O TEMPO NO ESPELHO

 

 

         "Se há um espelho para o espaço, deve haver também um para o tempo. Não importa que a duplicação do espaço seja falsa, ilusória. Tem, assim mesmo, grande importância. Que seria dos salões sem os espelhos? Se não existir um espelho para o tempo, que será das horas, ainda que sua duplicação seja igualmente uma ilusão? Sim, o espelho do tempo não pode ser uma impossibilidade. Ele existe. Estou seguro de que ele existe. Cheguei a esta conclusão de forma parecida à que Mendeleiev, no século XIX, concluiu que certos elementos químicos deviam existir embora ninguém os conhecesse. Não podiam deixar de existir. Mais tarde ficou provado que ele tinha razão. Assim também, a pesquisa à qual me dedico provará que podemos duplicar o tempo, bastando para isto dispor de um equipamento análogo ao espelho que temos em casa e que duplica o espaço".

         Este é um trecho da conferência apresentada pelo Professor Mendes Leiva em reunião solene da Academia de Ciências do município de S., no Ceará, em 29 de fevereiro de 1909. A propósito desta data é bom lembrar que aquele ano não foi bissexto no resto do mundo. Foi-o somente em S. por decisão da Câmara de Vereadores em conseqüência de um artigo publicado meses antes no jornal da cidade em que o citado cientista demonstrara a necessidade de criar-se mais um dia naquele ano já que o dia 29 daquele mês do ano anterior — 1908 — (este, sim, bissexto) praticamente não existira. O artigo era tão curto quanto convincente e o argumento central era insofismável. É que no dia 29 em questão S. devia ser invadida por um grupo de bandidos que se diziam cangaceiros enviados por Lampião. Como a invasão fora anunciada, o prefeito determinou por decreto que toda a população saísse da cidade e deixasse suas casas de portas abertas para que os bandidos saciassem sua cobiça sem violência, sem arrombamentos. O bando, misteriosamente, não apareceu nem foi visto pelas redondezas. Ao voltarem a suas residências, as famílias encontraram tudo intacto, sem nenhum sinal nem rastro de cangaceiro. Todos os habitantes se convenceram de que realmente o dia não aconteceu, e aquele fevereiro só teve 28 dias. O próximo, portanto, devia ter 29, bissexto ou não, e foi o que ocorreu.

         Voltando ao que realmente interessa, o Dr. Mendes Leiva, fundador e primeiro presidente da Academia, foi vivamente aplaudido ao concluir a exposição de sua hipótese sobre a necessária existência de um espelho do tempo. Tinha a seu favor o respeito oficial e popular a proposições anteriores, aparentemente insólitas e, no entanto, brilhantemente comprovadas. Após os aplausos, afirmou que contava com o apoio financeiro da prefeitura para a nova pesquisa que, ao contrário de outras, puramente teóricas, acarretava certos gastos com materiais raros a serem adquiridos em centros industriais mais adiantados. O prefeito, sentado a seu lado, expressou por meio de uma careta sua primeira desaprovação ao discurso do nobre cientista que, ignorando a atitude do alcaide, apresentou-lhe uma folha com o orçamento completo de seu projeto. A soma era grande para a prefeitura de S. e, nos dias seguintes, o assunto tomou conta da Câmara, dos bancos da praça, do salão de sinuca e do jornal local. A população dividiu-se: contra e a favor do financiamento do projeto. Os que eram contra, uma minoria, diziam que era impossível fabricar um espelho do tempo pela simples razão de que o tempo não para e não se pode duplicar algo que não para. A maioria a favor do projeto retrucava que seus adversários estavam aferrados à noção do espelho comum, conhecido de todos; para entender o espelho do tempo era preciso ter a mente livre de preconceitos, o que talvez fosse impossível àquela minoria rude e iletrada.

         O projeto acabou sendo aprovado na Câmara Municipal com uma emenda que condicionava o apoio financeiro oficial à participação direta da população por meio de doações voluntárias. Para cada unidade monetária doada, a prefeitura aportaria outra, o que significava uma parceria público-privada meio a meio. O vigário da cidade, Pe. M., opôs-se à ideia afirmando que se os fieis já doavam pouquíssimo à paróquia, doariam ainda menos se desviassem recursos para um projeto mirabolante que desafiava as leis divinas. Após dois meses de campanha, o total arrecadado estava longe de alcançar a meta. Mesmo assim, foi possível comprar uma parte dos materiais solicitados pelo cientista, entre os quais, dois grandes relógios de parede. Um mês depois, o Prof. Mendes Leiva anunciou a primeira demonstração pública de seu invento. O prefeito convidou toda a população a comparecer ao salão da Academia de Ciências às nove horas da manhã do sábado imediato. Abriu a reunião com um discurso de dez minutos e passou a palavra ao Prof. Mendes Leiva. O cientista puxou um grande lençol que cobria seu equipamento montado sobre um pedestal de dois metros de altura e todos os presentes, dentro e fora do salão, alvoroçaram-se para ver a novidade. Todos esperavam ver algo desconhecido, alguma máquina estranha, nunca vista, mas, por incrível que pareça, estavam diante de dois relógios de parede de trinta centímetros de diâmetro, com mostradores brancos e números pretos, marcando nove horas e trinta minutos. O professor limitou-se a, sentado em uma cadeira diante de seu invento, olhar fixamente os dois relógios. No primeiro minuto o silêncio foi total; no segundo ouviram-se algumas tosses e limpeza de garganta; no terceiro, algumas risadas de meninos; no quarto, um arrastar de cadeiras e finalmente uma voz: cadê a novidade? Terminado o quinto minuto, metade do auditório já de pé, o cientista levantou-se e, de frente para o público, curvou-se como fazem os músicos e trapezistas de circo ao final de suas apresentações. O prefeito, com medo de uma reação violenta da turba, pediu gentilmente ao professor que explicasse um pouco o que acontecia para que todos pudessem apreciar melhor sua invenção. Mendes Leiva ajeitou os óculos, arrumou os cabelos com as duas mãos e disse em tom solene:

         — Excelentíssimo Senhor Prefeito de nossa querida S., demais autoridades presentes, senhoras e senhores: estamos diante de um equipamento que deverá revolucionar a vida da sociedade. Creio que agora todos já perceberam que o relógio da direita marcou o tempo convencional que pode ser conferido por quem dispõe de relógios nesta sala; no da esquerda, podemos constatar que em vez de decorridos oito minutos, decorreram apenas quatro. Como minha reflexão não se limita ao campo da engenharia mecânica, mergulhei no da filosofia e cheguei à conclusão de que nada nos obriga a seguir sempre o prosaico relógio da direita. A todo momento em  que o tempo marcado pelo relógio da esquerda, cientificamente alterado por mim em suas estruturas, corresponder aos elevados interesses da sociedade, nada nos impedirá de deixar de lado o relógio tradicional e guiarmo-nos pelo meu invento. A conseqüência mais óbvia é que um dia passará a ter quarenta e oito horas, com vinte e quatro de luz solar e igual período de escuridão, com subperíodos de doze horas alternados.

         Aproveitando um pequeno intervalo do professor para um gole de água, o prefeito perguntou se ele podia dar algum exemplo para se fazer entender com mais facilidade, ao que o mestre respondeu:

         — São inúmeros, Excelência. Pense no trabalho realizado por um operário que por dezesseis horas receberá o mesmo valor que atualmente recebe por oito; na reduzida idade que as mulheres poderão declarar em resposta a perguntas inconvenientes; no dilatado tempo de aposentadoria que seus servidores serão obrigados a contar; na tranqüilidade em que poderemos viver sem a pressa que hoje nos atormenta para evitar atrasos e assim por diante. Com isto, o ritmo da vida mudará, o decorrer do tempo será outro. De certa forma, e mais concretamente do que o que acontece com o espaço nos espelhos comuns, o tempo duplicar-se-á. Haverá os espíritos curtos que dirão tratar-se de uma ilusão para enganar os bobos. Pergunto eu então por que continuamos a usar espelhos convencionais se as imagens que ali vemos são também ilusórias? Ainda que o sejam, não são portadoras de grande utilidade?

         O prefeito olhou o relógio da direita. Eram dez horas e dez minutos; no outro, nove e quarenta. Coçou a cabeça, abanou o paletó e pediu silêncio ao auditório que, a esta altura, já era composto por novas caras que vieram de fora em substituição aos que saíram em busca de uma brisa. Disse sem entusiasmo — e pensando no dinheiro emprestado a alguns parentes — que o trabalho do professor era realmente revolucionário e que, ao lado daquelas vantagens, podia trazer alguns problemas, por exemplo, o tempo que os tomadores de empréstimo iam querer contar para pagar menos juros e a reação dos sindicatos diante da dilatação da jornada de trabalho. Um contra-senso sem solução: ora o relógio parecia estar bem situado à esquerda, ora não. E antes de mais nada gostaria de ouvir uma explicação mais clara sobre a relação entre o novo relógio e os espelhos.

         — Vou começar pela segunda dúvida, Excelência. De forma análoga à que os espelhos de cristal duplicam os espaços, o relógio-espelho duplica o tempo. Os efeitos desse fenômeno podem ser favoráveis aos interesses de alguns e contrários aos de outros, é verdade. Conflitos haverá, admito, mas será isto alguma novidade no mundo de hoje em que impera o relógio da direita? Ademais, o fato de ser uma ilusão apenas torna meu invento mais atraente. Diria mesmo que a maioria das ideias que governam a vida social não passa de ilusão e não creio que alguém aqui discorde. No entanto, há milênios guiamo-nos por elas. Algumas, ainda que pertencentes ao terreno da ciência, eram tão ilusórias que foram abandonadas, substituídas por outras. Se na ciência isto acontece, que dizer das demais esferas do pensamento? Quanto à primeira parte de sua intervenção, Excelência, considero que hoje em dia essa questão de esquerda e direita tem muito pouco significado.

         O auditório esperava uma reação do prefeito. Em vez disso, ouviu-se a voz do Coronel Nepomuceno, grande pecuarista da região, perguntando quanto o inventor queria por aquele relógio preguiçoso. Mendes Leiva respondeu:

         — Não posso vender o que não me pertence, coronel, pois o projeto foi financiado por uma PPP e antes que o senhor me pergunte o que é isto digo-lhe que se trata  de uma forma moderna de conseguir recursos juntando os esforços do governo e das pessoas com o nome de parceria público-privada. A expressão é muito simples: a palavra parceria é conhecida de todos os nossos agricultores; a privada, não digo que seja comum no campo, mas na cidade sim; e o público é um detalhe que só interessa aos especialistas. O fato é que o equipamento não está à venda, pertence ao município.

         O coronel dirigiu-se então ao prefeito dizendo que se aquilo pertencia ao município poderia ser vendido no dia em que ele quisesse uma vez que cabia à autoridade máxima local desfazer-se de um bem de utilidade duvidosa. Ao ouvir o que considerou um insulto, o ilustre professor protestou com palavras duras e agressivas:

         — Coronel Nepomuceno, com todo o respeito que lhe devo, quero lembrar-lhe que S. não é mais apenas um curral de vacas. Nossa produção intelectual não tem parado de crescer em diversos ramos do conhecimento humano e isto pode espantar espíritos atrasados vindos do interior do município. Desse modo, o senhor poderia ao menos dizer por que razão pretende adquirir meu invento que, como já ficou dito, é propriedade pública municipal.

         O coronel levantou-se exibindo uma expressão grave em seu rosto e pedindo a atenção de todos, pois não pretendia alongar sua participação naquele debate que considerava perda de tempo, e deu ênfase à parte final:

         — Senhor Prefeito, ilustre Professor, minhas senhoras e meus senhores: minha insistência em comprar o relógio-espelho aqui exposto é muito simples. É que pretendo fundar, dentro de pouco tempo, em nossa cidade, um museu da loucura ao qual darei o nome de Mendes Leiva em homenagem ao insigne cientista aqui presente. Venho guardando em meus arquivos, há dez anos, documentos, objetos, laudos médicos e jornais que farão parte do acervo desse museu. Acredito que, no futuro, quando o costume moderno do turismo chegar a estas plagas, uma das principais atrações deste lugar perdido nos sertões do Ceará, será sem dúvida o Museu Mendes Leiva, especializado em preservar a triste história da loucura em nossa população que, como todos sabem, às vezes registra casos nada tristes, pelo contrário, inesquecivelmente hilariantes. Estamos justamente diante de um desses, o maior de todos, o mais bizarro, o que lhe garante um lugar de destaque no tal acervo. E para que fique clara minha boa intenção, caso o relógio-espelho passe às minhas mãos, pagarei por ele o mesmo valor que foi gasto em sua fabricação e comprometo-me a financiar diretamente futuros inventos do Professor Leiva desde que mereçam acolhimento na instituição a ser criada.

         Talvez por causa do tom solene da fala do coronel e pela dificuldade de compreender o significado de certas palavras, ou ainda pelo adiantado da hora e o calor insuportável que fazia, alguém no auditório puxou as palmas e todos os demais acompanharam numa verdadeira ovação. O professor ficou impávido e o prefeito hesitou por alguns segundos. Vendo este que a palavra estava com ele, arriscou uma decisão sem a certeza do êxito, afirmando que neste caso venderia o relógio-espelho ao coronel. O aplauso foi ainda maior porque então as pessoas que estavam fora do recinto, ouvindo as palmas anteriores, entraram e ajudaram a aprovar por aclamação a decisão do prefeito. O Coronel Nepomuceno pagou em dinheiro o valor comprovado pelo professor e recebeu das mãos da autoridade seu relógio-espelho prometendo guardá-lo em perfeitas condições de conservação até que o museu da loucura abrisse suas portas.

 

(maio, 2010)

 

 

 

 

PEDRAS DE BOLONHA

 

         Às quartas-feiras, jantavam cachorro quente. O recheio — salsichas moídas juntamente com a carne bem temperada — ia para a mesa em uma tigela branca. Cada um fazia o seu e, para acompanhar, tomavam suco de fruta ou café com leite. Uma vez, um amigo levou umas amostras grátis de remédios e sentou-se à mesa. Comeu dois sanduíches e tomou um pouco de suco. Adorava cachorro quente, disse, e aquele estava delicioso. Conversou um pouco, contou uma piada de português e aproveitou a despedida para trocar algumas palavras com Isaura, a dona da casa, antes de ir embora.

          Mais tarde, na cama, Afonso, o marido, perguntou se ela não achava estranha aquela simpatia toda, esquisito aquele entusiasmo por cachorro quente. Pensou que a mulher ia perguntar se ele estava com ciúme. Em vez disso, ela começou a contar a história: — Rico, casado, freqüenta altas rodas, está apaixonado por Carlota, nossa amiga. Sendo paciente dele, encontram-se no consultório. Não te contei logo porque ela me pediu que guardasse segredo, mas, com a visita dele, se eu não contasse, você ia desconfiar que ele queria alguma coisa comigo. Já ligou para mim várias vezes, pedindo notícia, perguntando detalhes sobre a vida dela, dizendo que nunca tinha visto uma mulher assim, tão corajosa, tão decidida.

          Ele próprio dissera que as amostras eram um pretexto para ouvir algum recado, ou apenas para estar com pessoas amigas dela, sentir algum resto de luz ou de perfume neles impregnado, um eco em suas vozes. Afonso, dado a leituras, riu muito e achou aquilo uma loucura. Lembrou da famosa pedra de Bolonha. O velho devia ter lido Os Sofrimentos do Jovem Werther. Qualquer hora ia chegar de paletó azul e camisa amarela.

         No outro dia, perguntou à amiga Carlota se era verdade. Preferia que ele não soubesse, mas, já que sabia, confirmou. Disse que no começo não parecia nada sério, mas, justamente por ser uma mulher jovem, tinha reaquecido o coração do velho.  Uma janela para um novo mundo, um sopro nas brasas já quase brancas. Para ele, tratava-se de uma experiência nova, nunca tinha se relacionado com uma mulher tão livre, tão, independente, sem preconceitos. Ficava perplexo com a liberdade que ela dizia ter conquistado. Recebera muitos presentes, muito carinho, muita atenção e até uma viajem a Salvador, com ele, sem que ninguém soubesse. Tudo bem, disse Afonso, e perguntou se ela não tinha medo do marido. Disse que não, que ele também tinha uma namorada. A mulher do velho é que andava desconfiada, fazendo perguntas. Tinha pressionado até obter a confissão: estava apaixonado, mas ia encerrar o caso. A mulher sofreu nos três meses seguintes porque, segundo ele mesmo, não era tão fácil pôr um ponto final no romance. O casal viajou pela Europa toda; ela, para esquecer as mágoas; ele, para tirar Carlota da cabeça. Na volta, foi matar a saudade do cachorro quente. Deixou uma caixa repleta de presentes. De coração partido, pediu que o casal escolhesse alguns e desse os outros a Carlota. Uma espécie de indenização, pois jamais voltaria a vê-la. Em cumprimento à promessa feita à esposa, não procurou Carlota nem foi mais à casa das pedras de Bolonha, como se isso fosse suficiente para evitar um reencontro que, é claro, aconteceu – no mesmo lugar de sempre: o consultório. Carlota, sua paciente, tinha todo o direito de frequentar aquele lugar, e, desta vez, para comunicar-lhe que estava grávida. O velho, que se considerava estéril — nunca tivera filhos —, chegou perto de uma síndrome, esmagado entre dois sentimentos contraditórios: de um lado, o pavor diante da ameaça de um terremoto em sua vida e, de outro, o êxtase com a ideia de ter um filho. Carlota foi franca: — Nem terremoto, nem êxtase. O filho não é seu nem é do meu marido. Vim aqui lhe pedir para fazer um aborto imediatamente. Como sei que você me adora, estou segura de que não vai deixar de ajudar-me num momento tão delicado.

         O aborto foi feito, com muita discrição. E no outro dia bem cedo, no hospital, Carlota recebeu a visita de Afonso, um pouco envergonhado e muito agradecido.

 

(13/9/2009)

 

 

 

 

O PRÊMIO

 

[Capítulo 1]

 

Transformação

 

         Incrível. Maciel casado, jurando fidelidade a Celina. Os amigos não o convidaram mais a ir ao estádio nem aos bares. Tornou-se caseiro, via novelas, visitava os sogros. De namorador cheio de lábia a um pacato senhor casado. Da casa para o trabalho, do trabalho para casa. Tiago, o mais cético e desiludido em matéria de amor, quis apostar como aquilo não ia durar.

         Com o tempo, Maciel não era mais lembrado nos salões de dança onde costumavam ter origem os casos e amores passageiros de antes. Celina, cuidadosa, teceu uma rede de proteção em torno do marido. Visitava periodicamente o escritório, cumprimentava com simpatia os empregados, especialmente as moças. Telefonava durante o expediente para consultar Maciel sobre o que desejava comer no almoço, não esquecia de pôr no congelador uma cerveja meia hora antes da sua chegada, tratava carinhosamente a sogra. As roupas e demais objetos do marido estavam sempre em ordem e tudo mais que uma mulher sabe fazer para manter um casamento. Quando nasceram os filhos, Celina fez dieta, ginástica, e voltou logo à forma. Recebia em troca tudo que desejava: carinho, elogios, bons presentes, pequenas e grandes atenções. Não pedia, mas sonhava com viagens e mais espaço, mais conforto. Amigas confidentes choravam em seu ombro, contando as descobertas de traições de seus maridos e pediam conselhos, queriam aprender como se faz para um marido sentir-se feliz e resistir às tentações. Celina repetia as recomendações de sempre, baseada na própria experiência e, para as mais íntimas, revelava um segredo: "na cama, não deixe seu marido em paz, faça tudo e muito, mantenha-o sempre saciado".

         Os negócios de Maciel progrediam no comércio de flores e frutas, abastecendo pequenos mercados da cidade. Com o tempo, tornou-se empresário de porte médio e continuava a crescer. Considerava a paz familiar um dos fatores do sucesso e quando sabia de aventuras amorosas de alguém, não aprovava, não demonstrava interesse. Dizia sempre a Celina que só lamentava não poder estar mais tempo com ela e os filhos. Já não almoçava em casa todo dia e pelo menos uma vez por semana tinha de visitar clientes em cidades vizinhas. Com esta mobilidade, foi apresentado a muita gente, ampliou seu círculo de amizades.

          Contava quarenta e poucos anos quando conheceu Sandra, mulher sem grande beleza no rosto, mas simpática, dona de uma loja de flores. Deu-lhe uns trinta anos e com ela realizou um bom negócio. Por delicadeza, convidou-a para almoçar. Ela aceitou e, durante o almoço, revelou passagens de sua vida que comoveram Maciel. Há dois anos, perdera uma filha e o marido em acidente de trânsito. Depois de um ano de luto, reagiu e arriscou tudo que tinha no negócio de flores e até então ia bem. Não se sentia ainda segura diante do mercado, mas buscava constantemente orientação dos mais experientes, em revistas e sítios da Internet.

         Maciel falou pouco e ouviu muito. Pagou a conta e voltou ao trabalho. No resto do dia pensou várias vezes naquela figura corajosa, disposta a lutar pela vida e ao mesmo tempo tão suave, feminina, meiga. Não contou a Celina o encontro, como fazia em relação a outros em que, por alguma razão, via pequenos fatos que podiam interessar-lhe. E Celina sempre ouvia com atenção ainda que, no íntimo, não visse nenhuma importância nas histórias.

         Passado um mês, recebeu telefonema de Sandra para tratar de novo negócio. Concluído o assunto, a moça disse que, para retribuir e comemorar, gostaria de convidá-lo a um restaurante. Maciel aceitou, com a condição de pagar a conta. Sandra respondeu que, tendo feito o convite, fazia questão de pagar. Chegaram ao restaurante, desta vez mais modesto, quase à mesma hora e Maciel revelava no rosto algum sinal de ansiedade.

         — Se você tem pouco tempo, não se preocupe, aqui o serviço é rápido — disse a moça.

         — Não, de jeito nenhum, tenho tempo, sim. Trouxe-lhe esta caixinha de cerejas que chegaram hoje, espero que você goste.

         — Quem não gosta de cerejas? Obrigada, pela gentileza.

         No meio da conversa, Maciel achou que devia ser honesto e falou na família. Elogiou os filhos e afirmou que Celina era uma excelente mãe. Seguiu-se um pequeno silêncio durante o qual o olhar de Maciel desviou-se para a rua, através da parede de vidro que protegia o ambiente do calor e do barulho de fora. Sandra tentava perceber se aquelas frases eram estudadas ou espontâneas, se podia confiar, se faziam parte de uma estratégia, que intenção podiam esconder e,  apesar de novo protesto de Maciel, pagou a conta. Saíram do restaurante, entraram no carro e Sandra pediu que a deixasse na esquina antes da loja para fazer um jogo de loteria. Despediram-se com pequenos beijos formais.

          Era véspera de Páscoa e Celina havia pedido ao marido para comprar ovos de chocolate. A compra foi esquecida, o que causou mal estar na volta a casa, à noite. Os dois meninos reclamaram e o pai aborreceu-se prometendo comprar os ovos no outro dia logo cedo.

         Como era domingo de Páscoa, a mãe e os garotos queriam ir ao shopping. Maciel disse que não estava disposto e pediu à mulher para ir com os filhos. Ficou em casa lendo o jornal no amplo terraço do apartamento. Na página de economia, leu sobre os preços de produtos agrícolas em alta, particularmente flores. Fechou por alguns instantes o jornal olhando o céu com nuvens muito brancas contra um azul forte como nunca havia visto. Levantou-se, apanhou a agenda, o telefone e ligou para Sandra.

         — Você viu a subida dos preços de flores?

         — É, estão subindo, mas onde você viu?

         — No jornal de hoje, caderno de economia. Bom para você, não?

         — Não sei, às vezes os clientes fogem porque flor é supérfluo.

         — Depende. Quando um apaixonado quer mandar flores a uma mulher, nem pergunta o preço.

         — Ah, isso é verdade, mas nem todos os fregueses estão nesse estado.

         — É isso, boa sorte, espero que as coisas continuem assim. Um abraço.

         — Obrigada, até breve.

         Sandra desligou, mas não soltou logo o telefone, mantendo o olhar fixo em algum ponto sobre a mesa. Retomou os papeis que examinava, tentou lembrar do que fazia quando foi interrompida, levantou-se e foi ler a matéria sobre o mercado de flores. Realmente, os preços estavam em alta, sobretudo os de rosas. Voltou à mesa de trabalho e lembrou dos cálculos que precisava fazer. Terminada a tarefa, ligou para Lúcia, amiga íntima.

         — Vamos almoçar no self service?

         — Vamos, pode passar aqui?

         — Claro, chego já.

         Ao entrar no carro, Lúcia perguntou:

         — Tudo bem? Que cara é essa?

         — Nada, tudo bem.

         Durante a refeição, falaram de compras, trocaram notícias de parentes, sem grande entusiasmo. Lúcia calou-se, ficou olhando para o rosto da amiga. Notara algo diferente no sorriso, no movimento dos olhos, decidiu esperar. Sandra perguntou:

         — Que foi?

         — É isso que eu quero saber, que está acontecendo?

         — Vamos tomar o café em outro lugar.

         Foram.

         — Dois capucinos.

         — Vai, conta.

         Contou.

         Lúcia, menos jovem, disse que não entrasse em fria, saísse correndo, antes que fosse tarde. Sandra concordou e voltou para casa.

 

 

[Capítulo 2]

 

Tulipas

 

         Duas semanas depois, Maciel ligou oferecendo novidade, flores vindas de longe. Sandra respondeu que se abastecera em outro fornecedor, quando precisasse o chamaria, tentou encurtar a conversa. Maciel insistiu, levaria as flores novas para experiência, não precisava pagar logo, ficariam consignadas. Sem argumento, Sandra aceitou. Maciel chegou com tulipas de várias cores, importadas da Holanda.

         — São ou não são bonitas?

         — Belíssimas, devem custar uma fortuna.

         — Como eu já disse, há sempre alguns apaixonados dispostos a gastar dinheiro.  Dá para vendê-las a quinze reais cada uma, sem dificuldade. Entrego-lhe a sete.

         — Vamos ver.

         — Veja só essas vermelhas, dizem tudo que um homem quer dizer.

         Olharam-se em silêncio, Sandra baixou a vista. Maciel repôs as flores na caixa e despediu-se.

         — Bem, assim que vender as primeiras, me chame por telefone. Até breve.

         Sandra estendeu a mão e disse baixinho: até breve, obrigada por ter vindo. Maciel não soltou logo a mão da moça. Puxou-a até os lábios e deu-lhe um beijo. Levantou o olhar e disse tchau, sorrindo. Durante a volta ao escritório, não pensou em outro assunto. Que está acontecendo? Desorganizar a vida quando tudo vai bem? Um homem adulto não pode comportar-se como um menino. O pensamento muda de uma hora para outra, quero e não quero. Se começar, vai ficar mais difícil terminar. Já começou? Celina não errou em nada, não merece sofrer. E eu, mereço? Trata-se de uma cliente, posso encontrá-la quando quiser. A moça não tem culpa de ser atraente. Mesmo sem um rosto muito bonito, tem um corpo de dar arrepio. O cabelo, a voz, o perfume. Não sei como pode estar solteira, não há homem que resista. Se é proibido, por que existe?

         À noite, em casa, foi mais carinhoso do que de costume. Puxou Celina para junto, no sofá, diante da TV, e não parou de acariciá-la enquanto via o noticiário e a novela. A mulher retribuía e não escondia o prazer com as cenas de amor que se sucediam. Mal podia esperar o fim do capítulo. Disse aos meninos que fossem dormir e desligou a TV. Convidou o marido a tomar uma ducha a dois e trancou a porta da suíte.

         Ao acordar pela manhã, Maciel abriu as cortinas e viu o céu azul claro, sem nuvens. Chamou Celina para ver a planta coberta de flores, um encanto. A mulher disse: essa trepadeira sou eu, e abraçou-o por trás. Maciel estremeceu. Ela riu e beijou-lhe as costas.

 

 

[Capítulo 3]

 

Rosas

 

         O tráfego estava péssimo, exigia muita paciência. Antigamente — pensou Maciel — os carros não tinham ar condicionado, tocadisco, direção hidráulica, nem vidro elétrico. Todo mundo achava normal o calor, o barulho, a fumaça. Agora, com este conforto todo, ainda se acha motivo para reclamar. A gente devia se conformar com o que possui. O problema é que, se fosse assim, as empresas não cresceriam, os empregos não se multiplicariam e a população seguiria crescendo, a miséria aumentando. Será que não há solução para o mundo? Talvez cada um tenha que procurar o que é melhor para si, o mundo não tem jeito. Por falar nisso, que é melhor para mim? Ao aproximar-se do escritório, Maciel viu os primeiros pingos de chuva no parabrisa e disse baixinho: ué, cadê o céu azul?

         Trabalhou duro a manhã toda e por uma semana esteve tranqüilo, quase não pensou no problema, se problema existia. A cada vez que entrava em casa, passava os olhos por toda a sala, beijava Celina e dirigia-se à suíte. Os meninos recebiam um carinho, o menor se queixava do outro e este procurava justificar-se. Perguntava se estava tudo bem na escola e eles diziam que sim. Domingo, após o almoço, o telefone tocou. Era Clara, irmã mais jovem de Celina, em conversa demorada e séria. Vivia no interior, a trezentos quilômetros, com o marido, proprietário de uma fazenda. Maciel perguntou de que se tratava. A mulher explicou que a irmã não estava bem de saúde e pedia-lhe ajuda, uma visita de dois dias, não era a primeira vez.  A delicadeza e o amor de Celina faziam muito bem à irmã. Ninguém mais merecia tanta confiança. Maciel perguntou: e a casa, os meninos? Vou pedir a mamãe para dar uma força, são apenas dois dias – respondeu a mulher. Maciel ficou em silêncio.

         Quarta-feira, cedo, Maciel foi levar Celina à rodoviária. Na volta, pensou em ligar para Sandra. E agora: ligo ou não ligo? Se ligar, sou um cretino; se não ligar, um idiota. Lembrou-se da frase de um fazendeiro fornecedor: se o touro sentir o cheiro, pula a cerca nem que deixe o saco pendurado no arame. Que droga, não passo de um touro — disse como se conversasse com alguém.

         — Bom dia, como vão as coisas?

         — Quem está falando?

         — Maciel, das flores.

         — Oh, meu... meu caro. As coisas vão bem. Foi bom você ligar, preciso de mercadoria.

         — Não lhe vendo isso, vendo-lhe flores, as mais bonitas. Posso passar por aí no fim da tarde?

         — Sim, pode, será um prazer.

         — Levarei boas amostras.

         No caminho, Maciel leu a placa do carro à sua frente: KMA-4098 e pensou em jogar no bicho, vaca. Lembrou do touro, diminuiu a marcha, apurou o olfato para sentir o perfume das rosas que levava e voltou a acelerar o carro. Entrou na loja com as amostras na mão como um buquê. Sandra disse: realmente, isso é muito mais que uma mercadoria. Surpreso, Maciel beijou-lhe a face invadindo com os dedos os cabelos louros que desciam até aos ombros da moça. Ela abriu um sorriso e convidou-o a entrar na pequena sala que servia de escritório. Sentaram-se e falaram de datas, preços e pagamentos com frases cortadas, interrupções inesperadas. Feitas todas as anotações, olharam-se com um sorriso. Sandra saiu de seu lugar, apanhou uma das rosas, aspirou-lhe o perfume e a pôs no bolso da camisa de Maciel. Abraçaram-se num beijo prolongado, sem uma palavra. Separando-se, Sandra olhou o relógio e sussurrou: está na hora de fechar. Mudo, coração disparado, Maciel assistiu a moça fechar as portas por dentro.

          No dia seguinte choveu muito. Avenidas inundadas, engarrafamentos, acidentes, muita gente não chegou ao trabalho. Parte do comércio fechou as portas ao meio-dia, inclusive Maciel e Sandra. Encontraram-se às catorze horas e saíram em direção à praia. Sandra quis saber aonde estavam indo. A um lugar lindo – respondeu Maciel. De fato, o motel recém inaugurado tinha decoração de muito bom gosto.

 

 

[Capítulo 4]

 

A outra

 

         Lúcia foi comprar flores e conversar com a amiga. Perguntou se estava tudo em paz, se o desastre não tinha acontecido. Sandra riu e prometeu contar tudo, mais tarde.

— Mais tarde, não, quero saber agora.

         — Desastre é pouco, querida, calamidade, hecatombe.

         — Não acredito, você é louca. Aquele homem não vai se separar nunca da mulher dele, e quando ela souber, é capaz de mandar matar você.

         — Veremos. Não creio que ela possa viver sem ele e não me importa que ele continue morando lá, sou a outra.

         — Ih, amiga, você mudou muito.

         — Mudei para melhor. Confesso que era analfabeta em matéria de amor, esse homem me ensinou tudo, você entende o que eu quero dizer?

         — Acho que sim, pelo seu jeito de falar...

         — Pois é, enquanto ele me der isso, não o quero perder. Vamos sair?

         — Aonde você quer ir?

         — Passar na costureira e fazer um joguinho.

 

 

[Capítulo 5]

 

A concorrência

 

         A expansão dos negócios de Maciel exigira empréstimos bancários. Segundo suas previsões, em dois anos pagaria tudo. Não contou com a possibilidade de queda significativa de suas receitas em função da concorrência de empresas maiores. Achou que, para enfrentá-las, teria que modernizar alguns setores e entrar em mercados mais distantes. Contraiu novos empréstimos e cortou custos na empresa e no consumo doméstico. Três meses depois, não havia sinais de recuperação e Celina queixava-se da perda de certos luxos com os quais se habituara. Durante todo esse tempo, nada percebera da concorrência que sofria no mercado do amor. O costumeiro entusiasmo de Maciel se arrefecera, mas ela atribuía tudo às suas preocupações com os negócios. Começou a inquietar-se quando notou que o marido chegava tarde com freqüência cada vez maior. Não queria admitir logo uma ameaça, mas pouco a pouco convenceu-se de que devia ficar mais atenta. Lembrou-se de dar uma olhada no celular, anotar números mais chamados, ligar após o horário de trabalho, examinar o carro, cheirar as roupas. Sentia-se mal nessa pesquisa humilhante. O mal estar, no entanto, instalava-se e crescia rapidamente. Uma noite, terminada a novela, Maciel chegou e encontrou Celina aos prantos.

         — Chorando por causa de novela, amor.

         — É, o capítulo foi muito triste.

         — Que aconteceu?

         — O casal parecia tão feliz, a mulher descobriu que era traída.

         — Bobagem, meu amor, isso é ficção.

         — Sei não...

         — Como não sabe?

         Tiveram uma longa conversa em que Maciel aparentemente conseguiu convencê-la de que precisava mais do que nunca de seu apoio, de muita paz, para enfrentar as dificuldades que a firma atravessava. Não tinha cabeça nem tempo para outra coisa.

         No dia seguinte, Celina resolveu ligar para os números anotados. Todos homens, com exceção de um: Sandra, da FlóridaFlores e Arranjos. Pediu o endereço com o pretexto de ir até lá. Foi, mas, não para comprar, no fim do expediente. Olhou as flores, conversou com a loura que a atendeu e não se identificou. Achou que aquele rosto não era páreo para ela, porém o resto sim — e muito. Saiu preocupada e voltou para casa. Mais tarde, na cama, criticou uma amiga ciumenta, uma louca, sempre vigiando o marido. Maciel disse que estava morto, deu-lhe um beijo, apagou a luz e virou-se.

         Celina despertou mais cedo, foi à garagem e entrou no carro do marido. Sentiu cheiro de rosas, achou que era normal. Examinou o banco dianteiro, demorou-se no encosto e encontrou, não um cabelo louro, mas dois. E grandes. Grandes como os da loura das flores. Levou-os com cuidado e guardou-os dentro de uma caixinha de jóias. Estava convencida. Teria o dia todo para pensar no que ia dizer à noite, a portas fechadas. Pediria o divórcio e exigiria tudo que a lei lhe garantisse. O futuro dos meninos estava em jogo e o seu também. Conhecendo bem as reações de Maciel, achou que o melhor era dizer de uma vez: sei de tudo e tenho provas, quero o divórcio.

 

 

[Capítulo 6]

 

A falência

 

         Após o jantar, Celina chamou o marido ao quarto, trancou a porta e desembuchou do jeito que havia preparado. Maciel piscou os olhos, tremeu o lábio superior, tentou rir e perguntou que história era aquela. Celina gritou: não minta, seu cretino, cara de pau, quero o divórcio. Maciel controlou-se, ficou sério e falou, olhando para o chão:

         — Celina, estamos falidos. O que temos para repartir é um monte de dívidas.

         A mulher ficou lívida, levou as mãos às têmporas e mergulhou na cama enfiando o rosto no travesseiro. Não se levantou para falar com as crianças e, na posição em que estava, soltou um grito abafado: vá dormir no quarto de hóspedes. Maciel obedeceu. Os meninos estranharam, entenderam que as coisas estavam feias e nem deram boa-noite ao pai.

 

 

[Capítulo 7]

 

O jogo

 

         Maciel marcou encontro com Sandra e contou-lhe tudo. A moça disse:

         — Tudo isso por dois fios de cabelo?

         — Minha mulher é muito desconfiada, já vinha me espionando. De repente, corro o risco de perder tudo, minha empresa e minha família.

         — Está arrependido?

         — Não, apenas confuso, preciso pensar. O pior é a falta de dinheiro. Se pudesse fazer uma viagem com Celina talvez ela se acalmasse.

         — Ainda quer me ver?

         — Quero, você não tem culpa, não vai sair da minha cabeça assim.

         — Nem você da minha. Pense com calma e depois me chame. Preciso voltar para a loja, mas antes me deixe numa lotérica, não quer fazer uma fezinha?

         Sandra costumava fazer pequenas apostas. Maciel disse que achava melhor fazer um jogo grande e ofereceu dinheiro. Perguntou se não topava fazer um só jogo, para os dois. Sandra disse:

         — E se a gente ganhar?

         — Dividiremos o prêmio em partes iguais.

         — Olhe bem o que está dizendo.

         — Falo sério, pode ficar com os comprovantes.

         — Está combinado.

 

 

[Capítulo 8]

 

O prêmio

 

         — 04, marquei; 09, marquei; 31, marquei, já acertei três! 36, marquei, já ganhamos a quadra! 48, ai meu Deus, ganhamos a quina; 53, não acredito, que loucura, vou conferir: 4, 9, 31, 36, 48 e 53, vou ter um troço!

         Sandra revira tudo na bolsa à procura do celular. Emborca a bolsa em cima da mesa, cai tudo, agarra o aparelho, contatos, M, Maciel, tecla verde.

         — Querido, falo sério, ganhamos a sena! Estou na loja, corra até aqui, porque não sei se meu coração aguenta!

         — Não brinque, estou no escritório com uma visita importante.

         — Pode ser o papa, venha, senão eu morro!

         — Diga as dezenas.

         — Se você disser mais uma palavra, não lhe entrego sua metade.

 

 

[Capítulo 9]

 

O acordo

 

         — E agora, como vamos dizer a Celina?

         — Qual é o problema? Ela não quer se divorciar? Eu fico com uma metade e você divide a outra com ela. Nós dois juntos ficaremos com três quartos.

         — Talvez ela mude de ideia, queira continuar casada comigo e, neste caso, você fica com uma metade e eu com a outra.

         — Mas então, ela vai exigir que você encerre o caso comigo. Saiba que guardei os comprovantes bem guardados. Diga-lhe que só entrego sua metade se ela fizer de conta que não sabe de nada.

         — Você seria capaz?

         — Ora, estou sendo correta. Não faço questão de ficar com o dinheiro todo. Quero entregar o seu, não exijo que ela perca o marido, porém tampouco quero perder você.

         — Bem pensado.

         Maciel explicou tudo à mulher, com muita calma, falou sobre o tamanho do prêmio e, Celina, após alguns segundos de reflexão, disse parecendo calma:

         — Tenho ideia melhor. Proponho que você pague suas dívidas, e, nós três juntos, fundemos a MCS Frutas e Flores, a maior empresa do ramo na região e não falaremos mais nesses detalhes desagradáveis tais como divórcio, metade pra cá, metade pra lá.

         — Fala sério, Celina.

         — Nunca falei tão sério, Maciel. Topa ou não topa?

         — E você não vai sentir ciúme?

         — Ciúme é coisa de pobre, querido.

         — Celina, você me espanta.

         – Eu era analfabeta em matéria de canalhice, Maciel; você me ensinou tudo. Liga aí para a Sandra e fecha esse negócio.

         — Não esculacha, mulher.

         — Não esculacho nada, o mundo é assim há muito tempo, só eu não sabia.

         — É exagero, nós somos uma família, temos as crianças.

         — Eu também fui criança, meu pai devia ter lá as amantes dele, ninguém falava. Todo mundo fazia de conta que não havia nada. A diferença é apenas esta: nossos filhos vão poder dizer: este é meu pai, esta é minha mãe e esta é a amante de meu pai.

         — Celina, você está ironizando. Pelo jeito, você deixaria de lado essa ideia de divórcio desde que eu encerrasse definitivamente o caso com a Sandra. Acontece que os comprovantes do prêmio estão com ela e se eu disser que nunca mais a verei, ela não entregará minha parte. Tenho que manter a relação com ela, aceitar as condições. Do contrário, estarei falido e sem o prêmio. Ela aceita que eu continue casado com você, só não quer me perder. Pense no tamanho desse prêmio e na nossa situação financeira. Para brigar na Justiça, eu precisaria de dinheiro e correria o risco de perder a ação.

         — Maciel, prefiro ficar sem dinheiro a me submeter a uma chantagem.

         — Não considero chantagem, ela reconhece que você é minha mulher, e está disposta a se conformar com a humilhante posição de amante, concubina, a outra, seja lá o que for. Não estamos em condições de perder essa montanha de dinheiro. Pagaremos as dívidas, compraremos um apartamento grande à beira do mar, faremos uma viagem longa, você renovará seu guarda-roupa, o futuro dos meninos estará garantido. É muita vantagem para se jogar fora apenas em nome de convenções. Não vá me dizer que não tem amigas na mesma situação.

         — Tenho, mas eu me julgava diferente, privilegiada. Notei que você vinha aos poucos se afastando de mim e atribuí isso aos problemas da firma. Quero seu amor de volta, do jeito que era antes.

         — Mas isso você terá, eu juro. A falta de dinheiro é que me tornou estranho, sem ânimo para atender as suas expectativas. A tranqüilidade vai voltar e seremos felizes outra vez, com mais conforto e segurança.

         — Olha aqui, Maciel: você vai pagar o que deve aos bancos e fornecedores, mas a dívida que você está assumindo comigo é eterna. O que você está me pedindo só uma Celina pode lhe dar. Vamos ter um padrão de vida muito acima daquele em que vivemos até hoje e depois não me venha pedir para cortar gastos. E não é só isso, você vai continuar meu marido com todos os deveres que isto implica. Nunca mais me fale de problemas da firma, nem de trabalho. Está combinado?

         — Tá. Vai ser do jeito que você quer. Agora me dê licença que eu vou cuidar do nosso futuro.

 

(junho, 2010)

 

 

 

César Garcia. Nascido em Fortaleza e radicado no Recife há cinco décadas, trabalhou na antiga SUDENE no departamento de agricultura e ensinou economia na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Publicou três livros de contos: Pacto (2005), Cartas de Veneza (2008) e Breve instante (2010), pela editora Bagaço, Recife. Tem textos em diversas antologias e sites literários. Seu conto "O Canto da Freira" foi incluído em antologia organizada pela Livraria Asabeça, São Paulo, 2008. Participou da oficina literária do escritor pernambucano Raimundo Carrero e hoje faz parte da oficina Clarice Lispector, coodenada pela escritora Lourdes Rodrigues.