"Não pecarás contra a castidade".

 

 

Espelhos não invertem. Foi aquele italiano quem disse. O nome do italiano não chegava à memória dela. A desmemória havia feito a faxina ao longo dos anos, desde que ela se aposentara do trabalho como professora. O mundo do magistério lhe parecera o fabuloso ringue das ofensas. Lembrava até hoje — a desmemória não dizimara esse entulho — daquela aluninha petulante. "Mal-amada", gritava a malcriada, sempre que a nota a desapontava. Espelhos não invertem. Então, deve ser mesmo beleza. Olhou bem aquele rosto: era verdade, era beleza, insistente no meio das rugas. A única novidade na paisagem da cara era o batom, e o trabalho do batom demorava. Demorava. Então, se lembrou novamente do morto.

 

De novo no quarto, fez as mãos apertaram mais uma vez aquelas carnes murchas, aquele monte de cabelo crespo saindo de entre as pernas e seguindo até acima do umbigo. Até achou bonito a marca do batom que deixou nas virilhas dele, vermelho no branco, saliva.


Era seu único irmão, o morto. Eram quase iguais: ele também era só, nunca se casara, imaginava até que nunca havia visto o corpo de uma mulher, assim, ao vivo, sem panos. Ela nunca vira um corpo de um homem, assim, ao vivo, sem panos. O corpo do irmão, agora, amanhecido morto. A barba branca por fazer.


Ela olhou o telefone e depois a janela. Puxou as persianas. Ela se deitou ali, na cama, ao lado dele. Deixou as mãos demorarem subindo o vestido em direção a um certo céu vertical que parecia estar atrás da cabeceira da cama. O batom na boca, a demora.


Dois mortos ali, as carnes velhas e murchas dos irmãos. Dizem os vizinhos que um certo inferno os chamou.

 

 

 

[imagens ©dominic rouse]

 
 
 
 
 
 
 
 
Wir Caetano. Jornalista e escritor. Mineiro, de João Monlevade, onde vive. Publicou, em 2002, o livro de ficção Morte Porca (SeloZero) e, em 2013, a plaquete Dia Nunca [disponível somente na internet: http://issuu.com/dablietimg/docs/dianunca].