Saci
Alguns
sussurravam, ali, na rua da gente, que ele era o currupira,
apelido que ganhou por causa dos calcanhares sujos, sempre
inchados. Outros o chamavam de Noia. Eu acredito que achei o
seu nome certo ao batizá-lo de Saci. Vivia mancando, arrastava
uma perna, o cachimbo aceso sempre preso à boca, escondia-se
de tudo, a cara de medo. O corpo, um fiapo.
Nos
últimos tempos deu para ficar na frente da loja de discos.
Dançava. Dançava, tivesse música ou não. Eu observava tudo da
minha janela. Diziam que tinha 27 anos, o infeliz. Às vezes,
quando o via, o desejo era rir do seu desatino. Mas não ria.
Pensava no meu pobre paizinho, nos tios bêbados lá do beco,
dos quais dois ou três se recuperavam, aceitando só água nos
aniversários. Coxinha com água, empada com água, bolo com
água, por favor, eles falavam, com sorriso estampado de quem
descobriu tarde que a vida é boa. Mas o Saci... Esse parecia
não se recuperar. Gastava uma grana de cana, o coitado. E
ainda puxava cachimbo. Viciado até a raiz do
cabelo.
Certo
dia, acordei de uma noite mal dormida com alvoroço na rua.
Abri a janela e vi a movimentação na frente da casa. Pronto, o
Saci morreu, foi o meu pensamento. Não. A mulher, sentada no
chão, chorava, tampando a cara com as mãos, como se estivesse
envergonhada do marido. Os que passavam para o trabalho
cochichavam, apontando uma frase pichada na parede caiada do
barraco do casal. Desviando das cabeças ajuntadas na cena,
pude ler as letras tortas, grandes, que anunciavam assim: "o
chupa latas".
Espichei
as orelhas para ouvir mais de perto o burburinho. Dona Daiana
Cristina, a esposa do Saci, conhecida no beco por Nega da
Cocada, senhora com quem nunca tinha trocado palavra até o
citado dia, chorava, falava dos seus dissabores.
Passei
gumex no cabelo, penteei os fios para trás, mandei a camisa de
botão pelo tronco, a calça de tergal passada com vinco,
sapatos bem apessoados, engraxados. Atravessei a rua e escutei
o choro fino da jovem madama. Ainda tampava o rosto com as
duas mãos. O choro escorria pela saia florida, as pernas de
fora. Engoli seco e pensei em estender a mão, acertando os
cabelos esfiapados na cabeça dela. Mas não me atrevi. A gente
nunca sabe. No mais, sempre primei pelo respeito na
vizinhança.
Mas,
para a minha sorte, ou azar, assim que cheguei mais perto,
percebi, ela sentiu o meu cheiro, doutor. Olhou bem nos meus
olhos. Olhar de mulher. Quase sorriu. Disse que o Saci era um
doce. Só pensava em açúcar, vivia mastigando suspiro, deitado
na frente da tevê. No entanto, há umas semanas o pobre
conhecera uns rapazes no bilhar. Ofereceram o fumo que o
coitado nunca mais largou, ela disse, chorando ainda mais
nessa parte da história. Desde então, o viciado passara a
levar tapa na orelha dos policiais do postinho, bem na subida
do morro. Era o pedágio que devia pagar para subir de volta
pra casa. Às vezes, os policiais tiravam os únicos dois
mirréis do bolso do coitado. Ele vivia entrincheirado, como se
em guerra, mudara pra chuchu, declarou a jovem madama. Não
trabalha mais, não come mais, não dorme mais, nunca mais pediu
suspiro depois da janta, nem mesmo do feijão com linguiça dos
sábados ele comentava nas conversas da semana.
Não
estava preparada para cuidar sozinha do lar, enviuvar, essas
coisas, choramingava ela, na minha presença, mais uns seis ou
sete, que ali estavam para ouvi-la. Nesse dia, meio sem
querer, passei a me afeiçoar pela mulher. Diana Cristina. Tão
nova, tão sofrida.
Eu,
da minha parte, bem que tentei não tomar partido, mas, a cada
vez que via o Saci sair, mancando, os olhos esbugalhados, o
negócio aceso na boca, eu arrumava o cabelo, colocava brilho,
espirrava a colônia e ia... Batia na porta dos dois cômodos do
casal.
Da
primeira vez, a vizinha estranhou. Sempre tão quieto o senhor,
disse. Da segunda, chegou a dar uma risada. Da terceira vez,
serviu café com rapadura. Da quarta, eu a convidei para o
baile do sábado, no morro do Adeus. Mas antes da valsa,
praticamente me mudei para a casa dos meus vizinhos. Fiquei
tarado pelo corpo da Diana Cristina, tarado de pular dentro de
um vulcão, sabe, doutor?
Acontecia,
vez em quando, de eu estar lá, esparramado na cama, no que
ouvia o Saci chegar. Passava o braço e pegava as peças soltas
pelo quarto, meias, cueca, sutiã, calcinha. Cheguei a
mergulhar para debaixo da cama. Sempre dava um jeito de
esticar a audição, com a qual ouvia as malcriações do marido
traído.
Eu
já era de casa quando percebi que a minha vizinha apanhava do
homem em forma de Saci. Todos os dias, doutor. Acontecia de eu
dormir na casa do casal, quando a besta-fera não aparecia. Eu
fazia carinho, cafuné, coçava as costas dela, com a mão bem
leve e a ponta dos dedos, como ela me pedia, essas coisas
todas de um casal apaixonado... Lavava a louça da janta,
esticava panos no botijão, colocava bala pros passarinhos na
beirada da janela do quarto. Para retribuir, ela fazia cocada
de forno, cocada queimada, com manteiga e...
A
fé, pobrezinha. Daiana Cristina perdia a fé. Pensava em vender
o barraco no morro, 20 mil, falava. Fugir dali para se
esconder do moleque do marido. Mas e eu? E a nossa amizade? A
amizade colorida? Eu me pegava perguntando para a jovem
senhora. O senhor é aposentado, ela respondia. Vive do
depósito do governo. Podemos vender os dois barracos e comprar
um canto num outro morro, um morro distante, vida digna.
Resumir
ainda mais a história, senhor escrivão? Bem, o pobre do Saci
nunca se referiu a mesmo a mim. Nem eu a ele. Sua voz eu ouvia
sempre do debaixo da cama. Parecia um moleque. Mas, em vez de
cocada, ele pedia a alma da Diana Cristina, doutor. Queria que
ela pagasse com a sua vida as suas saídas.
A
preta nunca foi de brincar. Nem eu, homem apaixonado. Admito
que, sozinho, apressei a sua morte, seu doutor. Eu comprei o
veneno. Eu misturei na feijoada. Eu obriguei o homem a comer.
Tão magrinho, eu falava. Ouça o seu vizinho. Eu dei comida na
boca dele, doutor, colherada depois de colherada. Na mesma
noite ouvi o malandro estrebuchar. Eu estava deitado no quarto
do casal, esperava a sua morte, quando ele deu o último
suspiro.
A
preta saiu correndo, quase pelada, e, em vez de anunciar
cocada, disse que um homem abria um buraco no chão da cozinha
para enterrar o corpo do finado marido.
A
preta mexe com a minha cabeça pra chuchu, doutor. O meu grau
de luxúria para com ela é alto, grande. Agora não sei se a
vejo mais. Será que se lembra do cafuné que fiz nas suas
costas? Será que, mexendo o tacho de cocada doce, vai pensar
em mim?
Tião
"Os
séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os
acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das
gerações cada vez maior, o amor da rua".
A alma encantadora das ruas. (João
do Rio)
Would
you like to buy a leather belt? You don’t speak in English? Brasil?
De tão longe? Fala brasileiro, então? Ah, português. Um cinto
de couro, molunga. Junto ouro. Me arrastei, fronteira inteira,
mapa afora, desci uma estrada rente à linha do mar, atravessei
dois rios, sem perder o horizonte dos olhos, as águas da
Índia, esse oceano à nossa frente, pastoso, que brilha quando
o dia é de sol. Sou só, não sei você. Onde estão todos os
meus, não sei mais, por isso vim para o estrangeiro, Durban,
cidade que desemboca nas águas barrentas desse mar aqui, aqui
na sua frente.
No
pequeno comércio, na junção do espelho de mar com a cidade
grande, vim vender coisas. Capulanas indianos, cofres
chineses. Sabia que essa cidade é a maior comuna indiana fora
da Índia? Pois então. Já os chineses, veja, fazem fortuna por
aqui. Vendem ovos de avestruz de resina, imitações, mulanga.
Não são caros como os ovos reais. Os ovos do país dos bilhões
são todos falsos, mas o povo compra. É brinquedo de criança, é
lembrança da South Africa, país de tantas fazendas de
avestruzes, ave rara de carne saborosa. Eu comera quando tinha
mais dentes na boca. Hoje, me sobram apenas alguns. Por isso,
sou mais dos manjares.
Não
sou da China, não sou da Índia, sou dali, ali de cima, vim,
queria ver com os meus olhos, tinha de vir um dia. Em Maputo,
na Beira, falam de Durban. Afortunada vila, essa esquina do
mundo, molunga, onde todos se encontram um dia, gente do
norte, do sul, do leste e do oeste. Esses prédios na sua
frente encerram fortunas. Desde que cheguei, eu os miro. Estou
aqui há umas dezenas de luas. De início, vendi ovos de
avestruz coloridos, uns com haste, outros com fichário, que
usam como se fossem cofres. Mas eu mesmo nunca usei o objeto
para guardar os randes que junto. A moeda local. Não pesa no
meu bolso. Tenho furos pelas pernas, a calça, a mesma do dia
que em cheguei, luas atrás.
Foi
um chinês falso que vende coisas à beira-mar a me apresentar o
pequeno comércio na ponta dessa terra. Combinamos. Ele me
passava os ovos coloridos, verdes, amarelos, uns com o mapa da
África, todos conforme os ovos verdadeiros. Eu armava uma
palha pelo chão e oferecia ovos, como se fossem de verdade,
saídos dos avestruzes. As crianças gostam, molunga. Você tem
crianças lá no Brasil? Mas isso tudo foi antes. Arrumava a
esteira aos meus pés, nas pedras da faixa de areia, e, o corpo
parte deitado, outra sentado pelo chão, via passarem pés e
pernas, mulheres, homens, crianças, via também passarem pneus,
rápidos. O transito aqui é do lado contrario, falam que é
assim também nas Europas. Em seu país é dessa forma
também?
Mas,
o que dizia é que via os passantes pelas pernas, gente
apressada, poucos tinham tempo para as palavras. Inglês
aprendi para necessidades, inglês ensinado pelo chinês dos
cofres. Com ele soube da arte de criar frases, tudo para
atrair olhares às mercadorias, aos ovos. Meu inglês melhora a
cada dia, molunga. Hoje falo quase como se fosse gente daqui,
mas somente as frases aprendidas, certo? A maioria começa com
Would you like to
buy e depois falo o nome da coisa de ocasião. Vendi alguns
ovos, menos de uma centena, acredito. Dos tantos passantes,
algumas crianças paravam. Eu deixava os pequenos se servirem.
São ovos de verdade, os únicos verdadeiros de toda a África,
não pode derrubar no chão, senão quebra, são frágeis, escuta o
barulho. Aproximava o ovo do ouvido da criança e dava uma
batida rápida no objeto, com o verso dos dedos. Barulho de ovo
de verdade, ouviu? Repetia a história dez, vinte vezes por
dia. A língua cansava. Às vezes um pai resolvia agradar o
pequeno, somente às vezes. Um dia me enrolei ao tentar dizer
que, com um ovo de avestruz é possível fazer uma batida para
uma dezena de pessoas. Basta colocar óleo de capivara na
caçarola. Sabia disso, molunga? Às vezes, quando o inglês saía
sem erros, tentava sorrir para os fregueses, mas me faltam os
dentes. Então não sorria. Para você que diz a mesma língua, eu
mostro. Olha. É por isso que eu estou aqui, molunga. Os
dentes. Já percebeu o quanto exibem belos dentes de ouro nessa
terra? Dentes reluzentes, como brilham. Pois
então.
Problema
é que vendia, no máximo, cinco, seis ovos, numa tarde. Um ovo,
cem randes, dos quais eu tocava em 15 moedinhas. Isso dava
para o álcool, no fim do dia, mais um pedaço de pão mole. E
isso me enchia a barriga. Ovo mesmo, naquela época, minha boca
não viu, nem o estômago.
Quando
percebi que não pagaria nem o tempo de ficar na fila do
dentista, resolvi mudar de profissão, molunga. De início,
acreditei em adestrar leões-marinhos. Quem deu a ideia foi um
turista. Vira, na outra ponta da praia, um velho a colocar
sardinha na própria boca e depois incitar o bichão a pegar o
almocinho. Fui lá, vi com os meus olhos. Era bonito de se ver.
Sentado, ele passava a mão no bicho gordo, como se fosse seu
próprio filho. Antes de meter o peixinho na boca, falava para
os turistas: quando Monda arrastar o corpão para perto de mim,
quer dizer que vai pular, então, senhores, sejam rápidos,
batam a foto! Mas, antes, coloquem uns randes dentro do meu
chapéu. O velho me olhou feio. Deve ter percebido que eu não
tinha cara de turista, portanto não ia encher o seu chapéu com
meus poucos randes. De olhar atravessado, falou bem alto, fez
questão, disse que tinha permissão, na orla, para fazer o
trabalho. Cuidava sozinho dos bichos de toda a South Africa.
Todos os dias, há vinte anos, passa pela beira do mar a chamar
leões-marinhos. Resolvi não perturbar o negócio do velho. Ele
ia arrumar conversa para o meu lado, caso fosse balançar
sardinha na orla, no intuito de chamar os bichos, de dentro da
água. Também não saberia adestrar bicho nenhum. Não tenho nem
mesmo sorriso para a foto. Como faria quando os turistas
armassem suas câmeras, para o beijo com o bichão?
Mesmo
assim, me despedi do chinês dos ovos. Não aguentava contar a
mesma história tantas vezes. Saí por aí, no intuito de
encontrar outra profissão, guardador de bicicletas, guardador
de cadeiras, guardador do que fosse. Foi quando caíram nos
meus braços capulanas indianos, que poderiam ser usados para
cozer roupas, calças, camisas. Eu próprio cheguei a pensar em
ter novas vestes, me vestir como um indiano, colorido,
dourado. Amanhecia e eu estendia os capulanas no chão, artigo
fino, todos verdadeiros, fios de ouro, vindos da Índia, de
navio. Inclusive, aquele navio que passa, lá no fundo do mar,
deve vir da Índia, deve trazer mercadorias variadas, não
somente capulanas. Vendia, vendia, vendia. Falava que eram
sedas. Depois, quando os negócios não iam tão bem, passei a
desfazer as sedas, para juntar os fios dourados. Quem sabe
poderia amalgamar tudo em formato de dentes, os malditos
dentes. Cheguei a perguntar pelas ruas onde poderia ver um
dentista, mas o dinheiro que entrava pelo bolso das calças,
continuava a escorrer pernas abaixo. Os fios dourados não me
eram suficientes. Não consegui nem mesmo vestir novas camisas,
coloridas. Muito menos arrumei sorriso novo. Quando decidi
mudar de ramo, me apareceu um vendedor de cintos. Deixei um de
lado para o meu próprio uso, molunga. Este que agora tenho na
altura da barriga, cada vez mais seca. São os melhores de toda
a África, cintos feitos em couro de tatu. Sinta na mão, como é
firme. Duram uma vida. Sugiro que leve uma maleta cheia para o
seu país. Fale por lá que comprou de um sujeito que, se ainda
não ri por aí, é porque faltam dentes na sua boca, os dentes
que faz questão de, um dia, conseguir.
...
Em
meio aos meus pensamentos sobre civilidade e sobre a afronta
pública que os erráticos representam, lembrei-me da feira
livre aos domingos. Todo santo domingo estava eu lá com a
minha avó, eles também, os asilados. Na época, domingo era
dia de passearem. Após assistirem à missa na capela do
abrigo, davam-se as mãos, acredito que para não se perderem
entre as barracas. Sempre vigiados por duas ou três
enfermeiras, podia ver uma dezena deles, todos formavam fila,
e então passeavam, se misturando com o povo da cidade, as
pessoas abriam passagem para ver o desfile, cochichavam. Eles,
os internos, distribuíam sorrisos com as caras meio tortas,
eram sorrisos meio desconexos, sem dentes. Um repórter às
vezes fotografava o passeio, principalmente no fim do ano.
Podíamos então ver, nas páginas do jornal local, em fotos
branco e preto, meio apagadas, donos das barracas de pastel
oferecerem quitutes aos errantes. Minha avó agarrava no meu
braço miúdo quando avistávamos a passeata. A curiosidade.
Ficava aguçado ao ver a turma, ao perceber que eles se
aproximavam. Ela, minha avó, tapava meus olhos com uma de
suas mãos, dizia que eram as pessoas sem-rumo, os desviados
do caminho, pessoas que andaram fora dos trilhos, rebeldes.
Ela não queria que eu os visse. Mas eu sempre encontrava uma
fresta entre seus dedos gordos para observar a trupe. E
mesmo quando ela apertava a palma da mão contra meus olhos,
espichava a audição para escutar o alarido que faziam. Uns
pediam refresco de tutti frutti, havia sempre aqueles que
gritavam, os que choravam, alguns tentavam falar, sem
conseguir colocar ordem nas palavras. Mesmo assim, ouvia quase
sempre as canções de ninar que entoavam, algumas vezes
músicas da igreja, as mesmas das procissões de datas santas.
Era um canto desencontrado o deles. Enquanto parte se dedicava
à primeira estrofe, outros já estavam no verso final. Às
vezes, eu os ouvia cantar músicas diversas, cada voz um
canto, canções que depois ficavam na minha memória. E a
cantoria era vez ou outra entrecortada por uma voz que
anunciava tomate mais barato, por um fulano que pedia caldo de
cana, uma frase sobre a novela das oito. Houve uma vez que
escutei uma voz feminina, adulta, que clamava por uma chupeta
de plástico. Dessa vez, tentei unhar as mãos da minha avó
para ver o rosto pertencente àquela voz, mas suas mãos eram
de ferro, ela pressionava os dedos no meu rosto, enquanto eu
duelava com minhas mãos pequenas, em vão.
Diziam
à boca pequena, ali mesmo, na feira, que os internos com
desvario atestado em papel acabavam ganhando um quarto no
lugar, o asilo, e que lá permaneciam por anos seguidos,
décadas. Muitos comentavam que eram dissimulados, que antes
de serem recolhidos ao abrigo, conversavam com passarinhos na
praça, tomavam banho na fonte luminosa, e que havia
ainda os mais infames, que se regalavam em festas
secretas, regadas à cachaça, madrugada adentro, no cemitério
da cidade.
Olhei,
observei o homem ao meu lado e tentei encontrar nos seus
traços grosseiros uma das caras que vira entre os vãos dos
dedos da minha avó. Mas não, não reconhecia traço algum em
meio aos flashes das manhãs antigas de domingo. Os passeios
que, com o tempo, deixaram de acontecer, conforme a
adolescência se apresentava a mim. Já era grandinho, eu me
lembro, quando minha avó comentou que os loucos não
visitavam mais a feira livre. Um castigo aplicado aos internos
logo depois de um deles fugir enquanto desfilava para a
população num 7 de setembro, em solenidade, juntamente
com a fanfarra municipal. Aproveitara a confusão da festa e,
aos olhos de toda a cidade, correra para nunca mais voltar,
disse minha avó, com certo ar de satisfação. Eu imaginei o
tal louco correndo ao som de cornetas. A multidão assustada,
abrindo espaço para deixar o fugitivo correr para longe, bem
longe.
Olhei
mais uma vez, atentamente, para os traços do homem ao meu
lado, avaliando se ali havia loucura escondida. Segurei a
visão na figura disforme e passei a criar hipóteses sobre a
forma em que a demência se apresenta, nos gestos do corpo, na
voz, em falas desconexas. Sem deixar transparecer minhas
dúvidas, perguntei ao estranho quanto tempo havia morado no
asilo. Ele voltou a dizer: algumas luas. Sua voz, suas
palavras faziam com que minha memória mais íntima
aflorasse, ali, no banco da praça.
O
asilo, o asilo. Apesar de nunca ter visitado o lugar maldito,
sabia que corriam histórias sobre os procedimentos do
refúgio fundado há mais de 50 anos, quando os Ferreira de
Oliveira transformaram um casarão de diversas alas na
hospedaria, uma promessa feita quando o caçula da família
virou as costas para a cidade, e, descalço, desapareceu
estrada afora para nunca mais voltar.
Pelo
que eu saiba, sempre que se toca na palavra asilo, por aqui, a
história do menino é citada. Até a mocinha da biblioteca
já tentou engatar um papo sobre o caso. Mas não dei corda.
Muitos falam, no entanto, não há uma única pessoa na
cidadezinha que saiba detalhes do sumiço, nem mesmo o nome
verdadeiro do fugitivo as pessoas se lembram, pelo que pesquei
outro dia na fila da padaria.
Do
meu banco, coloquei-me a divagar sobre o moço de família que
se tornou forasteiro por puro capricho. Cruzei as pernas,
deitei o livro nas coxas, e ao passar os olhos na figura à
minha frente, dos pés a cabeça, me lembrei da primeira vez
que ouvi o caso sobre o rapaz dos Ferreira de Oliveira. Eu era
menino e naquela época antiga era praxe entre a criançada
local mexer com os asilados através das janelas largas do
casarão. Víamos a locaiada, como nós os chamávamos,
através das grades que separavam os quartos da via
pública.
Nunca
me aproximava muito, a figura da minha avó aparecia, no
pensamento, sempre que estava nas imediações do lugar, o
freio que ela colocava sobre meus olhos, citando os
desregrados de toda sorte que viviam ali. Não sabia formular
opinião, mas tinha medo dos tais desapegados, gente que
loqueava entre quatro paredes, como ela falava. Era o mais
novo da turma dos meninos da rua, esses muito mais corajosos
do que eu. Nos fins de semana, nos dias de férias, eles se
aproximavam das janelas escancaradas do casarão. Minhas
pernas cambaleavam, às vezes eu tinha piriri, e, quase
sempre, recuava até a esquina, com metade do rosto à mostra.
Os colegas se colocavam debaixo das janelas para insultar os
moradores. Louco-do-Pé-de-Elefante, Medeia-Macumbeira,
Orelho-de-Porco, Porco-Espinho,
Homem-Torto-com-Corpo-de-Biscoito, Zé-Piolho,
Toninha-Come-Parede, Medeia-Fuça-Lixo eram alguns dos apelidos
que os asilados ganhavam da meninada. Depois de invocar os
doidos, eles corriam para bem longe, pois, ao perceberem a
brincadeira, os internos atiravam peças de roupa íntima,
bonecas sem braços, abacates podres, canecas de xixi e bolotas
de merda, por entre as grades. Isso os colegas diziam, eu,
sinceramente, nunca vi atirarem nada. Ao ouvir os nomes
escabrosos que saíam das bocas dos vizinhos, eu corria, era o
primeiro a zarpar, para bem longe, ofegante.
[Trecho
do romance Um lugar para se perder. São Paulo:
Dobra-Literatura, 2012]