Comédia de uma Sociedade P R I V A D A

 

[aos olhos de uma filosofia não acadêmica

[in memoriam a Diógenes (o pai dos cínicos)

 

Semelhante aos cactos é a mente

de quem se leva muito a sério:

sólida e espinhosa — Espinoza?

 

A Filosofia me seduz,

tal como o riso,

tal como o medo ingênuo

de coisas visivelmente superadas pela espécie:

altura, escuro,  profundidade e fogo.

 

Quando alguém declara "Fui além!",

desço os olhos de imediato

para que o meu sarcasmo não soe agressivo demais

e  eu não converta o assunto

em um  debate sobre o além de Nietzsche

ser apenas uma alucinação de sua sífilis

e não um desdobramento astral de

mais de uma década.

 

Eu não levo nada a sério,

aprendi com o pouco de vida

que no final terminamos

trajando fraldas e em busca

de um novo cordão umbilical.

 

O tempo nos lê todos os dias "A lei enérgica do eterno retorno"

o que prova que nem a didática foge a regra.

 

Repetições,

ponteiro do relógio,

onomatopeias do tempo:

guerra, paz, guerra, paz...

 

Eu nunca compus um poema L I V R E,

não consigo descobrir um sentido

franco para a L I B E R D A D E

e nem tenho seriedade suficiente

para significados permanentes.

 

Eu nasci para a comédia, para a colmeia,

para um canto de legiões & gralhas

que riem da própria falta de sentido e graça

ao assistirem o G a t o  comer o R a t o  que roeu a roupa do R e i.

 

Quando almejávamos

era ver o Gato se aliar ao Rato

e roer o Rei por inteiro.

 

 

 

 

 

 

C i n z a s   à   S e d e x  10

 

 

Não cantarei às mulheres livres do mercado free

Não enviarei flores para as Lolitas

Não invejarei o corpo das Mulheres Frutas ou das seguidoras de Twiggy

Hoje o meu canto é como do Urutau

Hoje mandarei cinzas envelopadas para os filhos da Ciudad Juárez 

[que não salvaram suas mães,

suas mulheres e suas filhas

de suas próprias covardias patriarcais.

 

Hoje invejarei Marisela Escobedo e seu grito de mãe rebelada

[que nem o túmulo silenciou

e nem a pólvora cala.

Ecos de  Chihuahua

clamam por Justiça — enquanto nós fazemos as unhas,

outras fazem a cova.

 

 

 

 

 

 

 

ENTRE QUEDAS E NEWTONS, MORDO A MAÇÃ

 

 

Em seus ombros eu trilhava o mundo,

estava nos ombros de um gigante — como um dia esteve Isaac Newton

Já cedo, antes de maçãs caírem,

eu já sentia o poder da gravidade

(meu pai sempre caía e eu o seguia).

 

Primeiro porre aos doze

 

Será que a primeira maçã sentiu vergonha?

[aquela que apontou o caminho e não

exatamente aquela que nos cuspiu do paraíso.

 

Penso nisso,

penso na maçã,

em Newton,

em meu pai

e no simbolismo.

 

Penso que se eu fosse a maçã teria

me envergonhado de ser assistida

em uma queda individual,

pois se naquele momento histórico

todas as maçãs tivessem caído,

Newton pensaria em terremoto e não em gravidade. 

 

Toda vez que quedo penso nele (no tal do Newton) e

olho para os lados para ver se servi de protótipo para algo maior.

 

 

 

 

ESPELHOS DESCONEXOS

 

 

 

E  há o vazio

semelhante há uma antítese

de ocupar um não lugar — por isso as crises.

É quando lidamos com

questões desconexas

ou quando a tomada não

é compatível com o plug.

 

Morei em três cidades diferentes

e todas existiam aqui nessa Capital das Figuras Geométricas — a Legolândia Brasilis.


Conheci os velhos e os novos,

fiz laços, desfiz,

amei, desamei.

 

Dizer que sou a mesma de sempre

é não perceber a decomposição do tempo — o envelhecimento do concreto.

 

Caminho lentamente,

as vezes nem caminho.

 

Amo com a seriedade e a calma de uma anciã — a música fica cada dia menos barulhenta.

Aprendi a gostar de jazz & samba.

Experimentei todas as drogas

e nenhuma me fez viajar

mais do que as letras.

 

Tem dias que desejo a morte,

mas tem outros que é só desespero — um medo dessa insignificância diária:

acordar,

comer & dormir.

É, eu não trabalho mais,

meu último emprego me tornou

uma assassina em potencial — um dia escrevo sobre isso.


Nesse momento procuro um destino,

uma dessas terceiras opções que ficam

entre duas ruas, mas ninguém ousa explorar.

Eu sempre explorei o não caminho,

por isso não me apresento,

por isso extraí um nome de dois nomes.

 

Meu caminho é longo e lento.

Escuto um chamado,

paro,
mas são apenas aves de mau agouro.

 

 

II

 

E há o vazio

e há a antítese

e há o lugar e o não lugar

e há questões desconexas

e há três cidades em uma

e há dois homens que não se enxergam

e cada um leva o próprio cão para passear.

 

Os cães se encaram contrariando o mistério dos Multiversos.

 

Registro o acontecido

e publico no jornal da manhã,

para que entre um café & um pão

alguém saiba compreender

o milagre da multiplicação.

 

 

 

 

 

 

Filhos de Putins

 

Pedras nos bolsos

para pesar o corpo

e mantê-lo submerso

às leis de Putins, Felicianos e cartilhas sagradas.

 

Pedras nos bolsos 

para sentir o peso

de se carregar o fardo 

da natureza bruta.                                 

 

Pedras nos bolsos

para vingar a amiga

"curada" a força

pela escritura de Jeová:

"Joga pedra na GeniTália!" 

 

Pedras nos bolsos

para lançar

na corda de saída

ou na cabeça fechada

desses Filhos de Putins. 

 

 

 
 
 

Sobre o Direito de Amar pelo Apêndice

 

 

Ainda que o coração busque um motivo que o faça pulsar

resido no abismo e espero a primeira ave de rapina que o devore.

 

Do outro lado do oceano as multidões se unem contra tudo que já agrediu o lado de cá

(karma & dharma? Não sei...)

 

Não desejar o mal é um exercício de mutilação do orgulho.

Possuo um arsenal de pedras que nunca atirei.

Possuo um batalhão de sapos que me seguiriam até ao Hades.

 

Já não sei por onde começar, tudo tem surgido do meio

[do meio da vida,

do meio do dia,

do meio da criação.     

 

Descobri-me no meio de uma noite meio fria e meio longa e agora me sinto mais do que dividida, pressinto intradivisões uniVersais.

 

A guerra de hoje é uma luta entre lados interiores:

de um lado haverá sempre alguém sem pulsação

& do outro lado haverá sempre veias e sangue.

 

Não ouço hinos e nem coloco nas urnas minhas crenças — sou fundamentalmente cética, mas o outro lado é guiado pelos deuses e pelo barulho do didgeridoo.

 

Um músculo ofertado às rapinas é menos do que a unha mutilada — ofereço o símbolo do romantismo Walt Disney para aqueles que acreditam que o amor é um signo publicitário.

 

 E que assim seja por aqui.

 

 

 

 

 

 

LAGARTIXA

 

 

Nasceu recortada — um membro para cada ponto cardeal.

 

Na quinta estação ela se juntava.

 

Bem longe dos olhos da humanidade e daqueles seres colossais do laboratório.

 

Sina de ceder o rabo em qualquer encruzilhada.

 

Perdida, sozinha, embrulhada no estômago arruinado da civilização.

Sobrevivente do deserto, da neve, da fome e da matilha de michês.

 

Na face uma maquiagem bailava desfeita dos olhos à boca.

As pernas desgrenhadas eram carregadas pelo gene da sobrevivência.

 

Se tinha Deus era o Diabo

Se tinha fé era na própria desgraça

 

CINDY CHUPETA, VALKIRIA VALADÃO,

VERUSKA BOMBOM, VICTORIA HOUSE.

 

Lagartixas trucidadas (noticiou o jornal).

 

 

 

 

 

 

CONSERVA DOR & ISMOS

 

 

De todo lado,

da esquerda à direita,

de cima para baixo:

Mein Kampf enlatado.

 

Na artimanha do orador,

na tese do professor de Ética,

na biogenética,

nos tatames,

na sétima arte,

no cabelo colorido e chapado da mocinha,

na música "água com açúcar" da new band,

na TV, na publicidade de energéticos, nas cotas 10%,

nos três poderes, nos sem poderes & no asco do padeiro.

 

Hello, baby!

Herói de Cu é Vaselina Führer!

 

 

 

 

 

 

Eu tenho um S O N H O

 

 

Linguagens, vozes, traduções de existências.

 

PRANA, PRANA, PRANA.

Soprar para dentro e

logo devolver uma

nova composição.

Sorver o aroma da extinção — respirar.

 

JIVA, JIVA, JIVA

 

Percorrer as ruas do Mundo — buscar sinais, respostas, dicas para o escape.

 

PRANA JIVA, PRANA JIVA, PRANA JIVA

 

Cair, perder o fôlego,

transportar a idade nos genes

e  assistir novas vozes gritarem: REVOLUÇÃO!

 

I HAVE A DREAM

 

Beber com os antigos,

peregrinar com  fetos em gestação

e contemplar as novas expressões.

 

EU TENHO UM SONHO

 

A História rejeita as multidões.

Fomos enjaulados em uma consciência de 3ª. Classe.

 

"Atenção passageiros da 3ª. Classe, essa vida não possuí viagens de 3ª. Classe!"

 

Busco fendas,

passagens secretas,

aceleradores de partículas.

 

Uma voz questiona:

Cadê o seu sonho?

 

RESPIRAR, RESPIRAR, RESPIRAR.

 

 

 

 

 

 

P o é s i e da Mula

 

 

Sugue a carreira

 

portada no estômago!

 

(hoje gastril, ácido, beirando ao câncer — quem dera fosse o trópico)

 

 

Mala orgânica.

 

Mula bímana,

 

Com passe para o umbral do "Primeiro Mundo".

 

 

Só hoje sou assim tão "gente"

 

Tão longe, "nas bagaça do estrangeiro", 

 

Pagando de diplomatique

 

Heroína, Cocaína: nomes de poésie.

 

 

 

 

 

 

PERSONA NON GRATA

 

 

Ser prato de brilhante
para servir banhas
ao senhor do terno
de sete dígitos.

Ser o banco em couro
de dinossauro ressuscitado
pela engenharia genética
a labor do REI DO VAREJO.

Ser a pizza de Guarani Kaiowá
degustada pelos filhos do agronegócio.

Ser Diorim, Chanelim, Armanim, 

Dolce & Amargo
e empestear o mundo
com a alquimia
prostituída.

Ser o tapete
tecido
pelas mãos miúdas
de crianças 0,10 centavos ao mês.

Não, grata!
 

 

 

 

 

 

E eu saboreio uma Irish Car Bomb

 

 

Eu bebia uma Irish Car Bomb

enquanto crianças eram pulverizadas por

bombas israelenses.

O Mal distante é legítima ficção

até o dia que nos extraem

de nós mesmos para sermos outros.

Meu vizinho é um corpo de carne e ossos

e se ele se incendeia eu penso em performance.

 

Adel Kedhri (Tunísia): performer

Jampa Yeshi (Índia): performer

Lâm Văn Tức (Vietnã do Sul): performer

Prema Devi (Índia): performer

 

Contam que após o domínio do fogo

nossa espécie transubstanciou o cérebro

para algo hábil a criar bombas e rodas.

 

Adel Kedhri incendiou-se

Jampa Yeshi incendiou-se

Lâm Văn Tức incendiou-se

Prema Devi  incendiou-se

 

São Martinho articulava sobre o Homem ser fogo,

Buda propunha que o coração é a lareira

e Heráclito dizia:  do fogo tudo flui.

                                   

Adel Kedhri é uma mensagem

Jampa Yeshi é uma mensagem

Lâm Văn Tức é uma mensagem

Prema Devi  é uma mensagem

 

Sonho com uma tempestade de fogo,

sonho com olhos volvendo em cinzas,

sonho com o cheiro amedrontador do Deus dos Mortos

colhendo infanticídios no campo de girassóis da Ucrânia.

 

Adel Kedhri é um noticiário

Jampa Yeshi é um noticiário

Lâm Văn Tức é um noticiário

Prema Devi  é um noticiário

 

 

E eu saboreio uma Irish Car Bomb

 

 

[imagens ©flor garduño]

 

 
 

Lisa Alves, nascida em Araxá, Minas Gerais, reside em Brasília desde 2003. É colunista das Revista Ellenismos e responsável pela coluna Videoteca da Revista Mallarmargens. Possui publicações em vários espaços literários, dos quais destaca as revistas Diversos Afins, Abismo Humano (Portugal), Sociedade dos Poetas Vivos e o jornal literário Equador da Coisas. Têm poemas publicados em quatro coletâneas de poesia: Trilhas (Rio de Janeiro: CBJE, 2007), Poema Capital (Buenos Aires: Eloisa Cartonera, 2011), Cumplicidade das Letras (Perse, 2012) e Vinagre — uma antologia de poetas neobarracos (organizada pelo poeta Fabiano Calixto, 2013). Escreve em A Fábula de um Mundo Real. Está no Facebook e no Twitter.