UM TERÇO

 

        Como sempre, às onze ele parou o que estava fazendo.  Não era nada importante: ao procurar a certidão de casamento entre guardados antigos, achou fotos que não via há muito tempo. Foi preparar o almoço.

        Acomodou tudo ao lado do telefone e foi para a cozinha. Conferiu as sobras da geladeira: um pote de arroz, dois bifes duros e meia jarra de suco; no congelador, o feijão.

Teria que fazer arroz, algo verde e mais um bife.

Constatou: não tinha mais carne e só umas três folhas murchas de alface.

No armário achou uma lata de legumes, que poderia compor com a alface; do lanche do filho roubou um hambúrguer.

Lavou o arroz e pôs para secar na janela.

Foi até a sala. Estava na hora do programa de música clássica. Assim que ligou o rádio, o telefone tocou.

 

Alô? Oi, mãe. Tudo certo, mamãe. Não, eu estou bem. Eu vou daqui a pouco. Vou almoçar primeiro, mamãe. Não se preocupe, eu estou bem. É, eu sei que ele tomou todas as providências. Não, não resmunguei nada não. Tá, mamãe, depois eu pago ele. É, a funerária aceita cartão de crédito. Tudo bem, eu passo aí pra te pegar. Não, mamãe, não vou me atrasar. Uma hora, mais ou menos, tá bom? Até logo, mamãe, um beijo pra senhora também.

 

        Perto do telefone a foto do último passeio que fizeram juntos: o mar e o céu azuis ao fundo; descalços, os três faziam caretas, a areia branca muito quente, um casal de velhos atrás e uma bola colorida no ar, quase acima de sua cabeça. Ele ainda se lembra da garota lourinha que brincava com seu filho. O rapaz do quiosque fez a foto.

        Não ouviu de quem era a primeira peça. Apesar de gostar de clássicos, não sabia identificar os compositores. Exceto pelos temas mais conhecidos, para ele era tudo a mesma coisa, e ele gostava disso.

De novo na cozinha, começou a sequência automática de fazer o almoço: feijão descongelando no microondas, panela de pedra no fogão com azeite e alho, a alface no vinagre; abrir a seleta, fritar o arroz, refogar o feijão, assar o hambúrguer...

A música para e ele corre para a sala, atento ao locutor. Um especial de Schumann, muito bem. Sente vontade de fumar e acha um único cigarro dela num maço escondido no fundo da gaveta. Sente um aperto no peito ao lembrar que ela havia parado de fumar pela milésima vez antes da viagem.

Da janela do quinto andar pode ver outras ruas e acha que o bairro está muito quieto, silencioso demais.

        A música recomeça e ele aumenta o volume. Apaga o cigarro na pia e se prepara para terminar o almoço: a segunda água do arroz, amassar o feijão, checar o hambúrguer e esquentar os bifes, montar a salada, pôr a mesa...

A última peça é um solo de piano: "Erinnerung, In memory. Agora são onze e cinquenta e sete". O almoço está pronto. Ele se senta na sua cadeira, esperando, e nota que o céu está nublado. Teme que chova no fim da tarde. Seria péssimo isso. Ainda tem vontade de fumar, mas sabe que não há mais cigarros na casa. Talvez mais tarde, no velório.

Sabe que nada disso adianta.

Por isso guarda dois dos pratos, o arroz e o feijão; acha um miojo e põe água para ferver; liga a tevê para ver se o jornal de meio-dia dá alguma coisa. Apesar de ter bebido antes de pegar a estrada, sempre vai colocar a culpa no menino, que pulou no seu pescoço numa curva acentuada à direita.

 

 

 

 

A GUERRA DA CULTURA

 

 

Aos treze dias do mês de maio, reuniram-se diversos membros desta comunidade no Salão Paroquial (cujo ventilador continua quebrado), para preparar nossa participação na 1ª Conferência Municipal de Cultura. Às 14 horas, o quorum era de oito pessoas (e a temperatura, de 45 graus), com as quais o senhor Antero da Mercearia, vulgo Zé Antero, presidente da Associação Comunitária, decidiu iniciar a assembleia, no que foi prontamente contestado pelo senhor Moacir Lages, vulgo professor Moacir, que alegou:

— Assembleia democrática tem que ter número ímpar de pessoas.

Zé Antero parecia que ia protestar, mas quando prof. Moacir falou "democrá", todos murmuraram:

— Sim, isso mesmo, é por aí.

Portanto, a conversa só começou mesmo lá pelas 2 e 40, porque às 2 e 15 chegaram mais duas pessoas (Dilson e Mandú, os italianos), o que manteve a paridade de presentes. Só quando o pastor Laurindo chegou é que deu certo.

Zé Antero abriu os trabalhos dizendo que:

— A cidadania democrática e cultural contribui para a superação de desigualdades, para o reconhecimento das diferenças reais existentes entre os sujeitos em suas dimensões social e cultural. Os seres sociais são sujeitos concretos, entrelaçados em redes de relações, em projetos coletivos.

Dona Janyr, a simpática Titia, comentou com Maria Luiza (que não estava usando a pulseirinha que lhe dei):

— Não entendi patavinas —, mas algumas pessoas até aplaudiram, inclusive ela.

O prof. Moacir contestou, como sempre, falando de pé (e soltando perdigotos na careca de Mané Poeta):

— Entretanto, avaliações sobre esse mecanismo evidenciaram uma série de distorções, particularmente a falta de equidade na captação e distribuição de recursos públicos. Essa distorção manifesta-se de diversas formas (neste momento Rodriguinho arrastou a cadeira e se levantou, dando a impressão de que discordava, mas parou na porta e acendeu um cigarro. O prof. continuou): há concentração regional dos investimentos, os maiores contribuintes de impostos açambarcam a maioria dos patrocínios e os empreendedores mais profissionalizados e organizados obtêm a maior parte dos recursos.

Ninguém aplaudiu, o Salão estava quente que parecia um forno.

O doutor Petrúcio, mais conhecido como Doc-puxa, porque é o maior puxa-saco do prefeito, pediu a palavra daquele jeito todo empolado e disse:

— O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais!

Mané Poeta ironizou:

— O estado ou a prefeitura, Doc?

Todo mundo riu, mas Doc-puxa cortou com um grito histérico:

— O ESTADO PROTEGERÁ AS MANIFESTAÇÕES DAS CULTURAS POPULARES, INDÍGENAS E AFROBRASILEIRAS, E AS DE OUTROS GRUPOS PARTICIPANTES DO PROCESSO CIVILIZATÓRIO NACIONAL!

Voltando pro seu lugar, Rodriguinho falou, olhando bem nos olhos de Zé Antero:

— A gente devia era construir um Relógio Cósmico-ecológico.

Com ar irônico, Zé Antero perguntou se o senhor Kalil não tinha nada pra falar. Este levantou-se e disse que não era porque seu filho tinha tido essa idéia brilhante, mas ele achava que:

— O universo das atividades culturais é muito grande. Dentro do que se costuma considerar como setor cultural se encontram distintos tipos de atividades culturais, desde expressões de folclore e da cultura popular, até a cultura midiática, passando pelas manifestações da cultura da elite ou das belas-artes e do patrimônio.

Mandú e Dilson falaram quase ao mesmo tempo:

Ma non è vero?

Ninguém ligou, porque eles falam isso toda hora, sobre qualquer assunto.

Maria Luiza (sem sutiã, a danada!), que não é de falar muito, porque se acha muito intelectual, resolveu dar o ar da graça:

        — Um dos grandes desafios da gestão pública da cultura e da avaliação das ações implementadas diz respeito à relatividade de seus objetivos e à multiplicidade de efeitos buscados ou por ela alcançados. As ações públicas têm que ter fundamentos, uma coerência entre o que se diz buscar e o que se faz de concreto para tanto.

        (Ô neguinha metida!) Titia, que já não está entendendo mesmo muita coisa, olhou pra ela com cara de espanto.

        Quando Zé Antero ia pegar o microfone, Catifu botou a cara na porta e gritou:

        — Ôu! Ôu! Alguém viu Jurema por aí?

        Quase todos disseram coisas como:

        — Não! Vai trabalhar! Isso é hora? Nós tamo ocupado etc.

        Jurema é a mula dele. Quando ele bebe muito, ela some, impressionante, mas eles sempre se reencontram.

Mané Poeta, que se acha muito comunista só porque sempre defende Catifu, começou a falar sem pedir a palavra:

— Na questão cultural, vivemos um momento em que a grande mídia, principalmente as televisões e rádios balizam os gostos e as modas culturais. Basta uma atriz de novela exibir uma joia extravagante para em poucas semanas virar moda nacional, ou um programa de auditório sensacionalista promover um novo grupo musical para no dia seguinte tocar demasiado nas rádios e vender dezenas de milhares de cópias. Enquanto isso, o lazer cotidiano da população carente é na mesa do boteco ou na frente da televisão. Muitas vezes o impeditivo financeiro inviabiliza a curiosidade artística dos mais populares.

Titia aplaudiu com entusiasmo, mas só porque ouviu as palavras novela e televisão.

Sentindo que o clima poderia esquentar, prof. Moacir cochichou alguma coisa no ouvido de Zé Antero (eles brigam na frente dos outros, mas são assim, ó, conchavados) que falou que ia encerrar a reunião, que ia sistematizar tudo e depois passaria pra todos darem o "de acordo" e finalizou:

— É necessário, pois, assumirmos a comunicação e a cultura como campos preferenciais de uma guerra política estratégica.

Quando ele já ia saindo com aquela cara de dever cumprido, o pastor Laurindo se levantou, fechou os olhos e gaguejou, consternado:

— O que aconteceu com Vítor me abalou, pois há pouco mais de três meses, ele se suicidou. Suas obras estão espalhadas por inúmeros países europeus, na América do Norte e na Ásia. O que teria levado esse grande pintor ao desespero culminando com o ato extremo? Teria sido o abandono?

Enquanto ele falava, as pessoas foram saindo de fininho. Ao notar que só eu estava ouvindo, me olhou com tristeza:

— Como dizem os italianos: non è vero?

Eu fiz de conta que não era comigo. Faço de bobo pra sobreviver: esses "líderes comunitários" ficam politicando no bairro, mas querem mesmo é arrumar um empreguinho na Câmara, na Prefeitura... Botei o livro de atas no sovaco, catei a bola embaixo do banco e piquei a mula pro campinho: domingo é o dia que Luizinha vai me ver jogar.

 

Nota do autor: As falas desses personagens foram retiradas de documentos apresentados na 1ª Conferência Municipal de Cultura de Belo Horizonte/MG, nov/2005)

 

 

 

PRAIA DA ESTAÇÃO

 

 

Ní réabhlóid ach focal. Porque o prefeito proibiu manifestações culturais na praça. Porque a praça sempre foi ocupada pelo povo. Comícios, shows, cultos, missas, festas, festivais. Do povo. Nunca baile de gala, casamento, formatura, reunião dos diretores lojistas. Forró, rock, axé, pagode, samba. Revolisyon se pa sèlman yon mo. Então teria sol sábado. Então pela rede invisível de contatos. Telefone, bilhete, carta, boca a boca. Uma praia no asfalto. Um decreto ficam proibidas que nada! A praça é do povo vamo lá. Biquínis, maiôs, boias, calções, esteiras. Toalhas, crianças, alegria, música. επανάσταση δεν είναι απλά μια λέξη. Mas o prefeito desligou a fonte de água. E o sol lá. Nada que interrompa o movimento. Uma vaquinha, há quanto tempo. Caminhão pipa. Os fotógrafos aproveitam. Ainda mais intensa a alegria. Революция это не просто слова. A polícia sempre alerta. A guarda municipal, a guarda estadual, a guarda federal, a guarda florestal, a guarda internacional, a guarda de fronteira, a guarda de mentirinha. A tevê. Revolució no és només una paraula. Corre, pega! Aquele casal ali. Aquela bicha seminua. Aquela gostosa também. Em cima do monumento. Ali, correndo com o pau balançando. A outra, que bunda. Vai, anda, pega. Que criancinha nada, tem mais de dez anos, aposto. Révolution n'est pas un vain mot. Fazia tempo que ela não o via. Agora de novo, falando pro povo. Dando a cara a tapa. Ainda um gato, já grisalho, meio calvo. Olhares. Desde o tempo da faculdade. Saudade que se mata. Beijos, tesão. Rivoluzione non è solo una parola. O pipoqueiro está feliz. Os caras do isopor estão felizes. Os donos dos bares estão felizes. A empresa do caminhão pipa está feliz. As pessoas estão felizes. O movimento está feliz. A cidade está feliz. O prefeito. Revolution is not just a word. Sábado que vem. Todos os sábados. Ampliar, agregar, convidar, resistir, transformar, renovar, participar. Fantasias, instrumentos musicais, piquenique, mais água, mais gente, meus parentes, vovô, vovó, titia, sobrinhos, netos, vizinhos. Revolução não é só uma palavra.

 

 

"Não é em expedição ao próprio umbigo que alguém conhece a si mesmo, mas na complexa, multifacetada e muitas vezes inusitada relação com os outros à sua volta, em um mundo cooperativamente construído que lhe exige a problematização constante e também múltipla de sua própria conduta". Leônidas Dias de Faria

       

 
 
abril, 2013
 
 
 

Sérgio Fantini nasceu em Belo Horizonte/MG, onde reside. A partir de 1976, publicou zines e livros de poemas; realizou shows, exposições, recitais e performances. Tem textos nas seguintes antologias: Revista Literária da UFMG, Novos Contistas Mineiros (Mercado Aberto), Contos Jovens (Brasiliense), Belo Horizonte, a Cidade Escrita (ALMG/UFMG), Temporada de Poesia/Salto de Tigre (PBH), Mini-antologia da minipoesia brasileira (PorOra), Geração 90, manuscritos de computador (Boitempo), Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê), Contos Cruéis (Geração), Quartas histórias, contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (Garamond), Cenas da favela — as melhores histórias da periferia brasileira (Geração/Ediouro), 35 maneiras de chegar a lugar nenhum (Bertrand Brasil), Capitu mandou flores — contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte (Geração), Pitanga (Lisboa, Portugal), 90-00 — cuentos brasileños contemporáneos (Ediciones Copé, Peru, 2009 e Universidad Veracruzana, México, 2012 ), Como se não houvesse amanhã — 20 contos baseados em canções da Legião Urbana (Record), Rock Book — contos da era da guitarra (Prumo), Coletivo 21 (Autêntica), Aos pés das letras (Annablume), Poema de mil faces. Publicou os livros Diz Xis, Cada Um Cada Um, Materiaes (Dubolso), Coleta Seletiva (Ciência do Acidente), A ponto de explodir, Camping Pop (Yiyi Jambo, Paraguai), Silas (Jovens Escribas) e A Baleia Conceição (Formato/Saraiva). Bloga em sergiofantini.blogspot.com.br.

 
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