A uma dama que lhe pediu um craveiro

 

O craveiro, que dizeis,

Não vo-lo mando, Senhora,

Só porque não tem agora

O vaso que mereceis:

Porém, se vós o quereis,

Quando por vós eu me abraso,

Digo em semelhante caso,

Sem ser nisso interesseiro,

Que vos darei o craveiro,

Se vós me deres o vaso.

 

 

 

 

A outra freira, que satirizando a delgada fisionomia do poeta lhe chamou Pica-Flor

 

Se Pica-Flor me chamais,

Pica-Flor aceito ser,

Mas resta agora saber

Se no nome que me dais,

Meteis a flor, que guardais

No passarinho melhor!

Se me dais este favor,

Sendo só de mim o Pica,

E o mais vosso, claro fica

Que fico então Pica-Flor.

 

 

 

 

Define a sua cidade  

 

De dous ff se compõe

esta cidade a meu ver

um furtar, outro foder.

 

Recopilou-se o direito,

e quem o recopilou

com dois ff o explicou

 

por estar feito, e bem feito:

por bem Digesto, e Colheito

só com dois ff o expõe,

 

e assim quem os olhos põe

no trato, que aqui se encerra,

há de dizer, que esta terra

de dois ff se compõe.

 

Se de dois ff composta

está a nossa Bahia,

errada a ortografia

a grande dano está posta:

eu quero fazer aposta,

e quero um tostão perder,

que isso a há de preverter,

se o furtar e o foder bem

não são os ff que tem

 

Esta cidade a meu ver.

provo a conjetura já

prontamente como um brinco:

Bahia tem letras cinco

que são B-A-H-I-A:

logo ninguém me dirá

que dois ff chega a ter,

 

pois nenhum contém sequer,

salvo se em boa verdade

são os ff da cidade

um furtar, outro foder.

 

 

 

 

Ao casamento de certo advogado com uma moça mal reputada

 

Casou-se nesta terra esta e aquele.

Aquele um gozo filho de cadela,

Esta uma donzelíssima donzela,

Que muito antes do parto o sabia ele.

 

Casaram por unir pele com pele;

E tanto se uniram, que ele com ela

Com seu mau parecer ganha para ela,

com seu bom parecer ganha para ele.

 

Deram-lhe em dote muitos mil cruzados,

Excelentes alfaias, bons adornos,

De que estão os seus quartos bem ornados:

 

Por sinal que na porta e seus contornos

Um dia amanheceram, bem contados,

Três bacias de trampa e doze cornos.

 

 

Gregório de Mattos, o "Boca do Inferno"

[O maior poeta barroco brasileiro, de enorme virtuosismo formal e estilístico, foi autor de belíssimos poemas religiosos — mas também de versos demolidoramente irreverentes, satíricos, obscenos...]

 

 

 

 

 

 

Na jangada da comadre

 

Gordo dentão, inda vivo

Mandado pelo compadre,

Tocou-me da pescaria

Na jangada da comadre.

 

Contra mim embora o mundo

Todo se conspire e ladre;

Andarei de anzol e isca

Na jangada da comadre.

 

Bem metido por um rio,

Cujo fundo chamam — madre,

Feliz quem vive pescando

Na jangada da comadre.

 

Que me importa que o meu gosto

A certa gente não quadre?

Serei pescador constante

Na jangada da comadre.

 

Se de Roma aqui viesse

Pio Nono, o Santo Padre,

Também pescaria seu peixe

Na jangada da comadre.

 

 

 

 

Colcheias

 

Sempre à lembrança me vem,

A par de angústias saudosas,

Horas que tive ditosas,

Entre as coxas de meu bem.

 

Sem que nos visse ninguém,

Quais aves no brando ninho,

Fruindo quanto carinho

A terna paixão inventa,

Do ponto que o amor sustenta,

Sustentei meu passarinho.

 

Não invejava o que tem

D'ouro abastada porção,

Gemendo em doce prisão

Entre as coxas de meu bem.

 

Ora um mimo... ora um desdém...

Ora um ai... ora um beijinho...

Preso ao meu o seu corpinho...

Turva a vista, a face acesa...

No maná da natureza

Sustentei meu passarinho.

 

 

 

 

Soneto

(diálogo entre mim e uma jovem, que passava por donzela, e cujo cabaço andava sabe Deus por onde)

 

Eu –             "Eugênia! vamos nós muito em segredo,

                   Já que todos lá dentro estão dormindo,

                   Gozar no campo do luar tão lindo,

                   Deitadinhos debaixo do arvoredo?"

 

Eugênia –      "Ó! quem dera! Mas eu... eu tenho medo,

                   Porque pode a mãezinha estar ouvindo..."

Eu –             "Qual mãe, qual nada: vamos já saindo.

                   Previne a escrava; voltaremos cedo.

 

Eugênia! quer você... mas... com cautela...."

Eugênia –      "Eu não... Jesus!..." Contudo a tal deidade

Nem no cu de cagar era donzela.

 

Fornicamos três horas, à vontade;

A putinha — com cio de cadela,

E eu — com cio e tesão de burro ou frade.

 

 

 

 

(Diálogo entre um estudante e uma donzela)

 

Estudante –   Que duro é seu coração

Iaiá! Afaste esse pejo;

A menos, onde eu desejo,

Consinta-me por a mão.

Donzela –      Ah! Que é muito pedinchão!

Já não o posso sofrer...

Depois de tanto querer,

Quer o tabaco também!

Pois tome-o lá, aí o tem;

Pode apalpar, pode ver.

 

Estudante –   Iaiá, eu morro... Ó, que ninho

Tão macio e tão chibante!

Deixe nele um só instante

Meter o meu passarinho;

Eu meto devagarinho...

Donzela –      Não, não posso concordar;

Isso... só quando casar:

Antes desse sacramento,

Para seu divertimento,

Das coxas bem pode usar.

 

Estudante –   Bem, minha vida... Ó que tenras

Sensações eu vou sentindo!

Iaiá, 'stou quase me vindo...

Abra , meu amor, as pernas!

Donzela –      É contra as lições maternas;

Pecarei se tal fizer;

A barriga, se vier,

Há de custar-me pancada;

Já disse: por dentro nada,

Por fora quanto quiser.

 

Estudante –   Iaiá, somente a pontinha

Deixe meter; que com jeito

Será o brinquedo feito,

Sem risco seu, minha vida!

Donzela –      Mas que ponta? A da lingüinha?

Meta e chupe a se fartar;

Beije, sim de amor o altar;

Encoste nele o seu rosto;

Por fora brinque a seu gosto;

Dentro não; que hei de gritar.

 

 

Francisco Moniz Barreto, "o Bocage brasileiro"

[Célebre poeta e repentista baiano, adquiriu notoriedade — no caso, negativa — não por seus 'arejados' e alegres poemas eivados de romantismo e lirismo, mas por ter sido autor em 1864, assinando BMF, suas iniciais invertidas, do Álbum da rapaziada, pelo qual foi processado pelo procurador da província da Bahia. Desse episódio nasceu o sádico (ou 'sadeano') érótico-pornográfico.]

 

 

 

 

 

 

Junto a uma clara fonte

 

Um dia em que o meu gado

Pastorava no deserto,

O bosque de um monte perto

Vi de flores recamado;

Àquelle mimo encantado

Me dirigi por defronte,

E chegando ao pé do monte,

Que suspendia a ramada

Dei com uma ninfa agachada,

Junto a uma clara fonte

 

Pé ante pé, sutilmente

Nas ervanças me escondi,

E como basbaque ali

Pus-me a vê-la atentamente;

No colo lívio e luzente

Dois globos lhe admirei,

Rica anágua divisei

Suspensa à virilha sua,

E dai p'ra baixo nua,

Anália bela encontrei.

 

Nos calcanhares sustida,

Abertas lúcidas coxas,

No meio entre sombras roxas,

Negra cúpula crescida,

Com o figo parecida,

Do meio p'ra o fim rachando;

Da fenda, vermelhejando,

Pingente rubro surdia,

Na qual água sacudia,

Mimosamente banhando.

 

C'o este painel aturdido,

Em chamas de amor aceso,

Corro, chego, mostro teso,

De Vênus o cetro erguido;

Ela assustou-se. "Atrevido!"

Me disse assim que cheguei.

A seus pés me ajoelhei,

Com protestos tão extremos

Que ali logo fizemos

Uma coisa que eu cá sei.

 

 

 

 

As graças servem à mesa

 

Famosa e bela barraca

Lá no largo do Rocio

Foi, pelo racional brio,

Feito com panos de maca;

Do candeeiro à luz fraca,

Quase sempre mal acesa,

Vê-se que, com gentileza,

Um pagode ali se arvora,

Onde, com o cu de fora,

As graças servem à mesa.

 

Também por entre estas cenas

Da nação vê-se o Tesouro

Qual um menino do coro,

Vendo as partes obscenas

Daquelas machas pequenas

Que, em tão bela posição,

'Té podem fazer tesão

À criancinha inocente,

A quem, qual mestra prudente,

Minerva toma lição.

 

Vendo esta cena tão grata,

Das Musas o velho pai

Aflito do Pindo sai,

Julgando encontrar mamata;

Mal chega, as calças desata,

Tira as vestes, põe-se nu,

Das graças aperta o cu,

E, arreitado ficando,

Em um rabecão pegando,

Apollo toca o bitu.

 

Minerva, coçando o sundo,

De ensinar deixa o menino,

E agarrar quer no pepino

Do louro Apollo jocundo;

E, volvendo o cu rotundo

Com fremente arreitação,

Deixa a música de mão,

Tira o menino do colo,

E faz esporrar-se Apolo

Nas chordas do rabecão.

 

 

 

 

Pode apalpar, pode ver,

 

— Meu benzinho, que desgosto

Me está causando você;

Sua boquinha me dê,

Para mim volte o seu rosto.

— Eu consinto no seu gosto,

Porem não há de meter,

E se deseja saber

Si ainda tenho cabaço,

Com todo o desembaraço

Pode apalpar, pode ver.

 

— Aqui está! Meta o dedinho

Na cavidade do centro;

Não me carregue p'ra dentro

Que me magoa o coninho;

Não 'steja tão tristezinho

Por eu não me franquear;

Você me quer desonrar!

Olhe, eu lhe faço um partido

Se é p'ra ser meu marido,

Das coixinhas pode usar.

 

A coisa pode encostar

Por fora, não tenha susto;

E, se quer prazer mais justo

Pode os peitinhos chupar.

Em tudo deixo pegar,

Mas só faça o que eu disser,

Pois si minha mãe souber

Que você... Ai! Ai! Que dor!

Ai!... Dentro não, meu amor!...

Por fora, quanto quiser!

 

— Já vai você, minha vida,

Sua coisinha metendo...

A pomba me está doendo...

Eu já me sinto ferida;

Não me queira ver perdida...

Vá pedir-me p'ra casar...

Meu Deus!... E ele a teimar...

Olhe que eu me vou embora...

Se quiser venha-se fora,

Dentro não, que hei de gritar.

                                                             

Laurindo Rabelo, o "Poeta Lagartixa"

[Um dos nomes principais da poesia romântica, canônico avant la lettre, autor de importantes poemas (como "Dois impossíveis", "Adeus ao mundo"), ao mesmo tempo em que se constitui num dos maiores criadores satíricos de seu tempo, um verdadeiro pioneiro do gênero no Brasil.]

 

 

 

 

 

 

Taturana

 

Dos prazeres de amor as primícias,

De meu pai entre os braços gozei;

E de amor as extremas delícias

Deu-me um filho, que dele gerei.

 

Mas se minha fraqueza foi tanta,

De um convento fui freira professa;

Onde morte morri de uma santa;

Vejam lá, que tal foi esta peça.

 

 

 

 

Galo-preto

 

Como frade de um santo convento

Este gordo toutiço criei;

E de lindas donzelas um cento

No altar da luxúria imolei.

 

Mas na vida beata de ascético

Mui contrito rezei, jejuei,

Té que um dia de ataque apoplético

Nos abismos do inferno estourei.

 

 

 

 

Getirana

 

Por conselhos de um cônego abade

Dous maridos na cova soquei;

E depois por amores de um frade

Ao suplício o abade arrastei.

 

Os amantes, a quem despojei,

Conduzi das desgraças ao cúmulo,

E alguns filhos, por artes que sei,

Me caíram do ventre no túmulo.

E aos primeiros albores do dia

Nem ao menos se viam vestígios

Da nefanda, asquerosa folia,

Dessa noite de horrendos prodígios.

 

E nos ramos saltavam as aves

Gorjeando canoros queixumes,

E brincavam as auras suaves

Entre as flores colhendo perfumes.

E na sombra daquele arvoredo,

Que inda há pouco viu tantos horrores,

Passeando sozinha e sem medo

Linda virgem cismava de amores.

 

Como frade de um santo convento

Este gordo toutiço criei;

E de lindas donzelas um cento

No altar da luxúria imolei.

 

Mas na vida beata de ascético

Mui contrito rezei, jejuei,

Té que um dia de ataque apoplético

Nos abismos do inferno estourei.

                                           

Bernardo Guimarães, in "A orgia dos duendes"

[Celebrado por seu romance A escrava Isaura, e por poemas representativos do romantismo, enveredou pela sátira, e até pelo bestialógico, com uma 'desenvoltura' surpreendente mesmo nos dias de hoje (à sua época, nem se fala...) — em "O elixir do pajé", "A origem do mênstruo", "A orgia dos duendes". Cada um a seus modos e linguagens tipificam o pornográfico 'aplicado' à paródia indianista, ao cientificismo, à mitologia clássica.]

 

 

 

 

 

 

A nova sensação

 

Fui um dia encontrá-la, reclinada

Na sua chaise-longue alva e macia,

Em fraldas de camisa, mas calçada

Meias pretas, e liga que fulgia.

 

Beijei-a, de joelhos;ela ria...

Fiz-lhe cócegas, dei-lhe uma dentada;

E, vendo que ela os beiços já mordia,

Levantei-lhe a camisa perfumada.

 

Eu tinha a porra dura qual porrete

Mas lembrando um romance muito em moda,

Cujo autor lambe só — e já não mete...

 

Deliberei pintar com ela o sete:

Esqueço a foda, a boa antiga foda.

E fiz a minha estréia de minette.

 

 

 

 

A lei suprema

 

Foder é lei humana,e lei divina;

E por divina ser — é lei eterna!

 

 

 

 

O "69"

 

Eu sei de muitos que são felizes

Depois que fazem o sessenta e nove...

E sei que poucos sabem que as perdizes

São as culpadas disso.

                              — Como ? Prove!...

Exigirá naturalmente a minha

Leitora ingênua, e eu faço-lhe a vontade.

 

E por que não o galo ou a galinha,

Nem os perus?

                               — Escute, por piedade.

 

Só nessas aves é que temos visto

A posição do par ser invertida

Durante a foda.

                                 — Sim? Mas como é isto?

 

Ponha a cabeça sobre os meus joelhos

E meta na sua boca o meu caralho,

Que eu, roçando o bigode em seus pentelhos,

Com a língua no cono, aqui trabalho.

 

E ela e eu, à moda dos perdizes,

Sem invejar o Olimpo Juno e Jove

Sem sentidos, sentimo-nos felizes...

Fazendo, sem sentir, sessenta e nove!

 

Múcio Teixeira   

[Poeta romântico, polemista, político, membro da ABL, tornou-se notório no 'meio' fescenino ao publicar, em 1908, a coletânea Esculhambações, crivada de paródias a poemas e poetas consagrados.]

 

 

 

 

 

 

O pecado

 

A Anacleta ia a caminho da igreja, muito atrapalhada, pensando no modo porque havia de dizer ao confessor os seus pecados... Teria a coragem de tudo? E a pobre Anacleta tremia só com a idéia de contar a menor daquelas cousas ao severo padre Roxo, um padre terrível, cujo olhar de coruja punha um frio na alma da gente. E a desventurada ia quase chorando de desespero, quando, já perto da igreja, encontrou a comadre Rita.

Abraços, beijos... E lá ficam as duas, no meio da praça, ao sol, conversando.

— Venho da igreja, comadre Anacleta, venho da igreja... Lá me confessei com o padre Roxo, que é um santo homem...

— Ai! comadre! — gemeu a Anacleta — também para lá vou... e se soubesse com que medo! Nem sei se terei a ousadia de dizer os meus pecados... Aquele padre é tão rigoroso...

— Histórias, comadre, histórias! — exclamou a Rita — vá com confiança e verá que o padre Roxo não é tão mal como se diz...

— Mas é que meus pecados são grandes...

— E os meus então, filha? Olhe: disse-os todos e o Sr. padre Roxo me ouviu com toda a indulgência...

— Comadre Rita, todo o meu medo é da penitência que ele me há de impor, comadre Rita...

— Qual penitência, comadre?! — diz a outra, rindo — as penitências que ele impõe são tão brandas!... Quer saber? contei-lhe que ontem o José Ferrador me deu um beijo na boca... um grande pecado, não é verdade? Pois sabe a penitência que o padre Roxo me deu?... mandou-me ficar com a boca de molho na pia de água benta durante cinco minutos...

— Ai! que estou perdida, senhora comadre, ai! que estou perdida! — desata a gritar a Anacleta, rompendo num pranto convulsivo — Ai! que estou perdida!

A comadre Rita, espantada, tenta em vão sossegar a outra:

— Vamos, comadre! que tem? então que é isso? sossegue! tenha modos! que é isso que tem?

E a Anacleta, chorando sempre:

— Ai, comadre! é que, se ele me dá a mesma penitência que deu à senhora, — não sei o que hei de fazer!

— Porque, filha? porque?

— Porque... porque... afinal de contas... eu não sei como é que... hei de tomar um banho de assento na pia!...

 

 

 

 

Feito no escuro...

 

Ele era branco, e ela branca,

Ambos claros como a luz...

Casaram. Baile de arranca,

E pagodeira de truz...

 

O mais formoso dos ninhos

Era a casa, à beira-mar,

Onde, como dois pombinhos,

Foram os dois arrulhar.

 

Só eles... e um cozinheiro,

Que era o crioulo Manuel,

Crioulo lesto e ligeiro,

Obediente... e fiel.

 

Ali, Amor assentava

Os seus doces arraiais,

E o mar, gemendo, invejava

Aqueles beijos... e o mais.

 

Nove meses decorridos,

Uma notícia correu:

Escutaram-se os vagidos...

E o morgadinho nasceu!

 

Que horror! que espanto! o menino,

Filho daquela afeição,

Era belo e pequenino,

Mas... preto como carvão!...

 

O marido, ardendo em chama,

Fígado cheio de fel,

Quer, ali mesmo na cama,

Estrangular a infiel.

 

Ela, porém, que o conhece,

Pergunta: — "Você, que tem?

"Você, maluco parece...

"Reflita um pouco, meu bem!

 

"Bem lhe eu dizia, homem duro!

"Porém, você a teimar...

"Olhe! o que é feito no escuro,

"Sempre há-de de escuro ficar!

 

"Pois... o pobre pequenino...

"Feito de noite... bem se vê...

Cada qual tem seu destino....

"O culpado foi você..."

 

Tudo acaba em alegria...

Mas o Manuel, no fogão,

Malicioso sorria,

E temperava o feijão.

 

 

 

 

O vaso

 

Oh! o lindo, o lindo vaso que Celina possuía! e com que carinho, com que meiguice tratava ela as flores daquele vaso, o mais belo de toda a aldeia!

Levava-o a toda a parte: e, no seu ciúme, na sua avareza, não queria confiá-lo a ninguém, com medo de que mãos profanas estragassem as raras flores que nele viçavam. Ela mesma as regava, de manhã e à noite: ela mesma as catava cuidadosamente todos os dias, para que nenhum inseto as roesse ou lhes poluísse o acetinado das pétalas. E em toda a aldeia só se falava do vaso de Celina. Mas, a rapariga, cada vez mais ciosa do seu tesouro, escondia-o, furtava-o às vistas de todo o mundo. Oh! o lindo, o lindo vaso que Celina possuía!

Certa vez (era por ocasião das colheitas), Celina acompanhou as outras raparigas ao campo. A manhã era esplêndida. O sol inundava de alegria e de luz a paisagem. E as raparigas iam cantando, cantando; e as aves nas árvores, gorjeando, e as águas do riacho nos seixos da estrada, murmurando, faziam coro com elas. E Celina levava escondido seu vaso. Não quisera deixá-lo em casa, exposto à cobiça de algum gatuno. E os rapazes diziam: "Aquela que ali vai é Celina, que possui o mais belo vaso da aldeia...".

Por toda a manhã, por toda a tarde, a faina da colheita durou. E, quando a noite desceu, cantando e rindo as raparigas desfilaram, de volta à aldeia. Celina, sempre retraída, sempre afastada do convívio das outras, deixou-se ficar atrasada. E, sozinha, pela noite escura e fechada, veio trazendo o seu vaso precioso...

Dizem na aldeia que aqueles caminhos são perigosos: há por ali, rodando nas trevas, gênios maus que fazem mal às raparigas...

Não se sabe o que houve: sabe-se que Celina, chegando à casa, tinha os olhos cheios de lágrimas, e queixava-se, soluçando, de que haviam roubado as flores do seu vaso. E não houve consolação que lhe valesse, não houve carinho que lhe acalmasse o desespero. E os dias correram, e correram as semanas, e correram os meses, e Celina, desesperada, chorava e sofria: "Oh! as flores! as flores do meu vaso que me roubaram!...".

Mas no fim do nono mês, Celina consolou-se. Não tinha recuperado as flores perdidas... mas tinha nos braços um pimpolho. E o João das Dornas, um rapagão que era o terror dos pais e dos maridos, dizia à noite, na taverna, aos amigos, diante dos canecos de vinho:

— Ninguém roubou as flores da rapariga, ó homens! eu é que lhes fiz uma rega abundante, por que não admito flores que estejam toda a vida sem dar frutos...

 

Bob

[Assim como o Conselheiro XX, a seguir... quem será?! Trata-se de  renomado escritor, dentre os 'clássicos', até mesmo canônico, da literatura brasileira, um dos fundadores da ABL (!), tido até por dotes (literariamente) 'principescos'.]

 

 

 

 

 

As cruzes

 

As senhores grazinavam, como periquitos em roçado, em torno da mesa do chá, quando Mme. Gama Simpson se curvou, rindo com alarido, sobre a toalha de linho bordada de cegonhas vermelhas, numa escandalosa explosão de alegria.

Segurando em uma das mãos a taça de porcelana e na outra, fechadinha como um botão de rosa, uma torradinha cor de ouro, a linda criatura ria despreocupadamente, agitando-se na cadeira, quando, com o movimento do corpo, lhe saltou do colo de neve e rosa, pela janela de seda do decote, a sua custosa cruz de brilhante, fugindo-lhe para o ombro, com o risco de perder-se.

— Cuidado com a cruz, madame! — avisou, atencioso, do outro lado da mesa, o conselheiro Atanásio, que observava, sem perder um movimento do solo, as ondulações do Calvário e os arredores da Jerusalém.

D. Lisete olhou o decote, apanhou a cruz fugitiva, e, aconchegando-a à carne rosada, queixou-se, risonha:

— Também, que idéia esta, de inventar cruzes para o colo da gente!

— Vossa Excelência não sabe, então, o que elas significam, na opinião de Tabarin?

As senhoras mostraram-se curiosas de conhecer a origem daquele costume, e o antigo palaciano começou, medindo as palavras:

— Na Idade Média, quando eram deficientes os meios de comunicação de cidade para cidade, de aldeia para aldeia, de um castelo para outro castelo, os monges, que dominavam nos países barbarizados da Europa tomaram a si a incumbência de marcar os caminhos, cujas direções eram assinaladas por meio de cruzes. Ao deparar, na mata ou na montanha, um destes símbolos da cristandade, o viajante já sabia que não errara o seu roteiro, e que a estrada era, mesmo, por ali...

— Mas... — interrompeu, impaciente, Mme. Souza Batista.

— Espere... — implorou o conselheiro.

E continuou:

— Mais tarde, com o advento das modas femininas, e com o aproveitamento, por parte das mulheres, de todas as conquistas do homem, entenderam elas de utilizar o mesmo símbolo, com a mesma significação.

— A cruz no colo das mulheres quer dizer, então, alguma coisa? — interrompeu, franzindo a testa, Mme. Werther.

— Evidentemente, minha senhora! — tornou o conselheiro.

E explicou:

— Elas estão dizendo, como nas montanhas antigas, que... o caminho é por ali!

Quando o conselheiro terminou a sua narrativa, Mme. Simpson procurou a sua cruz de brilhantes, e tomou um susto. Com os seus modos estabanados, a cruz havia, de novo, abandonado o decote, e fugido para trás...

 

 

 

 

Ferrabrás

 

O coronel Otaviano de Meireles, comandante de um batalhão da Guarda Nacional, aquartelado em Niterói, era conhecido em toda a cidade pela sua valentia, e, em especial, pela sua intransigência em questões de honra.

Casado com uma das senhoras mais formosas do bairro, era tal o pavor infundido pelo seu nome, que ninguém se atrevia, sequer, a levantar os olhos para a sua cara metade. Aquele que tal fizesse, era, na opinião de toda a gente, um homem liquidado.

Foi por esse tempo, e quando mais se acentuava, em toda a praia de Icaraí, a fama da coragem do coronel, que passou a residir na vizinha capital o jovem advogado dr. Otacílio Fernandes, que não era coronel, nem major, nem capitão, nem tenente, mas fora, sempre, um dos mais famosos namoradores de Niterói.

Proprietário do prédio em que o coronel residia, não foi necessário grande esforço da parte do moço para travar amizade com o inquilino; e esta foi tão rápida, e tão sincera, que, uma semana depois, era o dr. Otacílio convidado para um almoço, no primeiro domingo, na residência do brioso militar.

Chegado o dia, lá estava, na praia de Icaraí, o jovem capitalista. Risonho, amável, dissimulando com um sorriso gentil a austeridade da sua fisionomia marcial, correu o dono da casa ao portão, para receber o convidado e fazê-lo subir até à sala, onde madame já o esperava, obsequiosa e linda, com o rosto a emergir, como uma grande rosa, das espumas de neve do seu elegantíssimo "peignoir" de linho e renda.

— O dr. Otacílio Fernandes — apresentou o coronel.

E ao recém-chegado:

— Minha esposa...

Minutos depois, sentados à mesa redonda, em que havia apenas três talheres, a palestra corria jovial, feliz, entre petiscos saborosos e sorrisos significativos, quando o telefone tilintou. Era o procurador do coronel que reclamava a sua presença, urgente, na estação das barcas, para ultimação de um negócio inadiável.

— Diabo! — exclamou o bravo militar. Tenho de ir, não há remédio!

E virando-se para o capitalista, enquanto desamarrava o guardanapo:

— Esteja à vontade, doutor. É questão de meia hora. Fique por aí; eu não demoro!

E para a esposa:

— Orminda, faze as honras da casa; eu venho já!

Mal o coronel tomou o bonde, duas taças se chocavam no ar, por cima da mesa, festejando ruidosamente aquele encontro, há tanto desejado. E de tal forma foi a saudação, que, ao reentrar em casa, o coronel foi encontrar os dois no seu gabinete, num colóquio de excessiva intimidade.

Apanhado em flagrante, o advogado pôs-se de pé, lívido. Apoiado na porta, que empurrara, o coronel encarou-o trovejando:

— Sim, senhor, sr. dr. Fernandes!

Pálido, trêmulo, o advogado lembrou-se da fama do coronel, e sentiu que chegara a última hora da sua vida.

— Sim, senhor! — tornou o militar.

E abrandando a voz:

— Você não tem medo de uma congestão?

 

 

 

 

O sapateiro

 

Sempre que as mulheres realizam uma nova conquista política, obtendo novos lugares, novos postos de relevo na vida civil, surgem de toda a parte os argumentos sobre a sua suposta inferioridade mental, como se fosse possível contestar com teorias aquilo que é contrariado pela evidência incontrastável dos fatos. Forte, ou fraca, auxiliada pelos deuses ou pelo demônio, o certo é que a mulher se tem manifestado, por mais de uma vez, superior ao homem, pela agudeza, pela perspicácia, e, não menos, pelo bom senso com que resolve determinados problemas da vida.

Um caso que me vem à memória toda vez que se levantam discussões sobre essa matéria debatidíssima, é o que ocorreu, há anos, em Baixa Verde, localidade sertaneja do Rio Grande do Norte, e que me foi contado, há seis ou oito anos, no Senado, pelo atual ministro da Marinha, o ilustre sr. desembargador Ferreira Chaves.

Andava o sr. Manoel Lourenço pelos quarenta anos de vida, dos quais vinte e cinco haviam sido consumidos em calçar de chinela e tamancos a décima parte da população local, quando lhe apareceu na oficina, para encomendar um sapatinho de cordavão, a risonha Clotildinha, meninota de quatorze anos, mais ou menos, pertencente a uma família modesta, mas honrada, residente no lugar. Respeitoso, o Manoel Lourenço ajoelhou-se no chão, marcou no tijolo, com dois riscos de faca, o tamanho do pé, apanhou-lhe a altura com uma tira de papel dobrado, e, não sabe como, ao erguer-se, estava inteiramente transfigurado de coração.

À noite, o pobre sapateiro não pode dormir. Mal fechava os olhos, e surgia-lhe no pensamento a perna morena da Clotildinha, a emergir do mistério da saia curta, de chita encamada, como se fosse o caule duplo de uma rosa em botão, cujo perfume lhe ficava eternamente vedado. E tanto o mísero se preocupou, aflito, com o caso, que, um mês depois, estavam casados, com todos os sacramentos e todas as bênçãos, a menina e o sapateiro da Baixa Verde.

Só depois de casado, porém, foi que o sr. Manoel Lourenço verificou a barbaridade que cometera. Menina ainda, a Clotildinha podia ser, pela sua idade, pelas suas maneiras e, principalmente, pelo seu físico, sua filha e, até — quem sabe? — sua neta. E era pensando nisso que a mantinha a seu lado carinhosamente, paternalmente, tratando-a como quem trata uma criança.

Quem não gostava desses modos era, porém, a Clotildinha. O Manoel Lourenço tinha ido buscá-la à casa materna para mulher, para companheira, para sócia da sua vida e do seu destino, era natural, portanto, que a tratasse como tal, fazendo-lhe participar da existência em comum, e, até, dos negócios comerciais da sua oficina.

Certa manhã, havia o Manoel Lourenço acordado cedo e, como de costume, chamou a menina, ordenando-lhe que se sentasse a seu lado, na beira da rede, para conversarem. A moça sentou-se, e conversavam os dois, como pai e filha, com os olhos pregados no teto, quando viram, de repente, correr um camundongo, um ratinho de meia polegada, o qual, passando entre os caibros e as telhas, se foi perder, em cima, nos buracos da cumeeira. Ao ver o rato, Clotildinha virou-se, de súbito, para o marido, e pediu, dengosa:

— Sabes, Manoel, que é que eu queria?

— Que é? — indagou o esposo, divertindo-se com aquela alegria.

— Eu queria que tu matasses aquele rato e fizesses um par de sapatos para mim!

O sapateiro achou graça na infantilidade da moça, e retrucou, rindo:

— Que tolice, Clotilde! tu não vês que o couro daquele camundongo não dá para um par de sapatos?

A moça encarou-o com as faces em brasa, e, pondo a cabeça no seu peito, gemeu, na ânsia de possuir o seu sapato:

— Dá, Manoel, dá!

E ao seu ouvido, com a voz trêmula:

— Olha, Manoel, o couro... espicha!

 

Conselheiro XX

[Celebrado literato de seu tempo, membro da ABL, que na segunda metade da década de 1910, periodicamente publicava em jornal uma anedota pitoresca, uma historieta espirituosa — e com tal nome e escritos tornou-se uma das necessidades diárias da cidade.]

 

 

 

[imagens ©louise bourgeois e flor,

por robert mapplethorpe]

 

 

 

 

 

 

 

Mauro Rosso. Pesquisador de literatura brasileira, ensaísta e escritor. Autor de Uma proposta de prática pedagógica (2002); Contos da roça (2002) — incluído no PNBE (FNDE/MEC) 2002; São Paulo, a cidade literária (2004); Cinco minutos e A Viuvinha, de José de Alencar: edição comentada (2005); Contos de Machado de Assis: relicários e raisonnés (2008) — finalista do Prêmio Jabuti 2008; Teoria e Crítica Literária; Contos de Arthur Azevedo: os "efêmeros" e inéditos (2009); Escritos de  Euclides da Cunha: política, ecopolítica, etnopolítica (2009); Lima Barreto e a política: os "argelinos" e outros contos (2010); Lima Barreto vs. Coelho Neto: um fla-flu literário (2010); Machado de Assis, crônicas: "A+B" e "Gazeta de Holanda" (2011); Arthur Azevedo, cenas da comédia humana: contos em claves temáticas (2012); coorganizador (com Gustavo Franco) da coletânea Machado de Assis e a economia: o olhar oblíquo do acionista (2007). Em mídia digital, Arthur Azevedo, cenas da comédia humana: contos em claves temáticas (ImãEditorial, 2012); Lima Barreto e Educação (Nuvem de Livros, 2012); Lima Barreto e a mulher (Clube de Autores, 2013). Em mídia sonora (audiobook), Contos memoráveis de Arthur Azevedo (2009). Palestrante e conferencista em universidades e entidades culturais. Escreve textos, artigos e ensaios sobre literatura brasileira para revistas acadêmicas, publicações periódicas e portais de literatura. Desenvolve projetos e programas de pesquisa literária para entidades universitárias e acadêmicas.
 
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