Em branco

 

Dizem que Cézanne

quando certa vez pintou um quadro

deixando inacabada parte de uma maçã

pintou apenas a parte da maçã

que compreendia.

 

É por isso

meu amor

que eu dedico a você

este poema

em branco.

 

 

 

 

 

 

 

Margem

 

No final da página

como no final do mundo antigo

há um despenhadeiro.

 

Embora os que leem prosa em geral

se arrisquem mais

porque chegam quase à beira do abismo

cuidado ao chegar à borda do poema.

 

 

 

 

 

 

 

Iceberg

 

Nossa infância separou-se de nós

como um iceberg

nós a olhamos afastar-se

lentamente

o brilho cego do gelo contra o sol

e tudo o que dizem que há por baixo.

 

 

 

 

 

 

 

Agenda

 

O dia:

branco guarda-sol

 

A tarde:

amplo guarda-nuvem

 

A noite:

negro guarda-chuva

 

O dia:

maçãs ligeiramente ácidas

 

A tarde:

frutas mornas, açúcar

 

A noite:

figo, fruta-flor

 

O dia:

o amor dos pássaros

 

A tarde:

o amor dos gatos

 

A noite:

o amor dos cães.

 

 

 

 

 

 

 

Três ipês

 

Ipê roxo

 

Cansam-me as palavras,

sua energia rápida:

coladas à cidade

como uma roupa fechada,

sobrepondo-se a tudo,

cosidas a tudo.

Cansam-me; a elas se somam

as insistências da tarde,

os engarrafamentos sob o sol de agosto,

a ideia de amor,

que me incapacita para o trabalho,

a fadiga do trabalho,

que me inutiliza para o amor,

e a própria beleza do cansaço,

essas flores roxas no espelho retrovisor.

 

 

 

 

 

Ipê branco

 

O poema quer ver em tudo o que é branco

uma lição de esgrima:

a página, de novo, devolvida

ao deserto ou à pérola.

No entanto o ipê sujou-se da rua,

branco descido ao convívio ordinário

da cor e das criaturas:

um muro caiado

uma cama desfeita

ou uma peça íntima esquecida

num lugar público.

 

Triste como uma nuvem no chão.

 

 

 

 

 

Ipê amarelo

 

É inútil esse sol duplicado,

lâmpada acesa numa casa em chamas

(menos flor que febre).

É inútil, palavras acordadas

pela luz excessiva,

gema de um dia quebrado

(alguma coisa arde, sem amor,

e me deixa entregue ao sol,

desamparada entre coisas amarelas, condenada à alegria)

 

 

 

[Do livro A vida submarina. Belo Horizonte: Scriptum, 2009]

 

 

 

 

 

A estrela

 

Na noite

do seu corpo

a estrela

enlaça

o dragão

 

sereias cantam mudas

em seus braços

 

na sua pele

meu coração dorme

tatuado

 

eu sei:

você riscou-se

para que em seu corpo

eu

mais facilmente

encontrasse o meu caminho.

 

 

 

 

 

 

 

 

Especiarias

 

Caravelas loucas

atravessaram o mar

por chás, açúcar,

gengibre, panos e canela.

Assim também atravessamos

o tempo que nos separa.

Desejamos coisas tão preciosas

e inúteis

quanto chás, açúcar,

gengibre, panos e canela.

 

 

 

 

 

 

 

Bonecas russas

 

Aqueles que pensam que a cada vez só é possível amar um

não conheceram como eu o amor das bonecas russas:

vou pondo um amor dentro do outro

dentro do outro

dentro do

outro.

 

 

 

[Do livro inédito Da arte das armadilhas, a ser publicado

em 2011, pela Companhia das Letras]

 

 

 

 

 

 

 

Ana Martins Marques (Belo Horizonte/MG, 1977. Formada em Letras e mestre em Literatura Brasileira pela UFMG. Em 2007, recebeu o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, na categoria "Poesia - autor estreante" e, em 2008, ganhou novamente o mesmo prêmio, na categoria "Poesia". Lançou, em 2009, o livro de poemas A vida submarina (Belo Horizonte: Scriptum). No segundo semestre de 2011, lança novo livro de poemas, Da arte das armadilhas, pela Companhia das Letras.

   

[imagem: escultura de bruno giorgi]