"Quem era você?

De quem dizem que plantava jardins e os fazia florescer onde vivera. De quem dizem que era dura, implacável e bela, bela, bela. Quem era você, órfã de mãe, órfã de pai, órfã de irmão? Violinista. Quem? Asmática, doente da pele, dos ossos, dos olhos. Professora. Quem era você, você que falava pouco e que falou tanto — tanto — de um só amor de todos que teve: de um só. Quem era você. Você, o ás de espadas. Você, que deixou trezentas páginas de poemas e, ainda assim, nada mais. Você, que morreu em abril, em 2009, e que foram doze a seu enterro. Você que deixou uma nota: 'Nada de cruzes. Não morri na paz de nenhum senhor. Cremar.'

Você: quem era?".

Leila Guerriero, in: Si muriera esta noche: un acercamiento a Idea Vilariño [Revista UDP 09, p. 154].

 

 

 

O mar

 

 

Tão arduamente o mar,

tão arduamente,

o lento mar imenso,

tão largamente em si, cansadamente,

o fundo mar eterno.

 

Lento mar, fundo mar,

profundo mar imenso...

 

Tão lenta e funda e largamente e tanto

insistente e cansado ser caindo

como um pranto, sem fim,

pesadamente,

tenazmente morrendo...

 

Vai crescendo sereno desde o fundo,

sabiamente crescendo,

lentamente, profundamente, largamente,

pausadamente,

mar,

árduo, cansado mar,

Pai do meu silêncio.

 

 

 

 

 

 

Meio-dia

 

 

Transparentes os ares, transparentes

a voz da manhã

os brancos montes tépidos, os gestos das ondas

todo esse mar, todo esse mar que cumpre

sua profunda tarefa,

o mar concentrado,

o mar, nessa hora de mel em que o instinto

zumbe como uma abelha sonolenta...

Sol, amor, açucenas dilatadas, marinhas

Ramos vermelhos sensíveis e ternos como corpos

vastas areias pálidas.

 

Transparentes os ares, transparentes

as vozes, o silêncio.

À margem do amor, do mar, da manhã,

na areia quente, trêmula de brancura,

cada um é um fruto amadurecendo sua morte.

 

 

 

 

 

 

Dizer não

 

 

Dizer não

Dizer não

Amarrar-me ao mastro

Porém

Desejando que o vento o revire

Que a sereia suba e com os dentes

Corte as cordas e me arraste ao fundo

Dizendo não não não

Porém a seguindo.

 

 

 

 

 

 

O mar não é mais que um poço

 

 

O mar não é mais que um poço de água escura

os astros só são barro que brilha,

o amor, sonho, glândulas, loucura,

a noite não é azul, é amarela.

 

Os astros só são barro que brilha,

o mar não é mais que um poço de água amarga,

a noite não é azul, é amarela,

a noite não é profunda, é fria e longa.

 

O mar não é mais que um poço de água amarga,

apesar dos versos dos homens,

o mar não é mais que um poço de água escura.

 

A noite não é profunda, é fria e longa;

apesar dos versos dos homens,

o amor, sonho, glândulas, loucura. 

 

 

 

©edward hopper

 

 

 

A solidão

 

 

Esta limitação esta barreira

esta separação

esta solidão a consciência

a efêmera gratuita fechada

concentrada consciência

esta consciência

existindo nomeando-se

fulgurando um instante

no nada absoluto

na noite absoluta

no vazio.

 

Esta solidão

esta vaidade a consciência

condenada impotente

que termina em si mesma

que se acaba

enclausurada

na luz

e que no entanto se alça

se envaidece

se cega

cobre o vazio com cortinas de fumo

furta ilusões

e nunca toca nada

não conhece nada

nunca possui nada.

Esta ausência distância

este confinamento

esta desesperada

esta vã infinita solidão

a consciência.

 

 

 

 

 

 

Um hóspede

 

 

Não é meu

não está

na minha vida

a meu lado

não come na minha mesa

não ri nem canta

nem vive para mim.

 

Somos separados

você

e eu mesma

e minha casa.

 

É um estranho

um hóspede

que não busca não quer

mais que uma cama

às vezes.

 

Que posso fazer

cedê-la para você.

 

Porém eu vivo só.

 

 

 

 

 

 

Fechada noite humana

 

 

Aqui estou entregue

À escura noite humana

Sem mais ninguém

Sem ninguém

Nem esperança de nada

Na vazia negra sozinha

Fechada noite

Sem ninguém

Sem um voto nem uma razão nem um cachorro

A sombra inteira cega

Limita indiferente

Minha solidão minha vida

Pura

De ninguém

Absorta

Em seu próprio calado abismo desapegado

Imersa no silêncio

Alcançando a plena

Fechada noite humana

Sem nada sem argolas

Sem céu sem sorrisos

Sem amor sem beleza

Onde está onde é

Onde dura permanece

Distraída

Vazia

É paz

De ninguém.

 

 

 

 

 

 

Isso

 

 

Meu cansaço

minha angústia

minha alegria

meu pavor

minha humildade

minhas noites todas

minha nostalgia do ano

mil novecentos e trinta

meu sentido comum

minha rebeldia.

 

Meu desdém

minha crueldade e minha ânsia

meu abandono

meu pranto

minha agonia

minha herança irrenunciável e dolorosa

meu sofrimento

enfim

minha pobre vida.

 

 

 

 

 

 

A noite

 

 

A noite não era o sonho

Era sua boca

Era seu lindo corpo despojado

De seus gestos inúteis

Era sua face pálida fitando-me na sombra

A noite era sua boca

Sua força e sua paixão

Era seus olhos sérios

Essas pedras de sombra caindo nos meus olhos

E era seu amor em mim

Invadindo tão lenta

Tão misteriosamente.

 

 

 

 

 

 

Quase todas as vezes

 

 

Conheço tua ternura

Como a mesma palma de minha mão.

Às vezes entre sonhos a recordo

Como se a houvesse já perdido alguma vez.

Quase todas as noites

Quase todas as vezes que adormeço

Nesse mesmo instante

Tu com teu suave abraço me confinas

Cerca-me

Envolve-me na morna caverna de teu sonho

E apoia minha cabeça sobre teu ombro.

 

 

 

 

 

 

Carta I

 

 

Como ando pela casa

Dizendo-te querido

Com fervorosa voz

Com desespero

Cuja pobre palavra

Não alcança te acariciar

Sacrificar algo

Dar por ti a vida

Querido

Convocar-te

Fazer algo por isto

Por este amor inválido.

E isso é tudo

Querido.

Digo querido e vejo

Teus olhos ainda colados aos meus olhos

Como unidos de amor

Fitando-nos, fitando-nos

Fitando teus olhos

Toda tua face

Tu

E era de vida ou morte

Estar assim

Fitarmos.

E fecho as janelas te dizendo

Querido

Querido e não me importa

Que esteja em outra casa

E que já não te recordes.

Eu estou detida

Naquele teu fitar

Naquela tua olhada

Em nosso amor nos fitando

E vou consternada pela casa

Apagando as luzes

Guardando os vestidos

Pensando em ti

Contemplando

Sem te deixar cair

Ansiando

Amando

Dizendo-te querido.

 

 

 

 

 

 

Sabes

 

 

Sabes

Disseste

Nunca

Nunca fui tão feliz como essa noite

Nunca. E me disseste

No mesmo momento

Em que eu decidia não dizer-te

Sabes

Certamente me engano

Porém creio

Porém essa me parece

A noite mais bonita de minha vida.

 

 

 

 

Nota da tradução

 

Os poemas traduzidos podem ser encontrados, no original, em: IDEA VILARIÑO. Poesía completa. Montevideo: Cal y Canto, 2009. E nos seguintes endereços eletrônicos: http://www.los-poetas.com/d/vilar1.htm |  http://www.artepoetica.net/Idea_Vilarino.pdf.

 

  

 

 

Matheus Pazos. Recifense de nascimento, criou-se no interior baiano. Atualmente, mora em Campinas/SP, onde faz doutorado em filosofia, na Unicamp. Além dos estudos de filosofia, tem interesse na literatura uruguaia do séc. XX. Escreve o blogue Crônicas Exílicas.
 
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