviando para o sopro — o sopro criador, entenda-se, o ruah ou Espírito Santo da tradição judaico-cristã), "pedra" (a de Drummond, o poema-pedra a polir/ casa a habitar?), "minério" (a atenção de Ruy Ventura aos artefactos da cultura agrária, similares aos artefactos de que precisa esse artefacto da cultura erudita, o poema).

O texto torna-se, no fundo, corpo a decifrar (lembro-me do fragmento 17 de Sete Capítulos do Mundo (2003), editado pela Black Sun). Texto-mistério, ponte através da qual se estabelece a religatio com uma radicalidade que não pode deixar de instaurar na ordem do corpo (corpoema, se quisermos) os limites da sua própria possibilidade.

O que o leitor terá agora em mãos é, decerto, um dosmais consistentes poetas dessa geração que, de entre tanta vozearia, não terá mais que três ou quatro autores cuja voz valha a pena guardar. Ruy Ventura é, quanto a mim, pela coerência do seu percurso, pela convicção com que sabe do "fogo das imagens" como condição do discurso poético, uma dessas vozes raras.

Essa raridade vem do trabalho sobre a palavra e as imagens. E vale a pena lembrar o que um crítico como Fernando Guimarães observou a propósito de um livro como O lugar, a imagem (2006): "As imagens surgem dentro de um campo expressivo que se diria ser referencial: a montanha, a terra, o sangue, a água, o forno, o castanheiro, etc.".

Mas esse surgimento obedecia a uma espécie de extensão imaginística que partia dessas imagens referenciais.

Creio que poderíamos falar numa linguagem imaginante, e não só, já, da gusmaniana mão. Visão, talvez. Visão imaginante e por meio de cujo olhar os referentes como que se revelam na sua essencialidade, indo para além do que, como referentes, o olhar fotográfico amplia ou resgata.

Escrevia Fernando Guimarães no Jornal de Letras: "Um caso em que a referencialidade parece ter sido assumida plenamente é aquele em que o poeta se refere à fotografia. 'Fotografo tudo', diz-nos num poema intitulado 'Registo'. Mas, ao falar de um corpo, logo tudo se desfoca ou, melhor, encontra ou acaba por surpreender outros ângulos de visão. O corpo torna-se "um algarismo na pedra / — sinais resguardando a casa". Surge um lugar habitável, como se as imagens procurassem (e assim termina a poesia) o "interior / do mundo".

Evoco, em jeito final, um dos poemas mais fortes da sua obra, que agora vos chega — ao Brasil:

 

"a imagem caminha — / sem fechar os olhos. / atravessa o rio / sem ver na alma / mais do que a madeira / carcomida. / sem tempo, a mão dissolveu / o mundo que (a) continha. / quis guardar para si / a nudez da árvore / a pureza da tinta / nesse corpo / sereno".

 

Esta é uma poesia substancial, perscrutadora do que está para além do que se vê. Palavras que procuram a rua da outra rua... a palavra que diz a outra palavra, a radical. Poesia onde as palavras não ameaçam fazer ruir o nosso mundo — pretendem, isso sim, reconstruí-lo com imagens novas. Imagens, pensamento, linguagem. Dizer esta poesia num tempo em que impera o relativismo poético não é defender romantismos seja de que espécie for. É só colocar um acento agudo na palavra. Num tempo grave, convém que assim seja.

 

 

 

RUA DA OUTRA RUA

 

RUY VENTURA

 

 

Quanto resta da coluna vertebral, da estrada e do alicerce, de uma casa entre duas oliveiras? Talvez responda quando o vento cessar, quando quebrar o vidro que me separa do maremoto. Terei na fortaleza uma voz e a distância do veneno. Nada mais será necessário.

 

Se um espectro nos governa, deixando à solta todos os instintos, quem poderei esperar nestes dias de exercício sem espírito? Entrego-me à oferta, ainda que nada venha a receber. Não aceito a cortina escondendo o corpo na hora do banho. Voltarei ao dia da descoberta, à rua da outra rua. É certo, a calçada nunca existiu além do vento e da tempestade. Guardo, todavia, a memória de um relevo sobre a porta — e os meus passos caminhando, a medo, sobre as manchas de um lençol desconhecido.

 

As figuras sobrepõem-se e apagam os vestígios do incêndio. Esquecendo, talvez consiga escrever. Excesso ou amnésia, o texto retrocede. É difícil levantar os pés no meio do monturo. Temos no entanto de caminhar. Temos de sair, permanecendo como sementes rejeitadas pelo adubo e pelo agricultor, prontas a germinar perante a geada e o sol de inverno.

 

A impureza garante a salvação, a incerteza confronta-nos com a imensidão e com a pequenez das partículas que a compõem. Nada vale e tudo vivifica. Do verme à propulsão — quanto fica que nos acalente? Um rosto sobre o tecido que, de olhos fechados, nos trespassa e escarifica, mesmo quando rejeitamos o corte e a tinta sobre a pele e tentamos salvar a superfície com gotas de um detergente que não limpa, mas acelera a corrosão.

 

 

 

 

Referências

 

1Sim, de Pessoa (1888-1935) a Luís Miguel Nava (1957-1995), tenhamos em conta as obras de poetas marcantes no mapeamento do discurso português novecentista. Mesmo contando só com os que publicaram após a morte de Pessoa, veja-se como entre 1935 e 1974, sensivelmente, a poesia portuguesa vive um dos mais extraordinários momentos de invenção de linguagem, talvez só comparável ao momento renascentista. Para os devidos efeitos, constate-se a profusão de autores cujo contributo para uma revolução da linguagem é, hoje, consensual: Vitorino Nemésio (1901-1978), Jorge de Sena (1919-1978), Sophia de Mello Breyner (1919-2004), Eugénio de Andrade (1923-2005), Mário Cesariny (1923-2006), António Ramos Rosa (1924-2013), Alexandre O'Neill (1924-1986), Herberto Helder (1930-), Ruy Belo (1933-1978), Fernando Assis Pacheco (1937-1995), Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2006), Luíza Neto Jorge (1939-1989), Gastão Cruz (1941-), António Franco Alexandre (1944-), Nuno Júdice (1949-), Helder Moura Pereira (1949-). Será interessante ver como certo ambiente de opressão terá contribuído para que a poesia do século XX, a da segunda metade, tenha procurado a originalidade como resposta a uma época fascista. Hoje, com excepções, de que Ruy Ventura será exemplo acabado, há um padrão por demais prosaico e narrativo que, desde os anos setenta, tem conduzido o discurso novíssimo, a nosso ver, a um empobrecimento retórico.

 
 
 
dezembro, 2014
 

 

 

 
António Carlos Cortez. Poeta, ensaísta e professor, colabora em várias publicações como o Jornal de Letras e as revistas Relâmpago e Colóquio-Letras. Tem participado do Plano Nacional de Leitura português e de vários projetos universitários no seu país e no Brasil. Prepara uma tese de doutoramento sobre a poesia de Gastão Cruz.