No final da vida, o poeta Roberto  Piva estava  confinado em seu apartamento no bairro de Santa Cecília, em São Paulo, sofrendo terrivelmente com problemas de saúde, precisando, inclusive, da solidariedade dos amigos para custear um dispendioso tratamento médico. Um poeta que nos anos 80 preconizava a fuga para as praias e montanhas; que nos anos 70, ficou num longo silêncio, sem nada publicar e que nos anos 60 andava alucinado pelas ruas de São Paulo.

 

O mundo criou um antídoto contra poetas. Piva sentiu na pele esse desprezo, ainda mais naqueles últimos momentos: sem grana, sem saúde e ainda sendo processado por não pagar o condomínio do prédio. Nesta entrevista, concedida em meados dos anos 80, Piva estava com a sua metralhadora verbal apontada para tudo e todos. Era tido como poeta maldito e marginal. Rótulos que o próprio Piva desprezava. Cansou de repetir: "Sou um poeta marginalizado, não marginal".

 

Piva me recebeu de uma maneira simpática e educada. Estava ouvindo jazz num volume bem alto, mas abaixou o som para que eu pudesse gravar a entrevista. Ajeitou-se numa poltrona macia e tranquilamente foi demolindo todos os mitos que cercavam os anos 80. "Vivemos um retrocesso. O que diz atualmente um cantor de banda de rock? 'Sou casado e não tomo drogas'. Ele faz profissão de bom mocismo".

 

Até o fim da vida, Piva vivenciou a sua poesia e a sua própria rebelião. Mesmo gostando de ser lido e reconhecido, em nenhum momento, fez concessões ao status quo. Ao contrário do que a maioria pensa, o poeta não era um boêmio. Dormia e acordava cedo. E tinha uma profunda ligação com a mãe, mesmo quando blasfemava contra a família.

 

Roberto Piva morreu em 2010, aos 72 anos. [Paulo Mohykovski]

 

 

 

 

 

 

Paulo Mohylovski - Como surgiu a poesia dentro da sua vida?

 

Roberto Piva - Quando garoto eu era um delinquente, uma pessoa que vivia em festas, em brigas, drogas, arruaças e daí para a poesia foi um caminho natural. A poesia é o único fenômeno, junto com o jazz, que é fundamentalmente anarquista. Não o anarquismo libertário, mas o anarquismo "suicidário". A rebelião poética está muito próxima da rebelião humana no seu sentido mais amplo. Isso não tem nada a ver com marxismo-leninismo, com nada disso. Tudo isso são sinônimos de conformismo. Você quer país mais conformista do que Cuba? Marxismo é sinônimo de sucata daquilo que sobrou das franjas da sociedade industrial. Aliás, fiquei muito impressionado com um livrinho de Kropotkin, em que ele mostra que toda crise não é uma crise do mundo capitalista, mas é uma crise do sistema industrial. O modo de produção industrial não dá mais, esgotou. Já poluiu tudo que tinha que poluir. São florestas inteiras que só daqui a cem anos serão recuperadas; a camada de ozônio já dançou; já começou o degelo das calotas polares. A poesia nasceu de toda essa confusão. Depois eu fui lendo. Li Dante, que era um nômade, um homem maldito, isolado da própria pátria, Florença. Li os beatniks, os futuristas, os dadaístas.

 

 

PM - Quer dizer que, para você, a rebelião é inerente à poesia?

 

RP - Ah, sim! O que você está acostumado é a essa riminha safada, de véu e grinalda. Poesia sem corpo, que se faz agora. Mas isso é coisa de mídia, de publicidade. Tudo isso é uma produção de classe média. Pasolini cansou de denunciar essa poesia acadêmica. Isso não tem nada a ver com essa franja selvagem da periferia de São Paulo, onde os garotos punks vão invadir a civilização, com garras de leopardo envenenadas, os corpos pintados e uivando pelas avenidas.

 

 

PM - Existem outras formas de rebeldia na nossa sociedade, além da rebeldia dos garotos punks?

 

RP - Paulo, eu quero deixar uma coisa bem clara nesta entrevista: o destino da raça humana não me interessa. Meu amigo Luis Carlos de Barros, que dirige a revista "Arte e Pensamento Ecológico", me convidou para escrever sobre Chernobyl e sobre o leite contaminado. Eu quero mais que o leite se contamine com Chernobyl. Uma civilização que produz uma Chernobyl tem mesmo que tomar leite contaminado. Eu não quero escrever mais nada que auxilie a raça humana. Eu quero contribuir para a derrocada da raça branca no planeta. Estou a favor desse cara da Nigéria que ganhou o premio Nobel de literatura: acabar com a negritude, o que importa agora é a "tigretude". O tigre não fica falando: ele ataca!

 

 

PM - Você sempre teve São Paulo como tema e agora está com preocupações ecológicas. Você mudou a sua linha de pensamento?

 

RP - Claro! Eu era urbanóide. Era poeta do urbano, essa coisa babaca, horrorosa. São Paulo é uma vasta caixa registradora em franca decadência. É uma cidade feia, destruída. Você vê "Ginger e Fred" do Fellini, aquela sujeira de Roma, aquele tecnologia de sucata. No fundo, a televisão é uma mídia de sucata. Quando termina a luz, todo mundo fica em silêncio, com uma vela na mão, como o homem da caverna. A partir daí você entende aquela citação do Freud: "Quando estudamos o inconsciente do homem moderno, vemos que o homem primitivo é o nosso contemporâneo". A sociedade exerce repressão sobre o individuo, que exerce repressão sobre si mesmo. Essa civilização, que Artaud chamava de "civilização de palha", tem que ser posta a fogo.

 

 

PM - Então, você está dizendo que houve um retrocesso da década de 60 para cá?

 

RP - Imensamente! Outro dia, conversando com Zé Celso, no Teatro Oficina, notamos como os anos 80 pareciam muito com os anos 60. Porém, como disse o Zé Celso, sem os espelhos que nós tínhamos nos anos 50: Marlon Brando, Chuck Berry, James Dean, Elvis Presley. Você vê o cara de uma banda de rock atualmente, como ele se apresenta? "Sou casado e não tomo drogas". Ele faz profissão de bom-mocismo.

 

 

PM - Por que o retrocesso?

 

RP - As coisas estão chegando muito tarde e muito filtradas. A classe média tem muito medo das coisas. Ela não tem nem o delírio epifânico da macumba da periferia e nem a imaginação barroca de uma parte da burguesia. Eu digo "uma parte da burguesia", porque a burguesia brasileira é a mais atrasada do mundo. A burguesia brasileira não tem visão de nada que vai além da esquina da sua casa. Através da Rede Globo houve uma infiltração generalizada de ideologia de classe média, com seus valores de contenção, prudência e segurança.

 

 

PM - A sociedade não estaria vivendo um período de anarquia, devido a esta confusão de valores?

 

RP - Vivemos nada. Vivemos o mundo mais policiado. A cidade é o espaço da polícia. É aquilo que os ecologistas chamam de espaço linear. É o mundo dos espaços contidos, onde tudo é proibido. E ao mesmo tempo um acumular de lixo que não acaba mais. São espaços fechados, onde o ar não circula. Eu me lembro de uma frase de Nietzsche: "Não vou à igreja, porque lá não tem ar puro".

 

 

PM - Quais são os seus espelhos na década de oitenta?

 

RP - No momento, Roberto Biccelli, João Silvério Trevisan, Glauco Matoso e Zé Celso. São meus espelhos, inclusive, para não ficar louco. A coisa está muito careta e muito opressiva. E tem gente que tem até saudades dos militares, que era uma época até menos careta do que essa. Por isso que eu digo: a poesia de Lautreamont tem que saltar fora do livro e deixar a realidade em completa desordem.

 

 

PM - Como se deu seu contato com os poetas de uma linguagem mais delirante, como os surrealistas?

 

RP - Através de leituras, de estudos, de tudo isso. O importante é penetrar no sangue. É aquilo que dizia Vicente Ferreira da Silva, que há dois tipos de leitores: um que acumula informação, que não serve para nada; e outro, que transforma aquilo que leu em sangue, em vida. Tudo aquilo que eu li transformei em vida. Inclusive, seguindo a orientação de Octavio Paz: "Poesia é subversão do corpo". Daí, todas as formas de amor, todas as formas de erotismo, todas as formas de relacionamento, todas as formas de contestação...

 

 

PM - Você ainda se utiliza de métodos surrealistas de composição de um poema?

 

RP - O surrealismo me influenciou tangencialmente. O que me influenciou foi a postura diante da vida, ou seja, não separar poesia e vida. Mas eu recebi influência da poesia clássica, de Dante, de Villon, da poesia japonesa, dos expressionistas alemães que eu amo — como Georg Trakl e Gottfried Benn — da poesia feita por índios, da poesia oral brasileira, relatadas por Luís da Câmara Cascudo... Todo esse magma poético introduzi na veia.

 

 

PM - A poesia é uma salvação ou é uma perdição?

 

RP - Concordo com Henri Michaux: "É para a minha saúde".

 

 

PM - Gostaria  que você me falasse um pouco sobre o poema "Visões de São Paulo à Noite".

 

RP - Escrevi este poema num guardanapo no Barbazul, que tinha na Avenida São Luís, em 1962. Escrevi comendo um sanduíche, tomando guaraná, vendo as coisas que estavam passando na minha frente, mergulhado no olho do furacão.

 

 

PM - Você continua sendo uma "solidão nua amarrada a um poste..." (verso do poema "Boletim Mágico")?

 

RP - O conceito de solidão muda muito. Hoje em dia, eu tenho mais interlocutores do que nos anos 60. Essa tribo selvagem, dionisíaca e transgressora aumentou, mas se comporta como os primeiros cristãos, ou seja, vive nas catacumbas das cidades. É uma tribo que não está na mídia, nem na moda, mas está na vida. 

 

 

 

Nota

 

A versão integral dessa entrevista pode ser lida no livro Encontros: Roberto Piva, coletânea de entrevistas do poeta organizada por Sergio Cohn (Azougue, 2009).

 

 

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junho, 2011
 
 
 
 
 
Paulo Mohylovski (São Paulo/SP, 1962). Redator, escreve para diversos sites. Vive em São Paulo.