No Jardim Botânico

 

 

Uma caminhada no Jardim Botânico equivale a uma sessão de yôga, ou de yoga como se dizia no tempo em que eu não sabia exatamente que sexo poderia gerar filhos — sabia, mas não acreditava.

Uma caminhada no Jardim Botânico num dia não muito ensolarado, tampouco fechado, pode deixar — na memória que teremos no futuro, quando nossos filhos forem eles mesmos senhores e senhoras com vidas próprias e, se Deus quiser, independentes e bem encaminhados — algum gostinho de felicidade na gente tão carregado, que poderemos mesmo imaginar que fomos, dentro e fora do Jardim Botânico, felizes, completamente felizes.

Pisar descalço o chão do Jardim Botânico, como vi um jovem fazendo no último domingo em que estive por lá, deve ser o grito mais veemente que conseguimos dar contra a tendência do mundo em nos distanciar da terra, do fogo, da água e do ar. Aquele rapaz, garanto sem conhecê-lo, sabe ser feliz quando quer: basta tirar os sapatos e pisar a terra úmida do parque.

Sentar num banco do Jardim Botânico numa manhã de maio, em pleno domingo das mães, ao lado da irmã pode apaziguar as dores que sozinhos, o irmão e a irmã, não suportariam mais ter. As árvores dali, estrangeiras e nacionais, entendem dessa coisa de despoluir até o espírito mais sombrio.

Depois de uma caminhada que levou o desempregado à estufa das plantas carnívoras e a debutante, um pouco cansada, à beira do lago das vitórias-régias, pequena e elegante peça de metal bem aducido e corretamente coado, a bica dará água fresca a quem já tem, a sua volta, toda espécie de sombra. Não vai nesse gesto do bebedouro nenhuma intenção de iludir o desempregado ou a jovem pensando-se vítima do maior cansaço do mundo, mas, fresca e fluida, a água ensinará sem querer que a generosidade mata a sede quando não escorre pelas mãos.

Pais e filhos, concebidos ambos na brasa do desejo ou na assepsia dos laboratórios, jogam folhinhas no riacho e vão correndo ao lado acompanhando aquela corrida de Fórmula 1 vagarosa e vegetal. Há uma bateria, depois uma segunda, e haverá outras até que a criança saia dali campeã. No Jardim Botânico, a simplicidade é sempre verde e imatura.

Vez ou outra o chão ficará enlameado. Vez ou outra alguma árvore o vento derrubará. Vez ou outra os esquilos cairão viciados em pipocas. Vez ou outra um estudante de artes plásticas errará a mão e não tracejará nada que se assemelhe ao que está por todo o lado. Por fim, poucas fotografias tiradas ali, aos milhares ou milhões, em alguma contagem do tempo não muito dilatada, terão a qualidade que o parque merece.

Vez ou outra um cronista menor compreenderá o mundo dinâmico que, entre ramagens, águas, pessoas e aves, o silêncio do parque guarda.

 

 

 

 

Caricaturas

 

 

Ponho os pés na calçada de Ipanema e, lá do Leblon, vem o homem que já foi bonito. Na realidade, ele não perdeu a beleza, mas, depois de longo debate com seus botões e travesseiros, concluiu que a beleza foi coisa de antigamente. Da juventude, de quando pegava geral. É um senhor bonito e, se ainda se entrega à conquista, continua pegando geral, mas não mais as garotinhas. Isso é que o incomoda e que, à própria vista, o torna feio.

O alemão passa com uma de nossas negras. Nem é a mais bonita, mas, para ele, basta que seja negra. Conjecturo: o mundo ficará melhor à medida que arianos se acasalarem e procriarem com negros. Um passo a mais, deparo-me com a francesinha de mão dada com um de nossos negros. Rogo para que sejam histórias de amor — ou uma aventura apenas — e não turismo sexual.

Jovens hoje são espertos e preparam-se desde cedo para a velhice. Ao colocar nos ouvidos um som bem alto e travar conversa, aos berros, com o colega do lado, aprendem a conviver com a surdez. Dizem que, precavidos, tomam Viagra.

A mulher fala ao celular. Ao terminar a conversa — em atitude correta, pois não há motivo para manter as mãos ocupadas —, enfia a engenhoca na bolsa. Entretanto, feito isso, ela se espanta, se contorce, tenta se esconder. Sem o celular agarrado à mão, passou a se sentir nua, embora, claro, não esteja. Outra pede que o parceiro ligue para o celular dela, é o único jeito de encontrá-lo na sua maldita bolsa. Rápido, ela diz, estou à beira de um ataque. Não estamos mais falando de um simples aparelho de comunicação, compreende?

O casal não se suporta, quarenta anos de um casamento terrível. Mas toda manhã caminha na praia. Conversam muito.

Um ex-prefeito passa de mãos dadas com a esposa. Estão bem velhinhos. Ele, agora, é escritor e, pelo jeito, enquanto caminha, maquina um conto.

Ainda existem as bichas exaltadas, vendendo alegria. E também a menina que passeia com o amigo gay, o único cara que realmente a entende. Porém amizades desse tipo vêm sumindo do mapa da afetividade. Os gays andam em crise com as mulheres, com o jeito de ser delas. É uma hipótese caricatural.

Dez horas da manhã, e é possível encontrar, nos quiosques, pessoas que são restos da noite anterior. Uma delas, o cara com calça arregaçada e sem camisa, com olhos vermelhos e consciência limpa... Por enquanto.

Ando ao lado de um sujeito que nada desse mundo tira-lhe a gravata. Com bermuda, camiseta e tênis, ele caminha com passo firme na companhia de um amigo. Conta toda sua semana, os negócios que fechou, os que vai fechar. A gravata está pendurada no córtex do seu cérebro. Talvez ele nem saiba que, à esquerda, quando se vai para o Leblon, e, à direita, quando se vem, vaivém o mar.

Passa a mãe, desesperada porque a babá pediu-lhe que segurasse a criança por dois minutinhos, o tempo de amarrar o tênis. É a primeira vez que mãe e filho se tocam desde a cesariana asséptica feita num hospital com cara de hotel. (Não, não é verdade que o pimpolho beire os 35 anos. Maldade!)

Tem uma turma que joga futevôlei bem demais. Há partidas de homens contra homens, de mulheres contra mulheres e de times mistos. Nestes, é cada mulher forte, benza deus, Deus, DEus, DEUs e DEUS.

A tatuagem deixa ver um pedacinho da pele original da garota que, com certeza, era linda na sua versão sem tinta. Noutra jovem, a tatuagem, discreta, faz assim na minha cara: slapt, slapt, vê se aprende. Aprendi: quando bem-feitas, as tatoos têm lá seu borogodó.

Certas pessoas foram engolidas por seus óculos, inclusive a guria de nove anos, se tanto.

Um economista famoso, que as más línguas dizem ter ficado rico com a herança do sogro, passeia muito mal vestido. Quer dizer, não mal vestido, mas as meias sintéticas quase alcançam os seus joelhos. Provavelmente viveu nos Estados Unidos da América.

Quem sou eu? Um mineirinho na praia, prato cheio para todo tipo de ironia: rabiscada, gargalhada, escrita, cochichada ou só pensada. Além de tudo, metido a besta, crente que abafa com essa caricatura de crônica. Se eu ainda fosse o Paulo Caruso. Ah!, se fosse ele, economizaria esse montão de palavras, trocando-as por dois traços assim e assado. E estava dito.

 

 

 

©sara v.  

 

 

Decisões de um fim de domingo

 

 

Amanhã, logo cedo, vou escrever uma carta nos moldes antigos — colocarei no envelope e, depois de selada, levarei aos correios — para a Perpétua, antiga auxiliar de minha mãe no Lactário. Direi a ela que sempre gostei do seu jeito calmo e, do mesmo modo, do seu nome. Se eu me chamasse Perpétuo seria um fiasco paternal sem rima alguma, mas nela o nome tomou feições de sublime, artístico.

Fugindo de um dos meus princípios, o de não engraxar sapatos para não tirar deles sua história, é provável que, depois dos Correios, eu entre na engraxataria da Rua da Assembleia e encomende o básico: graxa, sem tinta. O sapato é velho, não nego, mas nada de apuro exagerado. Lá — sei porque já fui outras vezes — o engraxate nos convida a subir numa banqueta alta, da qual se vê o mundo de cima. Confesso que fico um pouco constrangido, tanto por me ver em destaque, mas principalmente por ter alguém a meu serviço em posição tão subalterna. Mais uma razão para odiar engraxar sapatos. Mas, é fim de domingo, bom momento para quebrar ao meio certezas arraigadas.

Com os sapatos limpos — ou seja: sem as digitais de minha história recente (os sapatos duram pouco e guardam, quando muito, um cisco de nada de nossas vidas) —, sentarei numa praça. Uma mulher bonita há de passar por ali, então, planejo de antemão, olharei para ela com todo o respeito possível. Nas suas formas caberão tão bem as minhas! Mas evitarei esse caminho do desejo e trilharei outros. Se ela tiver pedigree de moça bem-sucedida, cujos estudos em boas escolas deram-lhe o emprego cobiçado por um a cada dez jovens no mundo, pedirei a Deus na sua infinita bondade que a poupe de despautérios, que não a faça viver momentos de decisões amargas, muitas vezes cruéis. Que não se coloque em sua vida, por exemplo, financiamento de guerras, maracutaias empresariais, canalhices dessa ordem.

Posso evitar a praça. Sair do engraxate, tomar o rumo do antigo Cais Pharoux, ali embarcar numa balsa para Niterói e, lá, encostar-me a um balcão de um bar qualquer. Provocarei o atendente, dizendo-lhe que consigo lamber o cotovelo enquanto pulo num pé só. Decerto ele estará cansado de fregueses tão sem-noção e, automaticamente, se debruçará sobre o balcão a fim de ver o espetáculo. Eu, que desconheço quem tenha essa dupla habilidade, recorrerei a um escancarado blefe para forçar uma simulação. Quando terminar, raciocinarei que cometi um ato vil, desrespeitoso, mas será tarde, restando apenas o consolo de culpar o domingo por decisão tão disparatada. Como forma de compensar o rapaz, disposto a pagar o dobro do preço registrado no cardápio, pedirei um caldo de cana e um joelho. O joelho fará com que me lembre do cotovelo e acabarei rindo, o que poderá deixar o balconista severamente chateado.

Se sair ileso de Niterói, terá chegado o momento de trabalhar. Ou já até terá passado. Neste caso, farei uso do banco de horas, essa invenção das empresas para cobrar nossos atrasos e não pagar nosso excesso de horas trabalhadas. No escritório, não sei se notarão o lustre de meus sapatos. É possível que um ou outro brinque com o fato, insinue que estou de olho em alguma moça nova, coisa ridícula e corriqueira que acomete homens de meia-idade. Darei de ombros, mais interessado em contar da Perpétua à turma. "Foi uma paixão?", perguntarão curiosos. Quando lhes disser que não, Perpétua é apenas um nome bonito para identificar uma moça amável que trabalhou com minha mãe há uns quarenta anos, ficarão decepcionados. Não me restará alternativa a não ser a de confessar-lhes que, não faz muito tempo, assisti a um milagre. "Verdade?".

Sim, vi uma senhora na casa dos oitenta anos cair de uma altura de dois metros, dar uma cambalhota no ar e pousar no chão sem sofrer nada além de uns pequenos arranhões. Não é um milagre? Na segunda-feira, contarei isso aos que não creem nas leis da física.

 

 

 

 

 

 

Alexandre Brandão. Mineiro de Passos, vive no Rio de Janeiro. É autor dos livros Contos de homem (Aldebarã, 1995), Estão todos aqui (Bom-Texto, 2005), A câmera e a pena (Cais Pharoux, 2009) e No osso: crônicas selecionadas (Cais Pharoux, 2012). Cronista da Folha Carioca (Rio) e do CNP Notícias (Passos), participa, ainda, do grupo Estilingues, formado por amigos que, para comemorar 25 anos de convívio literário, passaram a editar livros de contos de circulação não comercial (Amores vagos, em 2010, e Mapas de viagem, em 2011).