A pele do tempo 
         
        Nasce de um  sopro uma bolha 
        um nada        e se faz 
        se forma       e sobe         e voa 
        e vive e  voa 
        leve 
        e voa e  vive 
        um momento 
        o sopro         o vento
         
        A pele a  película 
        a tênue  fronteira entre o sopro de dentro e o sopro de fora 
        a pele envelhece 
        transparece 
        a morte  iminente 
         
        No lento        o instante 
        o meio  instante 
        o menor  instante e o menos 
        e o mínimo 
        e o ínfimo      e o mínimo 
        e o átimo
         
        O tempo de  fora já indo 
        o tempo de  dentro cortado em miúdos 
        a cada  miúdo respira 
        e cada miúdo respira 
        resiste 
        reside 
        no dentro
        por dentro 
        o dentro
         
        Até que a  pele se rompe 
        e o tempo  de dentro se espalha pelo tempo de fora 
        e a bolha  que é pele 
        espelho  entre o dentro e o fora se espraia 
        e a esfera  se torna apenas espera 
        uma pausa 
        uma síncopa 
        vida que  nunca se encerra.
         
         
         
         
         
         
         
         
        Desface 
         
        na dor
        a causa 
        faz-se a  face 
        a face  clara 
        sem máscara
         
        mas 
        cara  máscara 
        da marca da  dor 
        máscara dor
         
        atrás da  máscara 
        nada 
        nem face 
        nada 
        apenas  máscara cara 
        sem filtro  disfarce 
        pensa pelo  fio fino 
        frio da dor
         
        máscara  cara 
        de dor em  dor 
        desfaz-se 
         
         
         
         
         
         
         
         
        Pássaro preso 
         
        pássaro  preso por tempos no fundo da gruta garganta
        preso no nó  na garganta engasgado
        pássaro  preso
         
        e a boca destrava
         
        e o peito  palpita e a pupila dilata e agora é a chance
        e a boca se  abre e a língua se arma e agora é a chance
        e a boca se  abre e agora é a chance
        e a boca se  abre e o pássaro
         
        e o pássaro
        não sai
         
        o pássaro
        não sabe 
         
         
         
         
         
         
         
         
        Certa música minimalista 
         
        quanto mais  eu ouço 
        mais afoito  fico
        mais me  atiça 
        o viço 
        eriço
         
        isso é som  de coisa em cio 
        é som de  coito 
        de bicho em  cima de bicho 
        de bicho  comendo outro 
         
         
         
         
         
         
         
         
        Predileta 
         
        preta  esfera 
        explode se 
        se morde
         
        preto  expele 
        o avesso 
        pela fenda  exposta 
        (porta) 
        agora 
        fora:
         
        branco
         
         
         
         
         
         
         
         
        Ato pronunciado  
        (tema e  variações)
         
        I.
        no anúncio  do
        silêncio
        saltaram da  língua
        suicidas:
        nunca mais  foram
        as últimas
         
        II.
        no anúncio  do silêncio
        suicida
        saltou da  língua:
        jamais
        foi a  última
         
        III.
        no anúncio
        (o  silêncio)
        a língua
        expulsou
        assassina:
        não
        foi a  última
         
        IV.
        sem anúncio
        expulsou
        a língua
        assassina:
        silêncio
        fez a  vítima
         
         
         
         
         
         
         
         
        Voz de madeira 
         
        Não era  rouca e chorosa
        a voz do  chão de madeira.
        Quando  moço, o chão dizia
        frases  curtas, com voz seca;
        proferia  monossílabos
        num tom de  quem tem certeza.
         
        Era  dedicado ao ritmo,
        mas ainda  não havia
        - dadas as  limitações
        dessa  maneira concisa -,
        atingido a  condição
        de  exprimir-se em melodias.
         
        Isso o chão  conquistaria
        com o caminhar  da idade
        (cargas  afrouxando as fibras).
        Umas  décadas mais tarde,
        finalmente  notaria
        que a voz  também é arte.
         
        Cada qual  de uma maneira
        - o peso  dos pés e o tempo –
        foi do chão  um professor:
        as  sutilezas do lento,
        as  cicatrizes da dor;
        enfim, um  outro andamento.
         
        O tempo e  os pés que pisaram;
        vida que se  fez um fardo;
        tudo o que  fez desse piso
        um sujeito  amargurado
        fez também  um chão cantor:
        velho chão  que canta um fado. 
         
         
         
         
         
         
         
         
        Memória de chão 
         
        o chão de  madeira
        manteve nas  costas
        a casa de  pedra
        por quase  três séculos
         
        a casa  faliu
        (mas o chão  se nega
        a partir  dali)
         
        agora  sustenta
        somente a  lembrança
        de pés que  pisaram
        (já não  range mais)
         
        sem pés sem  paredes
        sem portas  janelas
         
        apenas ao  vento 
         
         
         
         
         
         
         
         
        Parla! II 
         
        Como de um  bloco de mármore,
        mármore  negro esculpido,
        eis que  surge a bela forma
        de um homem  feito menino.
         
        Ainda que  feito pedra,
        da pedra  não herda o frio;
        antes, da  pedra a dureza,
        digo,  firmeza, e o brilho.
         
        E, mais que  brilho de pedra
        (brilho  desse de ser visto),
        tem brilho  que vem de dentro,
        como só  pode um ser vivo.
         
        E mais,  pois a qualidade
        de brilho  vai além disso:
        é brilho  que vem do fogo,
        que só tem  quem é nascido
         
        não da  pedra, embora à pedra
        seja um  tanto parecido,
        mas de  outra matéria-prima:
        amor; do  amor ele é filho. 
         
         
         
         
         
         
         
         
        Sobre esta pedra 
        para  Donizete Galvão
         
        Por que  perguntar à pedra
        pelo que  não é dela?
         
        A mover-se  não se presta;
        a pedra é  pura espera
        e por  parada não erra;
        por fria  nada gera.
         
        Essa  natureza pétrea
        o que quer  do poeta? 
         
         
         
         
         
         
         
         
        Parla! 
         
        o falar
         
        uma coisa
        de uma  coisa
         
        é
         
        uma coisa
        é uma outra
         
        coisa
         
         
         
         
         
         
         
         
        Cortinas - ótimos preços 
         
        o foco num  ponto
        um pouco  aquém
        dos olhos  do outro
         
        pupilas  abertas
         
        nas janelas
        cortinas 
         
         
         
         
         
         
         
         
        Perguntas 
         
        e se isso
        era sonho
        em que cor
        esmorecia
         
        em que  ponto
        acordaria
        no antes
        do sonhar
         
        - onde  principia –
         
        se do sonho
        acordasse  em cor
        que quer
        a luz do  dia
         
         
         
         
         
         
         
         
        Palavra cheia 
         
        o sábio  prescinde
        da palavra
         
        lua
         
        conhece a
        sua
        (lua
        da lua)
        natureza
         
        o sábio  descarta
        a palavra
        um dedo  apontado
        para
         
        a lua
         
        o poeta
        o tolo  poeta
        não  apalavra
         
        para todo  poeta
        somente há 
        palavra
         
         
         
         
         
         
         
         
        Mãos frias 
         
        corredor  estreito 
        escuro não  vê
         
        que sim eu  queria 
        quando a  mão enfim 
         
        encontrou  ainda 
        e sempre  seria 
         
        tímida bem  tímida 
        nem sei se  sorria