Rinha

 

a experiência resumida

(janela, noite, livro)

já não te convém?

 

a palavra

sem víscera

não convence?

 

que vença o melhor,

e o melhor

já tem sangue nos dentes

 

 

 

 

 

 

Guerra perpétua

 

queres que te peguem te castrem?

teu corpo-estandarte

à frente das hostes

no alto?

um dia tudo isso virá abaixo

guerra é guerra mas

é outra também

luxo desejo superstição

cantar

no dia do medo

um hino ao traidor

cavar

a dedo

a cova do senhor

 

 

 

 

 

 

17h36

 

A tarde é ouro falso

vazando para o quarto.

 

O sangue das cobertas,

coagulado, não veda

 

as janelas. Dormir,

ainda que por um triz,

 

adianta o morrer: peixe

arpoado pela luz.

 

 

 

 

 

 

Lençol

 

Dormes tão desconhecida

tão perdida e tão mais achada mas só dentro de ti

 

 

 

 

 

 

Enquanto

        

            Só sou se sendo sou sido

 

Não sei o que é ser mulher

o que é ser pedra

nem peixe em fundas águas

Saberei o que é ser homem

talvez um dia no dia

de nossa morte

Não sei o que é ser mulher

ou vidro à prova de balas

Nem o que ela quer

 

 

 

 

 

 

Fonte das abelhas

 

boa é a água da fonte das abelhas

se eu morasse ali do lado e bebesse sempre daquela água eu seria feliz

 

 

 

 

 

 

A obra, o escombro

 

Onde o

meu quarto

no hotel

posto abaixo

na praia do futuro?

 

 

 

 

 

 

Atressi con l'orifanz

 

Ânimo de argamassa

mal-sovada, andaime

de ossos rotos

 

mal e

mal

 

sustendo

o bruto corpo

 

inflável, in-

 

flamável.

 

E,

quando,

 

depois do fogo,

depois do

dilúvio,

 

a pele

escorchada

entupir

bocas-

de-lobo:

 

aperte o passo,

 

evite a polícia,

 

esqueça

 

isso

 

que eu era.

 

 

 

 

 

 

Teatro

 

 

na bolsa de incêndios no balão

cadente na balsa dos mortos

ensaiamos nosso moto-

perpétuo o teatro dos cães

no asfalto cobaias

incapazes rasgando

o cobalto a cortina

podrida o — digamos — céu

 

                   §

 

frenético fictício beleléu

que não se ensina

mesmo implorando

o trato o contrato o retrato às raias

do terráqueo rinha de mães

o escasso impõe nosso ex-voto

no altar dos santos tortos

fantoches fazendo chão

 

 

 

 

 

 

Personagens

 

 

Eduardo Stenzi

matou-se aos 18.

Não resistiu à "paixão".

Estava na moda.

 

Eduardo Strezi,

príncipe dos poetas

desdentados,

afogou-se no Adriático.

Dois ou três amigos seus

derramaram

óleo

no ponto suposto da morte

e deitaram

fogo ao mar.

 

Eduardo Sperb,

cujo fraque "foi motivo de destaque"

nas colunas sociais,

mal completou um mês de casado.

Denise o deixou por um uruguaio.

 

Eduardo Strazzi

morreu de tristeza

Assim, pelo menos, suspeita sua mãe,

que, no entanto, não diz a ninguém.

 

Edoardo Stronzo,

o idiota da aldeia,

o bobo sem corte,

o filho do delegado: que presente trouxemos para ele

da viagem?

 

Eduardo Steso

sofria de nanismo severo.

Tentou todos os tratamentos.

Desistiu.

Adoeceu

de outra doença.

Definhou.

Está desenganado.

 

Eduardo Stesso

sempre foi confundido com seu gêmeo,

Roberto.

Pensou em pintar os cabelos

ou fazer plástica.

Consultou os amigos,

que desaconselharam.

 

Eduardo Esteves:

assim se chamava o técnico

do time de futebol

do Clube de Regatas.

Era pseudônimo.

Seu nome verdadeiro: Mario Babbo Natale.

 

Eduardo Stern

dizia-se parente de H. Stern,

"e não muito distante."

Atormentava os netos com a informação duvidosa e reiterada

sempre que passava em frente à loja

de Copacabana.

 

Eduardo Stereo:

previsivelmente, DJ.

 

Eduardo Stecco,

financista, 53 anos,

diz não saber o que é crise.

No ano passado, enquanto os outros perdiam

na Bolsa, só ele ganhava. Seu segredo?

Não conta a ninguém.

 

Eduardo Esterco,

brilhante orador,

culto, simpático.

É prejudicado pelo sobrenome, que já tentou mudar.

 

Eduardo Stretto,

regente da sinfônica de sua cidade,

acredita que nomes condicionam destinos.

Escreveu um livro a respeito, mas não encontrou quem publicasse.

 

Eduardo Strezzi

recebe frequentemente correspondências em que o seu nome aparece

com apenas um z

ou, pior, com dois ss.

 

Eduardo Estéril

tem cinco filhos bastardos.

A mulher sabe de dois. Dos outros dois, desconfia. Do último, nada.

 

Edoardo Stento,

engenheiro de Milão,

tem uma casa de campo na Toscana. Está alugada

para um escritor norueguês que

há dois anos

não escreve uma linha, cansado de ser um clichê,

impossibilitado de não o ser.

 

Eduardo Stenio,

ator, desempenhou magistralmente o papel de Prospero

na última montagem do grupo Qual.

Seu nome foi cogitado para todos os prêmios.

Não ganhou nenhum.

 

Edoardo Strozzi

é talvez mafioso.

Comenta-se.

Ninguém confirma.

Seja como for,

melhor deixá-lo em paz.

Passa todos os dias

sentado à porta

do "estabelecimento".

O que é que vendem lá mesmo?

 

Eduardo Stervi,

homeopata, mudou-se para a Austrália,

onde vive sozinho. Seu sonho é conhecer

a Grande Barreira de Corais.

Pratica o montanhismo.

 

Eduardo Straz,

perdido que só.

Perdeu tudo o que tinha no bingo.

A filha não o quer ver nem pintado.

 

Eduardo Estêncil

espalhou flyers divulgando seus serviços

entre os frequentadores do Espaço Unibanco.

Passaram-se dez dias, e nenhum telefonema.

 

Eduardo Streb,

filho de alemães,

estuda no colégio canadense.

Aos quinze, fará intercâmbio

e perderá a virgindade.

 

Eduardo Esterházy

diz ser conde,

mas vive de investimentos

na indústria pornográfica.

Namorou uma atriz

que lhe passou aids.

Ele ainda não sabe.

 

 

 

 

 

 

Poetas 

 

poetas são todos uns merdas

só pensam em dinheiro

matá-los seria perfeito

não fossem a sujeira e os berros

 

 

 

 

 

 

(O dia)

 

 

então chegou o dia do nojo da poesia

 

 

[imagens ©graciela sacco]

 
 
 
 
 
 
 
Eduardo Sterzi (Porto Alegre, 1973) é escritor, crítico literário e, desde 2012, professor de Teoria Literária na UNICAMP. Publicou, entre outros, os livros Prosa e Aleijão, ambos de poesia, e Por que ler Dante e A prova dos nove: alguma poesia moderna e a tarefa da alegria, de estudos literários.