"Não há no mundo poder que nos conteste

Quando o discurso é sobre luz e sombra"

Adélia Prado, Terra de Santa Cruz

 

 

 

1.

 

Como revisitar o absurdo, categoria ontológica filosoficamente associada no século XX a um percurso do humano assente no distanciamento absoluto ou negação a ideia de Deus e na reconquista da posição solitária do Homem num mundo imensamente contingente, através de uma poesia onde Deus não é apenas um nome poético, tão pouco um tópico literário ou memória demasiada afastada do ouvido humano? Por outro lado, sendo indispensável encontrar no absurdo o próprio ponto de partida da fé cristã — e não podemos deixar de o recordar em permanência nos termos colocados por São Paulo na primeira carta aos Coríntios, quando vê na sua pregação de Cristo crucificado "escândalo para os judeus e loucura para os gentios" (I Cor 1, 22) e na Ressurreição o fundamento da fé (Cf. I Cor 15, 13-15) —, quais os seus potenciais sentidos e derivações numa poética onde a transcendência, apesar de evidente, não é redutível a um testemunho pessoal da fé e onde como presença participa do tremor oferecido pela natureza contingente da poesia, domínio privilegiado do desconforto de todos os vocabulários finais?

Interrogações como estas farão todo o sentido a propósito da poesia de Daniel Faria, cuja inesgotabilidade será porventura o seu traço mais singular no leque diversificado das experiências poéticas portuguesas na viragem para este novo século. Falamos de inesgotabilidade como propriedade fundamental desta poesia não apenas pelas suas evidentes potencialidades comunicativas mas sobretudo porque nela reconhecemos a existência de uma qualidade tensional que ao leitor se oferece em permanência e que julgamos essencial na perceção do seu mistério. Por qualidade tensional pretendemos entender, nesta poesia, essa espécie de intermitência entre a sombra empírica do sujeito-escrevente, cujas motivações não dispensam uma relação pessoal com Deus demasiado presente para ser secundarizada1, e a sua prática poética, onde esta última dimensão, mercê da presença desse mesmo caráter tensional, se vê reconvertida em uma entre tantas outras que se abrigam nos interstícios de penumbra dos seus poemas. Como em qualquer jogo de tensão como este, todas as dimensões devem ser vistas sintagmaticamente, sem a pretensão de uma espécie de verticalização de valores, porquanto é verdadeiramente de comunicação de que falamos quando pretendemos abordar objetos tão instáveis como os poemas. Da experiência pessoal à tradição, ao trabalho da linguagem, à ocultação do mistério ou à sua reverberação, do amor de Deus à elevação da physis, todas as vias importam em simultâneo quando é a consciência de não superação de uma delas em relação às restantes que se pretende fazer destacar. Trata-se de uma convivência necessariamente tensa, cujas vibrações decorrem ainda com maior veemência desse princípio essencial que é o questionamento permanente, espécie de mecanismo homeostático interno que em momento algum reflete uma pretensão de segurança ou ordem, antes induz à circulação perpétua das suas potencialidades. Sem ela, o movimento hermenêutico que cada poema propõe como um desafio ao leitor depressa se esgotaria, assim como o convite que cada um deve fazer para o seu regresso.

 

 

2.

 

A comunicação poética pretende-se dinâmica, em desassossego permanente, irredutível a todos os mundos mas não desligada ou ausente de todos os mundos. O seu caráter locomotivo, que Daniel Faria relembrava a propósito de Dante e do pensamento — "Repito a corrida na memória quando estou parado / Penso velozmente que o amor, como Dante disse, é um estado / De locomoção. É um motor. E fico a trabalhar no mecanismo secreto / Do amor." (HSLM: 132)2— é também o da transição de um corpo em "viagem na palavra que se move" (ibid.), o que pressupõe, neste âmbito, a urgência de uma habitação, um suporte ou recipiente resistente que acompanhe essa velocidade. Se esta poesia encontra e se serve das palavras, entre outras motivações, como recetáculos ou recipientes preferencialmente côncavos, é porque neles providencialmente encontra a imagem perfeita da dimensionalidade do objeto no mundo, resiliente e suficientemente vazio para lhe provocar a ordenação de um novo mistério, mas ainda por se adequar a uma visão da condição do ser, entre a exterioridade resistente e o interior pleno de recantos silenciosos cuja natureza aguarda o momento propício de uma deflagração. São vários esses objetos: o cântaro — "O homem é uma caverna / O cântaro o seu segredo" (EAOA, 94) —, a carapaça — "Existia, no entanto, um poema a recuar / A entrar numa carapaça branca, uma folha amarfanhada / Uma espécie de anjo ferido na raiz" (HSLM, 178) —, a concha, que surge isolada — "Não adormeces com o ruído das conchas / Desenrolando-se. As pálpebras. O poema / Indo e regressando nas pupilas" (DL, 283) — ou ainda fazendo parte da forma do búzio — "A concha acústica do búzio que ritma a embarcação / Sanguínea" (DL 306), objeto este que simbolicamente traduz em alguns passos desta poesia a imagem angustiada do sujeito no mundo: "queria ser um búzio / a ressoar o céu — sou uma boca / Em gemidos" (DL, 327).

Em cada um destes exemplos, entre outras possibilidades, a angústia parece concretizar-se na dependência do sujeito relativamente a uma expetativa, a qual, nesta poesia, passa por sucessivos atos de comunicação que têm a transcendência por horizonte. O movimento — cinético, acústico, ruidoso, necessariamente presente no mundo — torna-se o companheiro dessa expetativa em todas as figurações simbólicas que tem ao seu dispor, como nos objetos citados mas também a materialidade humana como caverna côncava e o poema na sua humanidade tridimensional, que merónimos como 'pálpebras', 'pupilas' ou 'boca' ajudam a situar e a contribuir para a indiferenciação do que é pertença exclusiva do humano ou da palavra. Tender para a transcendência obrigará, por outro lado, a uma saída ou a um descentramento de si, a uma vibração de perturbação que faz estremecer os alicerces da quietude própria de quem deseja um centro, um espaço de equilíbrio a partir do qual lhe é permitida a aproximação a essa transcendência. A experiência da angústia, neste sentido, é sempre a de uma viagem na quietude possível de quem se pretende agregar a um centro, mas consciente do caráter instável que atravessa este projeto e da dificuldade (ou impossibilidade real, atual) de o alcançar. O nó tensional encontra-se nesta gestão de expetativas: entre a meditação contínua por entre fogachos na relatividade do espaço e do tempo a propósito das "pulsações mais amadas", em movimentos bruscos de aceleração e distensão, e a angústia pelo difícil acesso a esse "único lugar", o da quietude onde julga poder recobrar a unidade, mas de cuja expetativa parte também a sua dispersão:  

 

Há um comboio iluminado no meu cérebro cheio de túneis e noites

Uma ideia que passa cheia de janelas intermitentes como pirilampos transformados

Borboletas rápidas — há esta imagem respirando

 

Pensativamente entro na viagem visível de uma intuição premeditada:

Que diferença faz à posição do meu corpo a rotação da terra? Vivo

Num único lugar

 

Às vezes ando descalço por uma linha encerrada

No corpo

Encostado ao ferro arrefecido pelas estações que passam. Pouca terra

Lhe é dada para poder germinar. Dentro da terra

 

Ou de uma veia cortada.

Faço às vezes o trajecto inverso do sangue

Medito encostado às pulsações mais amadas. Pouca terra me foi dada

Para calar sempre. E amo

Anónimo a luz transitória. O pulso interno de uma luz intermitente (DL, 276)

 

Fazer o trajeto, mesmo que "inverso do sangue" ou no eterno retorno do poema "indo e regressando nas pupilas" (DL, 283), significa perturbar a quietude provisória do ser, a que se distingue da desejada quietude do centro pelo seu caráter imediato, e ameaçar as fundações do centro. Enfrentar o trânsito e a dispersão implicam os riscos de se perder na vida ou o de perder a própria vida, como garantia María Zambrano ao fazer notar que "a angústia vem quando se perde o centro. Ser e vida separam-se. A vida é privada do ser, imobilizado, jaz sem vida e sem por isso ir morrer nem estar morrendo. Dado que para morrer é preciso estar vivo e, para o trânsito, vivente" (1995: 61). A caracterização desse ser sem centro prossegue nos termos que transcrevemos:

 

"O ser sem referência alguma ao seu centro jaz, absoluto enquanto apartado; separado, solitário. Sem nome. Ignorante, inacessível. Pior que um algo, despojo de um alguém. Some-se sem por isso descer nem mover-se, sem sofrer alteração alguma, resiste à degradação ameaçadora. É tudo" (ibid.).

 

Perder a referência ao centro parece, este modo, significar tanto a perda de uma identidade (o ingresso no anonimato) como a incapacidade de progredir, restando a mineralização de quem se vê transmutado em objeto de máxima resistência, inerte e apenas útil à propagação do som, como o caso da concha, a carapaça ou o búzio. Vimos, porém, que esses objetos de máxima resistência também importam se, retomados do seu isolamento, implicarem a amplificação de um certo tipo de movimento pela sua deflagração; do mesmo modo, várias são as imagens do sujeito enquanto pedra, visto na sua individualidade — "Sou pedra na água / A raiz que ficou / Do que foi cortado, o grito // Da tua boca" (HSLM, 188) ou no paradoxo da pedra fecunda, como nos versos "Como se hoje pudesses plantar-te no que frutifica / E igualares-te no silêncio a uma pedra fechada / Uma pedra em sua natureza humilde de coisa que vive / Em seu mistério de coisa que sem sementes se propaga" (HSLM, 138).

A resistência à mineralização dos sentidos, como neste caso, consuma-se do mesmo modo que a oscilação no centro projeta o sujeito na angústia da perda dessa hipótese de comunicação pelo movimento com a transcendência. Ele percebe que estar quieto, como igualmente sublinhou María Zambrano, não é o mesmo que estar imóvel, e se é verdade que, conforme também defendeu, o centro é imóvel, no homem este exige-se sobretudo quieto, propriedade que lhe permite que esse centro "se mova a seu modo, de acordo com a sua incalculável «natureza»" (1995: 63). A quietude paradoxalmente transitiva, resistente num tipo de elasticidade que percorre a distância e seus obstáculos sem perder o seu centro é um traço distintivo num espaço desta natureza, sendo possível ainda estendê-la à própria compreensão do tempo em que se exerce essa locomoção flexível (mas sem a perda do seu centro); a feliz imagem de um tempo desquiciado que Nuno Higino propõe para esta poesia resulta na perceção de um tempo que perde, a dado momento, o seu eixo, tal como o gonzo de uma porta que se vai soltando e libertando um gemido e se entreabrindo ao desconhecido, sem porém necessariamente perder a imediata ligação com esse eixo (cf. Higino, 2010: 203- 209). Conhecendo o centro como ponto de saída e também como ponto de chegada, de ambicionado retorno, uma das vias de deriva do sujeito pelo mundo é feita através do reconhecimento dos lugares familiares na expetativa do reencontro pela memória desse ponto dificilmente acessível, um itinerário locomotivo que se socorre de todas as imagens e vocabulários disponíveis e reconhecíveis num mundo onde a transcendência é difícil (mas onde é ainda possível) e onde os homens se debatem com a dificuldade de reaprendizagem do regresso a esse centro, porventura por ainda amanhecerem "sem materiais suficientes para a luz total" (HSLM: 131) ou por não terem ainda sido tocados com "os materiais secretos / Do amor" (HSLM: 128):

 

Homens que trabalham sob a lâmpada

Da morte

Que escavam nessa luz para ver quem ilumina

A fonte dos seus dias

 

Homens muito dobrados pelo pensamento

Que vêm devagar como quem corre

As persianas

Para ver no escuro a primeira nascente

 

Homens que escavam dia após dia o pensamento

Que trabalham na sombra da copa cerebral

Que podam a pedra da loucura quando esmagam as pupilas

Homens todos brancos que abrem a cabeça

À procura dessa pedra definida

 

Homens de cabeça aberta exposta ao pensamento

Livre. Que vêm devagar abrir

Um lugar onde amanheça.

Homens que se sentam para ver uma manhã

Que escavam um lugar

Para a saída. (HSLM: 127)

 

3.

 

Observando o longo desdobramento destes homens dominados pela morte e pelo sofrimento, propensos no mundo a todas as contingências do absurdo, o sujeito destes poemas não reclama uma atitude puramente contemplativa e neutra por se saber parte dessa comunidade e por conseguinte sujeito a um mesmo tipo de questionamento. A enumeração anónima destes diferentes homens reflete diferentes ângulos do sujeito destes poemas enquanto participante de uma comunidade em revolução constante à volta de um centro, posição voltada para a sua versão solar, ascensional (o centro que é a transcendência), em oposição à escavação em direção a um núcleo incandescente feita pelos restantes homens, atos diferentes na direção mas não no objetivo (um centro nuclear, condenado ao trabalho e à persistência), o que implicará que também ele se veja cercado pelos mesmos traços de angústia que dominam a comunidade. A sua solidão não perde de vista a presença de todos os homens que se debatam em idênticas circunstâncias na sua efemeridade ou desgaste corrosivo do tempo "És agora uma máquina montada para a morte / Uma avaria dentro dela que lentamente desgasta. / E fabricas um homem que se afasta // Do mundo" (HSLM, 138) , sendo porém a sua de uma natureza diferente se compreendida na singularidade daquele que se vê cercado pelas palavras e que possui uma consciência aguda da sua responsabilidade de as reorientar para um centro, de as tomar não tanto na perspetiva demiúrgica de um criador ou na linha romântica de um transmutador da matéria, mas na de um conservador, reparador ou restaurador que artesanalmente lhes introduz uma presença nova, um reposicionamento no mundo ou "iluminação", mais de acordo com a tradição do trabalho expressivo que, de Plotino aos Românticos, de Rimbaud a Herberto Helder, teve no trabalho poético a valorização da projeção estética de uma qualidade emocional (cf. Abrams, 1971: 57-69):

 

Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio

Restauro-a

Dou-lhe um som para que ela fale por dentro

Ilumino-a

 

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa

Reunida numa forma comparada à lâmpada

A um zumbido calado momentaneamente em enxame

 

Ela não se come como as palavras inteiras

Mas devora-se a si mesma e restauro-a

A partir do vómito

Volto devagar a colocá-la na fome

 

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza

Como um homem nadando para trás

E sou uma energia para ela

 

E ilumino-a (HSLM, 174)

 

Na poesia de Daniel Faria, este ato de iluminação ou reposicionamento da palavra recuperada para o poema não deve ser confundido com um ato epifânico porquanto as condições em que ocorre denotam processos de trabalho, de domínio e manipulação da matéria bruta, aspeto que procurámos desenvolver em estudo anterior (cf. Fino, 2006: 414-418), operando a partir da sua materialidade acústica, mas impondo a quem a manipula uma condição essencialmente silenciosa.

Se, como observámos, a quietude não implica a imobilidade (os movimentos de retorno no poema acima transcrito novamente o supõem), o silêncio não implicará de igual modo o vácuo ou a imobilidade absoluta de quem medita ou contempla. O silêncio não evita a condição essencialmente violenta que envolve o restauro da palavra através de imagens dilaceradas onde o sofrimento diverge a partir das diversas referências à automutilação e sacrifício ritual do sujeito neste processo: "Começo devagar a meda rítmica / No eixo que corta os dois lados / E fere os pulsos primeiro e a língua / porque trabalho com os dedos e as veias / Abertas a lama onde sou terra e água" (DL, 270) ou em "Explicação da Lâmpada", onde o segador, outra imagem do poeta, "cercou-se de noite / E com a foice que trazia e ceifava / Cortou os pulsos procurando o sol / E as pupilas à procura de água" (EAOA, 92), culminando nas imagens líquidas como "E verto o sangue para dentro das palavras / Ando um pouco acima da transfusão do poema" (EAOA, 39). O sujeito sabe-se imbuído de uma tarefa que, a seu modo, significa a reorientação da palavra para a recuperação do seu sentido poético no conjunto de formas agudas ritmicamente excruciantes provenientes da pura respiração pré-articulatória. Operando sobre a matéria primitiva como base ainda informe (mas pré-existente) de pura circulação sem gravidade, este vê voluntariamente a dor vertida para o seu lugar de quietude, algo que o ocupa em profundidade e abala, provocando-lhe essa tensão que o faz progredir mas também o submete ao sofrimento de quem se observa incapaz de alcançar uma ambicionada imagem de silêncio como suprema ausência ou absoluta imobilidade:

 

Tenho os olhos fechados para que não os enxugue ninguém

Há na ambulância do cérebro fechado um moribundo

Que espera no trânsito uma buzina para morrer

 

Poiso o auscultador e imagino o armistício

Da mão trazendo ao ouvido o silêncio — no silêncio

Não sou acompanhado sequer pelos meus passos

 

Poiso a cabeça entre as mãos como a ideia que perdeu sentido

Debruço a cabeça, maré definitiva — queria ser um búzio

A ressoar o céu — sou uma boca

Em gemidos. Tenho a cabeça fechada

Às entranhas comovidas

A boca fechada para que ninguém a divulgue

 

O ar de um pulmão — respiro — prestes a romper-se

Que assobio, que sirene lança? A respiração

Não esbraceja — é aflito

Que o trânsito se estrangula. Fecho

A circulação ao cérebro. O pensamento

É o próprio transeunte. Ele está preso na palavra

Ele fecha as montras da rua calmamente (DL, 327)

 

Entender esta imagem de silêncio e perceber os vários momentos de falha daquele que quer "a fome de calar-[s]e. O silêncio. Único / Recado que repito para que me não esqueça." (DL, 285) conduzem-nos a pensar o absurdo nestes poemas como essa contradição ou desacordo entre perspetivas comunicantes: a daquele que se reconhece no projeto de quietude do centro, não evitando o permanente deslocamento mas desejando ainda assim a imobilidade eternamente adiada "Ainda não há lugar no mundo onde possa sossegar de tu não seres / O vazio que persiste à minha beira" (EAOA, 57) ou "Não fui a solidão inteira nem reclusa / Para o único repouso entre o silêncio (EAOA, 59) e o que se vê condenado ao sofrimento da recuperação da palavra poética e que, conhecendo o seu ofício, sabe não ser possível evitá-lo por considerar que descurá-lo seria negar a sua natureza e perder tanto o seu centro como a hipótese de reconhecer as suas vias de retorno. Se a ocupação do sujeito diz respeito à recriação da linguagem poética e se este ato o recentra num lugar "bem situado", a importância que concede a um fazer para além do silêncio impõe que este se torne num objeto de demanda permanente e se venha a aproximar da própria ideia de transcendência. Na verdade, a diversidade significativa do termo 'silêncio' nesta poesia (entre a ausência da voz e a contemplação ou meditação) deve ainda acolher um sentido de aproximação ao nada como puro sagrado, um lugar de habitação que apenas se pode efetivar enquanto ideia e projeto, porquanto apenas Deus é o seu único ocupante. Com isto, o nada distingue-se da categorização antropológica do homem nas diferentes versões existencialistas (a absoluta solidão do Homem no mundo como princípio de efetivação do absurdo da existência, o ser que conta apenas com a sua temporalidade) para se elevar a uma categoria anterior ao Homem (antes da criação do mundo por Deus, havia o Nada, pelo que ele é anterior ao próprio mal) e que o vai acompanhar desde o seu aparecimento e interpelando a cada passo. María Zambrano (2004: 154-5) considerava que o pensamento sobre o nada, em dado momento, foi entendido como uma forma evocadora de um sentir original, irredutível, feito a partir do inferno interior do ser e diabolizado nas tentações, em contraste com a resistência do nada, que leva a Deus. Esta visão positiva do nada, percecionada pelos místicos (e por vezes também pelos poetas, como refere), implica o pensamento criativo pela renúncia, no primeiro caso ao mundo e à meditação no inferno interior como processo de se abeirar do vazio para a comunicação com Deus ("Ao princípio não se entende o amor, o sequioso vazio", este o primeiro verso de "Do Livro Primeiro da Noite Escura de S. João da Cruz 1" (DL, 219), no segundo como agente de possibilidade, de preenchimento desse vazio através da multiplicação do ser (o outramento artístico) e da obra ("Que a mão escreva em si mesma esse dever de fruto que cresce / Esse sumo que a escrita bebe para saciar quem lê" (DL, 218), numa antevisão da atemporalidade ou da suspensão do tempo que cada obra de arte promove e que cada criador tem em mente. Ambos os casos são caminhos de ação, não de resignação, e de algum modo devolvem ao nada a cidadania do sagrado absoluto, algo que María Zambrano fizera também destacar:

 

"O nada é o irredutível que a liberdade humana encontra quando pretende ser absoluta. E a pretensão de algo absoluto pode deixar cair o seu absoluto sobre aquilo que lhe resiste, verificando-se assim uma conversão entre o absoluto do ser e do não-ser. Aquele que pretende ser absolutamente acaba por se sentir nada dentro de uma resistência sem fronteiras. É o sagrado que reaparece na sua máxima resistência. O sagrado com todas as suas características: hermético, ambíguo, activo, incoercível. E, como tudo o que resiste ao homem, parece esconder uma promessa. (…) É o sagrado 'puro' sem indício algum de que permitirá ser desvelado. O 'sagrado puro', a absoluta mudez, que corresponde à ignorância e ao esquecimento da condição humana: ser livre, activo, mas padecendo. O projecto de ser, de viver em acto puro, despertou o nada. Para esta vida não haveria 'coisas'; coisas, circunstâncias, receptáculos da resistência que o viver humano encontra e de que necessita. O nada é essa resistência despertada, liberta dos seus receptáculos, totalizada" (ibid., 162-3).

 

Há nesta caracterização do nada como "sagrado puro" na constituição do projeto do ser, que reúne as suas características nesse máximo de resistência, muitos aspetos que podemos dar conta na obra de Daniel Faria; afinal, tanto a atitude mística como a poética participam como caminhos num mesmo projeto de aprofundamento da humanidade do ser no mundo, um centro ocupado pelo sujeito destes poemas onde as dicotomias (solidão/comunhão; som/mudez; interioridade/mundo; alegria/dor) se vão anulando ou ganhando os esbatimentos da ambiguidade face a um projeto maior, o do caminho adiado para o "sagrado puro" vivido assim na máxima resistência:

 

O meu projecto de morrer é o meu ofício

Esperar é um modo de chegares

Um modo de te amar dentro do tempo (EAOA: 35)

 

 

4.

 

Antecedendo a reflexão citada sobre o nada e o sagrado, María Zambrano encontrava a sua fonte incessante, como também foi referido, no inferno irredutível do homem. Na sua caracterização fazia constar a ideia de aproximação dos contrários sem a ocorrência de fusão; brotando do nada, "cede e é implacável; é a negação do ser e, para quem se deixar fascinar por ele, acaba por ser todo o ser na aniquilação" (ibid. 160). Há nesta perspetiva de termos irreconciliáveis que se observam nas fronteiras ou no limiar de um centro, entre a atração e a negação, um lugar de habitação no pensamento do ser que se vê confrontado com diferentes experiências e versões do absurdo, como as que são objeto de meditação a partir da viagem do pensamento por momentos específicos da cultura humana (bíblicos, literários, míticos) ou no confronto mais direto do ser com o mundo. Sobre este último ponto e sobre a realidade do absurdo, Daniel Faria deu-nos diretamente conta em O Livro do Joaquim3, obra importante por assinalar não apenas o período de transição entre a produção poética de juventude e os seus livros maiores como também por empiricamente configurar (trata-se de um trabalho concebido inteiramente para um destinatário definido, um amigo) algumas reflexões importantes sobre o lugar do ser na sua existência, como a que transcrevemos:

 

Se eu um dia me suicidar, não há-de ser pela infelicidade da minha vida, mas pela felicidade da morte. Nada, como a morte às vezes, me é tão sedutor. Não é dor, nem medo, nem ausência, nem peso. É apenas essa estranha leveza de não-ser e de tão pouco ser isso.

Se eu um dia me suicidar, não o farei como quem nega, mas como quem confirma. Na sua aparente traição, será ainda gesto infinitamente grato de quem nunca mereceu até o mínimo e mais desatento cuidado. Desprender-se — essa liberdade, não a maior… embora! mas liberdade — para o nada, o absurdo, ou (se houver perdão) para o mais além. (LJ, 73)

 

O pensamento sobre o suicídio, afastado de qualquer intenção confessional e visto antes como um acesso à morte, não é apreendido como a semente do terror existencial mas como um sinal da profunda liberdade do ser. Sendo assim, a confiança manifesta-se neste âmbito como o confronto do homem com o irracional em que a morte é a felicidade de alcançar a leveza do não ser liberto de constrangimentos éticos ("na sua aparente traição") para uma harmonia ou graça que ao ser não lhe é dado diretamente experimentar em vida. A leveza do não ser comporta, ainda assim, uma materialidade positiva (a sua "estranha leveza") que, apesar da contingência que envolve esse horizonte, se subordina em qualquer contexto a uma ideia de sagrado. Outro fragmento concretiza-o triunfalmente:

 

Não tardará e direi: "Pela primeira vez na vida me sinto ressuscitado: a morte devolveu-me a vida, a partida do meu melhor amigo devolveu-me o meu melhor amigo, o sofrimento devolveu-me a escrita, o vazio devolveu-me O sempre presente".

Acredito que direi. (LJ, 80-1)

 

A diferença implicada neste fragmento revolve os dados uma vez mais: o "sagrado puro" da morte, "hermético, ambíguo, activo, incoercível" (op.cit.) age em conformidade com o desejo de um retorno do ser ao equilíbrio do centro, o mesmo que idealmente lhe garantiria a comunhão e a eternidade, mas também a pura mudez, a incomunicabilidade, o absurdo no seu estado puro, a aniquilação da tarefa de restauro da natureza poética da palavra. A preferência irá, neste sentido, para concebê-la como visão de fronteira que confere iluminação ao projeto de habitar instavelmente o mundo, sofrendo assim o absurdo da vida como uma realização da vontade de permanecer e de cumprir a sua tarefa de restauro da palavra.

Há alguns pontos nestas ideias que poderíamos aproximar, com as devidas diferenças, da visão do homem absurdo segundo Albert Camus, o qual, despojado de transcendência (algo que não se sucede em Daniel Faria), vive em divórcio e no confronto com o mundo num estado de permanente revolta para reafirmar a sua inadequação a esse mundo. Conforme sintetizou Helder Ribeiro (1996: 174) a propósito de Camus,

 

O homem absurdo não se suicidará. Quer viver sem renunciar a nenhuma das suas certezas, sem porvir, sem esperança, sem ilusão e também sem resignação. O homem absurdo afirma-se na revolta. Fixa a morte com uma atenção apaixonada e esta fascinação liberta-o: conhece a "divina responsabilidade" do condenado à morte.

 

Ecos destas observações a propósito do homem absurdo poderiam ser lidas precisamente no excerto seguinte de O Livro do Joaquim quando enuncia "A revolta é em mim uma cidadania. Não fui eu que me habituei à dor, foi a dor que se tornou habitual" (LJ, 81). Uma das diferenças, porém, residirá na extensão desse sentimento do absurdo à própria ideia de transcendência no que apresenta relativamente ao mistério do "sagrado nada" (condição da fé) e à morte que, contrariamente à "porta fechada" em Camus (Ribeiro, 198), se apresenta como a sequência desse mistério, afinal de consequências tão dramáticas como as experienciadas pelo ser no mundo (a leveza do centro, mas também o mutismo, a solidão na morte do tempo).

Por outro lado, a revolta do ser como resposta ao absurdo, tal como a do Sísifo camusiano, aceita a dor e o seu destino e faz dela um caminho para a felicidade, nele empregando a ação como resposta à inelutabilidade do sofrimento e propondo a criação como uma forma de se apropriar do seu destino. Como referia Camus a propósito de Sísifo, herói do absurdo, e da sua pedra, "a sua coisa" que arrasta continuamente com um esforço que nunca mais cessará (Camus, s.d.: 116), o seu destino pertence-lhe e ele sabe-se senhor dos seus dias: "persuadido da origem bem humana de tudo o que é humano, cego que deseja ver e que sabe que a noite não tem fim, está sempre em marcha" (ibid.). Daniel Faria centra-se em alguns destes sentidos de ação nos poemas do ciclo "Explicação do labirinto", onde o ser se empenha na construção do seu "labirinto para a morte" (EAOA, 66) e onde a pedra de Sísifo, nos dois poemas com o mesmo título, em "viagem sempre repetida", "(…) é redonda / A Vida" (EAOA, 69) e é ainda o peso do próprio tempo como metonímia do desgaste do ser no mundo a preparar-se para a marcha ou, no caso do sujeito, para iniciar a sua locomoção:

 

(…)

Agora lavarei a minha face

Sem perturbar os círculos da água

Medirei o tempo pelo peso da pedra

De Sísifo, perto do cimo

E pelo musgo que dificulta

A firmeza dos seus pés

 

Partirei sozinho na viagem

Sem nenhuma pedra ou senda repetida

E no tempo repetido acharei uma saída

Uma manhã depois de uma manhã (EAOA, 70)

 

A viagem pelo mundo traz ao pensamento do ser experiências diversas do absurdo, entre a confiança e a suspensão dos sinais de felicidade, como nos ocorre observar nos dois poemas de Homens Que São Como Lugares Mal Situados onde a palavra "absurdo" é aplicada em duas situações diversas. Em "O filho é o carrossel à volta da mãe" (HSLM, 123), a família congregada em volta da mulher genitrix transita da imagem fecunda (feliz) do poema anterior ("E geram continuamente / Transformam-se em pomares" (HSLM, 122) para a sua negação com a sempre presente ameaça do acaso quanto à mortalidade daquele que é "carrossel no coração da mãe" (HSLM, 123), hipótese dominante e perturbadora que se estende à família na aproximação dessa negação aniquiladora:

 

(…)

Eles são uma roleta em voltas sucessivas

O tambor de um revólver

O estoiro de uma bala repentina

 

A viuvez é um buraco no centro da cabeça

A família é um buraco absurdo sobre a casa

— uma gruta sem acesso—

Há um cadáver nos olhos do acaso

Cheira a pólvora como o instante que dispara

E está imóvel como um dia sem saída (ibid.)

 

Por sua vez, na redescrição do episódio bíblico de Sunan, narrado no segundo Livro dos Reis (2Rs 4, 8-37) e fazendo parte na obra citada de Daniel Faria do significativo ciclo "Se fores pelo centro de ti mesmo", o absurdo recupera a coexistência nas fronteiras entre a alegria e o inferno do ser quando se vê reconhecível na ambiguidade profética da figura de Eliseu, trazendo a alegria da maternidade à mulher rica de Sunam que lhe prepara um espaço de acolhimento ("O absurdo pode sempre visitar-te quando quiser / Tens um lugar para ele. Em cada dia uma nova entrada" HSLM, 155) e em seguida a aniquilação dessa dádiva com a morte inexplicável do filho junto dos ceifadores ("O absurdo pode sempre visitar-se quando estiveres no campo / E o teu filho te disser: a minha cabeça / Pondo a mão sobre a nuca, tendo largado a foice", ibid.). Como redescrição, o poema queda-se no momento da morte do filho ("Era meio-dia sobre os meus joelhos") e não se abre à expetativa da ressurreição, que ocorrerá por intermédio de Eliseu no quarto preparado para o profeta e que só a leitura do texto bíblico nos informa. A focalização numa versão negativa do absurdo "no rosto da mulher" (ibid.) reporta-se à natureza instável do próprio tempo que não o evita nas suas diferentes versões, a aniquiladora mas também a que diz respeito ao milagre.

Todo o ciclo parece, de algum modo, dar conta deste aspeto em vários poemas, muitos deles protagonizados por outras figuras femininas; o absurdo que visitará Sara, no primeiro poema ainda "nome de deserto / É o nome da videira estéril / É o nome à espera de ter filhos" (HSLM, 149) e que lhe permitirá conceber; o absurdo que é o terror de Agar, escrava expulsa por Sara, na expetativa da morte de seu filho Ismael ("Sentada no odre vazio / Com os olhos cheios de lágrimas // À distância de um tiro de arco / Para não ver o filho morrer" HSLM, 150); o absurdo que visitará a viúva de Sarepta juntamente com o profeta Elias ("Equilibrou-me o feixe de lenha na cabeça / De um modo que me abençoava" HSLM, 155) e que a redimiu da fome e posteriormente da morte de seu filho. Estes três exemplos apresentam-se como momentos específicos no interior de um episódio bíblico, muitas vezes como pontos de partida, sem alusão a um desfecho que resulta da reposição de uma forma de equilíbrio, seja pela ressurreição seja pelo milagre da fertilidade. Este dado é significativo e apenas a leitura completa do texto bíblico a partir das indicações associadas aos títulos dos poemas nos possibilita compreender esse desfecho, uma vez que a maioria parece tomar de cada um apenas os pontos de instabilidade que permitem dramatizar o lado mais patético do absurdo, entre a eminência da perda ou a espera solitária, versões do sofrimento do ser que, na sua quietude, se expõe ao nada e ao inelutável. Talvez o poema final deste ciclo, o único que não toma um episódio bíblico como ponto de partida, funcione a vários títulos como uma síntese desta posição. O seu protagonista, Charles de Foucauld4, é em parte um exemplo real do herói absurdo camusiano ao dele fazer um ponto de partida (a fé que lhe permite encontrar a felicidade no sofrimento do deserto norte-africano após uma juventude de agnosticismo e dissipação), até ao ponto em que o acaso interrompe este projeto com o seu assassínio sem motivações aparentes. Transpondo o limiar da morte, como o absurdo que no poema da sunamita tinha "Em cada dia uma nova entrada", ao ser é assegurada como devir a quietude de um centro em que o seu exemplo como mártir, em permanente devir, significa uma forma de sentido para esse sofrimento, este já no "sagrado nada", uma promessa que o sujeito do poema, como uma voz prospetiva da consciência, lhe relembra:

 

Pensa que morrerás mártir. Entre talhas

Ao cair ressoará o teu corpo sobre o bojo.

 

Pensa que morrerás

Esta tarde. Com o sangue no peito a marcar o umbral

Da tua morada. Nu morrerás

E desconhecido. Na terra só o adorno

Possui o reconhecimento

 

Pensa que morrerás

No chão

 

À tua porta.

E nunca mais acabarás

De regressar (HSLM, 167)

 

Em O Livro do Joaquim, antecedendo precisamente os dois excertos já citados desta obra, apontara para si o sentimento do mártir a propósito do afastamento do melhor amigo, definindo-se "tão feliz e tão triste, como só aos mártires foi dado ser" (LJ, 80). Voluntária ou involuntariamente, o mártir adquire com a sua aniquilação a felicidade da libertação do tempo para alcançar um degrau da substância do puro devir, apegando-se em termos místicos (misteriosos) ao seu centro na subtil leveza da noite sagrada e na sua abertura para a indiscernibilidade do tempo. Como testemunhava nos versos de "Do Livro Segundo da Noite Escura de S. João da Cruz 5", "Agora entendo o ovo e o mártir quando é cercado para morrer / Entendo o ventre do bicho marinho, o fundo dos golfos / E já sei como abrem os ressuscitados os olhos no sepulcro" (DL, 226).  

 

5.

 

Encarar o absurdo na tristeza e na alegria e reafirmar a sua inexplicabilidade tornam-no presença real e visível no mundo do poema. A criação absurda, ainda segundo Camus em O Mito de Sísifo, exigiria ao criador que o pensamento na sua forma mais lúcida estivesse misturado com ele, mas de modo a apenas aparecer como "inteligência ordenadora" (op. cit., 94). Na poética de Daniel Faria, o pensamento não se exila nem pretende a suprema lucidez, não estabelece uma renúncia nem se acomoda à imobilidade. Apesar do sofrimento e da contingência do mundo, mesmo que seja "possível abrir-se-nos o pulso separado como um divórcio", é "sempre possível redigir com ele / Pensá-lo como uma ferida que se cura / E escrever como um homem que corre em pensamento / Escolhendo as paisagens ou as divisões da casa / Para o descanso" (HSLM, 172). Contrariamente ao homem absurdo de Camus, este homem está profundamente ligado à sua obra no modo simbólico e visceral que lhe conhecemos e num fulgor que é constantemente a recuperação da sua presença. No quarto poema de "Do Ciclo das Intempéries", relembra-nos: "A magnólia enxerta-me nos pensamentos, é um profundo / Rumor na minha carne, a linha que me vai da mão / A outra mão" (DL, 340). A leitura do poema fá-lo regressar, reatualiza-o, presentifica-o e ilumina o pensamento para logo a seguir o entregar à tarefa seguinte, a da disseminação dos sentidos e ao obscurecimento que logo sobrevém após um momento de fulgor. Uma ideia como esta permite-nos aproximá-lo de poetas como Paul Celan, que no seu discurso "Le Méridien" (1960) reiterava a forte tendência do poema moderno em direção ao silêncio, mas este feito a partir de um "ainda-aqui" ("still-here") que é proposto nos seguintes termos:

 

This 'still-here' of the poem can only be found in the work of poems who do not forget that they speak from an angle of reflection which is their own existence, their own physical nature. This shows the poem yet more clearly as one person's language become shape and, essentially, a presence in the present. The poem is lonely. It is lonely and en route. Its author stays with it" (Celan, 2003: 49).

 

Da matéria do poema consta a solidão em trânsito no "ainda-aqui", que Celan definia como a palavra no seu movimento, feito na companhia do seu autor eternamente à procura de um Outro de que cada poema é figura — "For the poem, everything and everybody is a figure of this other toward which is heading"(ibid.). O poema, deste modo, vai-se reconstituindo como o lugar de uma conversação desesperada (ibid., 50), onde todos os tropos e metáforas querem ser levados até ao absurdo na sua busca do poema absoluto, uma das utopias que cada um, "even the least ambitious" reclama para si como questão inelutável (ibid., 51). A propósito destas reflexões, Emmanuel Levinas fazia destacar a conceção de Paul Celan sobre o poema como o ato espiritual por excelência, inevitável e impossível por se remeter a esta ideia utópica de "poema absoluto" e onde a importância da questão da busca e do caminho para a utopia e para o irrealizável para o qual cada poema tende são elementos nucleares: "l'interrogation de l'Autre, recherche de l'Autre. Recherche se dédiant en poème à l'autre: un chant monte dans le donner, dans l'un-pour-l'autre, dans la signifiance meme de la signification" (Levinas, 1976: 56). Num lugar e num projeto como o de Daniel Faria e a sua poesia, onde "o acto / Excede o acto — só há o quieto brilho / Do olhar infuso. A violenta escuridão de se abeirar da luz" (DL, 224), e onde o absurdo, no seu limiar, lhe assiste entre os dois lados da viagem, poderíamos afinal reconstituir um meridiano, "linha que me vai da mão / A outra mão" (DL, 340) em permanente e inesgotável regresso.

        

 

 

Notas

 

1 Esta característica foi destacada por Rosa Maria Martelo no ensaio "A magnólia 'maior / E mais bonita do que a palavra'" como um traço da originalidade da poética de Daniel Faria; partindo da poesia moderna, mostrou como ambição "o de restituir a poesia ao domínio do sagrado", o que o fazendo "um poeta improvável no seu tempo, ainda quando dialoga com a poesia contemporânea, também confere à sua obra poética a comovente verdade que nela reconhecemos" (Martelo, 2010: 298-9).

 

2 Nas citações de poemas e outros textos, teremos em consideração as siglas habitualmente usadas relativamente às suas obras: EAOA (Explicação das Árvores e de Outros Animais), HSLM (Homens Que São Como Lugares Mal Situados) e DL (Dos Líquidos). A indicação das páginas, por outro lado, segue a mais recente edição revista da sua obra (Daniel Faria. Poesia. Ed. Vera Vouga. Lisboa: Assírio & Alvim, 2012). Para O Livro do Joaquim (LJ), seguimos a única edição disponível: Daniel Faria. O Livro do Joaquim. Ed. Francisco Saraiva Fino. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007.

 

3 Publicado em 2007, os fragmentos que contém apontam datas que medeiam os anos de 1993 e 1996, altura em que este projeto terá sido abandonado (cf. prefácio de LJ, 9).

 

4 Charles de Foucauld (1858-1916) nasceu em Estrasburgo no seio de uma família aristocrática e abastada. Após uma juventude passada no ateísmo e oficial do exército na Argélia, decide converter-se e ingressar na Ordem Trapista. Viverá junto do povo tuaregue, no Norte de África, em condições muito precárias e muitas vezes na absoluta solidão do seu eremitério. A 1º de dezembro de 1916, foi assassinado inadvertidamente durante um assalto. Foi beatificado em 2005. (cf. SIX, Jean-François. Jesus Caritas — Carlos de Foucauld. Trad. Mafalda Folque. Ed. Paróquia de Santa Isabel, 2007).

 

 

Bibliografia Ativa

 

FARIA, Daniel. O Livro do Joaquim. Ed. Francisco Saraiva Fino. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007.
FARIA, Daniel. Poesia. Ed. Vera Vouga. Lisboa: Assírio & Alvim, 2012.

 

 

Bibliografia Passiva

 

ABRAMS, M. H. The Mirror and the Lamp. Oxford: Oxford University Press, 1971.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. Urbano Tavares Rodrigues. Lisboa: Livros
do Brasil, s.d.
CELAN, Paul. Collected Prose. Trad. Rosemarie Waldrop. New York: Routledge,
2003.
FINO, Francisco Saraiva. "Para o Instrumento Difícil do Silêncio — Fulgurações
da palavra poética na obra de Daniel Faria", in Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], pp. 393-429.
HIGINO, Nuno. "O tempo desquiciado de Daniel Faria", in Atas do Colóquio "E
agora sei que oiço as coisas devagar: Evocação e Escuta de Daniel Faria", Porto: sombra pela cintura, 2010, pp. 203-209.
LEVINAS, Emmanuel. Noms Propres. Paris: Fata Morgana, 1976.
MARTELO, Rosa Maria. A Forma Informe — leituras de poesia. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2010.
RIBEIRO, Hélder. Do Absurdo à Solidariedade — a visão do mundo de Albert
Camus. Lisboa: Editorial Estampa, 1996.
ZAMBRANO, María. Clareiras do Bosque. Trad. José Bento. Lisboa: Relógio
D'Água, 1995.
ZAMBRANO, María. O Homem e o Divino. Trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra.
Lisboa: Editorial Presença, 1995.

 

 

 

abril, 2013

 

 
 
 

Francisco Saraiva Fino. Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses, pela Universidade do Porto e Mestre em Criações Literárias Contemporâneas pela Universidade de Évora. Presentemente é Doutorando em Literatura Portuguesa nesta instituição. Investigador do Centro de Estudos em Letras (Universidade de Évora) e membro das Comissões de Espólio e de Edição da obra do poeta Daniel Faria, onde, entre outras funções, foi responsável pela edição de O Livro do Joaquim (2007). Tem participado com comunicações em colóquios nacionais e publicado ensaios e recensões em revistas nacionais e internacionais. É responsável pela edição dos volumes de poesia Fumo, de Rodrigo Solano, em 2010, e Coroa de Rosas, de Duarte Solano. Tem centrado os seus estudos nos domínios da literatura portuguesa e da teorização estética, nomeadamente na poesia moderna e contemporânea e suas relações interartísticas.