Defectivo

 

 

Profundo, eu me precavo.

Supõe que eu rua o asfalto:

um deus colérico me aguirre

(não importa onde me adverba o tempo,

sigo adequando a linguagem ao público)

 

e que haja e reaja eu no breu.

Quando me assombram, fuljo.

 

Suponhemos que eu carpa um rio por cada olho

rumo ao oceano. Sul-posição que delo do verde-mar

cujos vários corais sempre coloro de azul-piscina.

 

Se preciso urinar, imirjo.

Tirésias não, mas césio:

cego como um céu azul.

E se expludo, te aturdo,

mas jamais te bano.

 

Caso eu demola o meu teatro interior,

jamais peça o dinheiro de volta.

Se eu doo em teu bolso,

rico por dentro,

suporta.

Brindemos antes que eu brama por outra cerveja

e recrie o Um inverso.

Sei não ser belo, mas fedo.

Porém estou cagando e andando.

E mesmo tarde, me excedo.

Brando a espada contra o brando.

Que bela cagada no chinelo!

 

Pois sim, delinquo através de links.

Ou queres que esculpa meu crime em pedra?

Sou longinquo desde o zero. Nunca brinques.

Prospero na Arte, estou na medra.

 

Quando exturco

o elemento otomano do europeu em mim,

logo me returco:

escrevas a tua negra musa

de regra em preto, abusa-a na treva

até que se exaura, escrava.

Tal escravidez sem remédio, pode ser que eu abula.

 

Sou contra os guetos gramaticais.

Sou pelas palavras rejeitadas. As excluídas,

inválidas, xavecas e deformadas:

todas as belas palavras travecas.

 

                                           Sou homem e terrestre. Não paro ou pairo.

                                           Soo soar só como desejo, é meu costume.

                                           Assim, pode acontecer que puia a verdade.

                                           Se minha língua-empresa quebrar, eu falo.

 

 

 

 

 

 

caminho do sonho

 

 

estou sozinho e sigo

— acordei, entretanto continuo sonhando —

estrada acima, desde onde acaba o asfalto

 

abandono os sapatos

e sigo, estou sozinho

ora através da poeira, ora por sobre a lama

 

olho e passo adiante

uma vista e um passo de cada vez sozinho

e estou conseguindo

 

mais longe cada vez

o que ficou para trás

cada vez mais em baixo e cada vez menor

 

a subir para a frente

estando só, sonharei a seguir despertando

                                       cada vez mais longe,

 

                                       a seguir deslonjando

                                        cada vez mais perto

pois todavia te sonho seguido e menos só

 

[15 de dezembro de 2012]

 

 

 

 

 

 

Fosfenário

 

 

Coleciono sensações luminosas

que dão origem as minhas glosas

reunindo expressões de álgebra

com o esfregar de uma pálpebra.

 

Não apareça com transparências

ou fogo serão minhas advertências

pois o lustre que estou compondo

parece um ninho de marimbondo.

 

Este meu perfil está perdido

pois do seu coração partido

ela escolhe o maior caco para

poder me retalhar toda a cara.

 

A porra fóssil no cobertor preto

goza o tempo do meu esqueleto

pois é amor para além da morte

e deixa em branco teu passaporte.

 

Um polvo mal imaginado

poderia nos ter abraçado

ao deitarmos às avessas

ou é coito de três cabeças.

 

Encubro e excito os escuros meus nus

por desejar expelir outra estrofe de luz

para impregnar de manchas estes fólios

bastando apenas masturbar meus olhos.

 

 

 

 

 

 

Fel & cidade

 

 

Meu ânimo anônimo invoca um Mal

(gnomo, salamandra, ondina, sílfide)

e outros gênios bem menos em voga,

doces desconhecidos que se chupam.

Uma árvore pousa, esta ave plantada,

pica-pau do que em mim está  em pé de fuga, o que aqui se ousa,

cantando este fel sob a lua quadrada.

 

Por sob os ósculos escuros há visões e pequenos avisos.

                                                                             Beijo sorrisos,

escoro-me nos seios de moças sozinhas,

e lambo as coxas bonitas que verão do ar as andorinhas,

mas o faço tão somente em imaginação.

Mas chego a amar somente um pouco nesses devaneios

porque a namorada é ao alcance da mão.

Ando até algo vesgo de tantos passeios.

Quanto mais aguenta ver o meu coração?

Pediria adeus por caminhos mais feios

ou apenas que o diabo da beleza não me fosse tentação.

A respeitar este vinho

como se respeita o mar,

aventuro-me sozinho.

Senti cada elemental, um por um, vários,

se regozijando ao receberem de mim esta alma de todo entregue

e que eu me mande daqui antes que uma namorada me carregue.

As más línguas não teriam comentários.

Mas se minha cabecinha está em outras,

                                                                       onde é

                                                                                          o tutano da gota,

                                                                                           a alma da rocha,

                                                                                           a goela da brisa,

                                                                                          o grelo da tocha?

 

E se me livro por um instante do meu compromisso

e já viro uma nova página da minha vida,

novinha em folha, em fólio,

é porque nem uma fantasia admite um leitor omisso,

e por isso intercalo leituras

(os versos de juventude com as narrativas do espólio),

dou uma folheada, uma lida.

Sou muito dado a todo tipo de literaturas.

Quando, de costas, tal como sempre, minha última moeda de peso

                                                                         por cima do ombro esquerdo,

                                                                         lance à fonte no fundo do sol.  

Qual será meu desejo senão voltar?

Dir-me-ei, então: o desejo é voltar.

 

Até que as paixões, a Paixão — esta louca imagem —, ó, meu bem,

dobrou outra esquina — sei que nos seguia, atrás de mim, sabia —

e passou entre nós, desatando as mãos — e o que ainda nos unia,

como um homenzinho de terra a erodir nossa caverna,

como um lagarto de fogo a consumir nosso ninho,

como uma ninfa de água a diluir nosso néctar,

como uma ave de ar a sublimar nossa flor.

Pois sou alvo e fácil (elementar lamentar).

Pois sou o elo mais frágil em nossa cadeia.

Pois tudo roço naquela que me endurece:

relógios de fruta,

cachos de chuva,

gotinhas de tigre,

listras de trilho,

bondes de tango,

pernas de sempre.

 

 

[Buenos Aires, janeiro de 2011]

 

 

Lemniscantes

 

 

Meu espírito improvisa loucamente à meia luz

enquanto a carne

em delícia

sua.

O seu suor é salgado

e servido sem sifões

a ser sorvido no seio.

 

                                  Pinga se alambicando em meu palato sensu.

Esse fio de orfeurídice. Trança sem ponta ou raiz dos descabelados,

nós, os serpenteados.

Em um calor instante que liquefaz os segundos à revelia de terceiros.

E é com prazer que sentimos os sintomas dessa doença inexorável,

                                                         com cal: o envelhecimento.

Nosso movimento é inculto e ímpar,

                                                       musculoso, angular e guloso.

Essa energia que se libera ao se queimar no ar é de radicais livres.

                                                                    Alquimia do fôlego:

a própria tarde geme sôfrega na penumbra. E nos rugosa conosco,

                                                                                   dentro.

A viva alvura contra a rubra torrente,

                                                        iniciocaso de mais um ciclo,

                                                       nós de orgasmos em gosma,

                                                                            róseo visco.

Substância de pacto com que se plasmam os amores em absoluto ou mancha de fogo, projeto de filho.

Dragão da hora que cai no agora de nossa pequena morte (o além)

é esta aliança: agouroboros.

 

 

 

 

 

 

O Bem e o Mal

 

 

Imaginemos aqui este cenário:

Um poleiro sobre um aquário.

 

Vindo do cálido vento pousa um passarinho.

Emerge do líquido turvo o monstro marinho.

 

A ave tem ar de esteta, neoclassicista e graciosa.

A criatura é concreta, cubofuturista e horrorosa.

 

A primeira inspira leveza. De desenho e tamanho tranquilos.

A última transpira a crueza do cenho estranho. Treze quilos.

 

O pássaro saltita no que fita o de baixo e parece travesso.

O peixe escancara a bocarra espinhosa e se vira do avesso.

 

O alado caga na água do peixe grave.

O aquático salta no ar e engole a ave.

 

 

 

 

 

 

moinhos

 

no pequeno furor de cantar um cavalo de lama e musgo

adentrar-se-ia o fluxo lento de um crepúsculo sanguíneo

tão ou mais peludo do que este um segundo anti-horário

em seu latejar tetânico no horizonte próximo e em braile

e lá tais signos seriam sentidos

e quaisquer das palavras, radicais

pois quando afinal chegasse à tarde de ontem — era longínqua —

em nossa cabana de batata cozida

viria um vento gemer e gozar

um outro monótono outono

contra a máscara de carbono

entre os batentes das orelhas

em silêncios de paz de hélice

pois muito do que o vento segreda

sopra-o de frente e de outros lados

como a venosa raiz de trovão que rajar de mais mármore e queda

o lacunoso maciço dos desmaiados

e o seu fertilíssimo solo de dós

músculo de violoncelo tabaco

far-se-ia caldeira de locomotiva e simultânea e altruística (mente)

e por admoestações no inferno chegar-nos-ia a fumaça ao futuro

desde onde tudo eu cantar-vos-ia

mais mestiço do que um semideus

a ter a certeza de estar sonhando

quando decidir-me-ia a ir dormir

nesta cama-jangada que deriva

na platitude aparente do chão

e desde a grande barriga do céu cai um pé d'água na face da terra

pois no umbigo recomeçam perplexidades

assim que cessam as perpendicularidades

e este estio trar-nos-ia outraurora, não fosse densa madrugada,

mas poder-se-ia ainda anotar aquilo — isto — que nem foi notado:

uma sombra de seringueira sentindo

algum trigal em chamas

ou chão de trevos, treva

e corda de arco em nós de madeira

e livro de fósforo e fóssil tabuleiro

caco marajoara e flor de alcachofra

hortas mortas

ou uma dália esquálida no canteiro

e de florestas de torres de engenho

(antes fossem mesmo de gigantes)

às margens tortas do sujo rio onde

entrever-se-ia o caule-jugular

porta-voz do que sai de si

puro pó de sempre

cujo moinho

a mente

girar-se-ia somente a favor do vento

pois é a árvore do desconhecimento

 

[imagens ©andy warhol]
 
 
 
Davi Araújo. Poeta e ficcionista paulistano nascido em 1979, é autor do Livro Ruído (Eucleia Editora, 2011), publicado em Portugal. Viúvo do blogue Não Fique São, edita atualmente o redivivo Transatravés. Tem poemas publicados em uma dezena de revistas literárias. Traduziu os livros Natureza, de Emerson, e Caminhada, de Thoreau, pela editora Dracaena. Atua como ghostwriter e conselheiro editorial, além de escrever seus próximos dois livros.