PENSAMENTOS DESALINHADOS

 

I

 

em meu rebuliço de existir,

desaperto o espartilho

das coisas aprendidas

e deixo o corpo livre,

deitado ao rés do chão.

 

ser é mover-se,

eis a questão.

 

 

II

 

pensamento semovente

que me absorve em êxtase

e me completa, feito antigamente:

em meu rebanho de idéias,

sonhos não são planos, mas planaltos.

 

deitar é resistir,

covarde.

 

 

III

 

minhas utopias são espigas de milho frescas

cujos grãos ofereço à terra e aos porcos,

que só comem delas.

meu ser é semente, somente.

com seu fim começa a minha árvore.

 

bastar-se

é ser pobre.

 

 

 

 

 

 

MULHER DE PORTAS

(ou "Río Abajo Río II")

 

Há, por debaixo do rio,

todo um rio a navegar.

Histórias que ninguém viu,

leitos em que ninguém dormiu,

mundos que não vi achar.

 

Há, por debaixo do rio,

fogueiras e invernos a desvendar.

Milhares de luas e madeiras,

povos e bandeiras

que eu vim procurar.

 

Há, por debaixo do rio,

histórias de mulheres ignotas,

repletas de luas tortas

que pouca gente já viu.

 

Mas eu sou mulher de portas:

procuro a onça mais próxima,

mergulho no rio bravio.

Do fio, eu faço pavio.

 

 

 

 

 

 

TANTÁLICA

 

Vivo a buscar

minha complexidade de espirais

a volubilidade do espanto

de meus encantos pessoais

 

Vivo a encontrar

meus túneis de fogo

e anéis de sangue

minha esgrima constante

exercício anímico

 

Vivo a buscar

a solidez das catedrais

gritando dentro de mim como anjos

soluçando o passado remoto

preso em raízes de concreto

 

Vivo a encontrar

os anéis que me enlaçam à vida vulgar

tirando de mim toda luz e toda graça

a couraça e a bolsa

feitas de ossos e carne

 

Vivo a buscar

meus sonhos tantálicos e dementes

a escória que mordi por entre os dentes

o sangue que escoou

e que não sairá jamais

 

 

 

 

 

 

PAPIRO DE CARNE

 

Escrevo como quem enrola papiro.

Minha superfície de escrita é meu corpo.

 

As idéias escorrem pelos cabelos

e encharcam a pele, os ossos, as vestes.

Escrevo como quem burila a pele de todo dia.

 

Meu corpo é todo marcado de palavras.

Palavras que são ganchos,

que extraio de dentro da carne!

Ganchos que ferem,

mas que me fazem sentir mais a carne...

 

Meus ditos são pedaços de carne.

Carne crua e cheia de sangue.

 

Não escrevo como quem planta árvores.

Escrevo como quem revolve a terra.

 

 

RAW MEAT PAPYRUS

 

I write like someone who rolls papyrus.

The surface of my writing is my body.

 

My ideas seep through my hair

And drench my skin, my bones, my clothes.

I write like someone who chips away at their skin daily.

 

My body is blotched all over by words.

Words that are hooks,

And I extract them from my flesh.

Hooks that scathe

But they force me to feel my flesh.

 

My remarks are pieces of flesh.

Raw meat full of blood.

 

I do not write like someone who plants trees

I write like someone who rummages through the earth.

 

[Translated by Mary Bartsh]

 

 

 

 

QUATRO ESTAÇÕES

 

Quando emudeço é inverno,

quando quero cantar é verão.

 

Palavras caem no outono,

e quando as soletro é primavera.

 

Meu peito muda com as estações

— esses ciclos de armazenamento e estio,

semeadura e colheita.

 

Meu peito tem as variações

da vida e suas envergaduras.

 

 

 

 

 

SOU MULHER CHEIA DE RECANTOS

 

sou mulher cheia de recantos.

cada hora tenho um canto,

e às vezes, sei lá: me desencanto.

me desguarneço de cantar.

 

em cada canto me renasço,

em cada recanto me escondo.

cada canto é um recôndito,

em todo canto é mormaço.

 

sou mulher cheia de recantos:

covas, vulvas, carências,

espaços de brincar.

todo canto é o meu lugar.

 

em cada canto, uma sereia,

um gato, uma cobra d'água.

sou mulher de monstros e deusas,

águas brandas e torvelinhos de mar.

 

sou mulher cheia de recantos,

e há que se ter coragem em navegar.

em cada canto, um universo.

espelhos fractos que refratam o olhar.

 

 

 

 

 

 

EMULANDO-ME E RECRIANDO-ME

 

Eu reproduzo, represento, finjo, crio a minha melhor cópia.

Minha cópia não sou eu?

Simulo minha realidade em mil simulacros de mim mesmo.

Reconheço-me no espelho, da mesma forma que toco minha pele ou ouço minha voz.

Minha reprodução fiel não sou eu, à minha imagem e semelhança?

...

Meu modelo de perfeição é repetir-me inteiro, e aos estilhaços, a cada nova manhã.

Reproduzo-me todos os dias, ovulando-me e recriando-me,

fingindo que sou o mesmo, sem mais o ser.

Minha perfeição não existe.

...

Minha efígie é minha imagem, divindade à qual me rendo e em que me descubro.

Minha imagem, simulacro de mim mesmo, fala de mim mais que me sei.

Meu simulacro não é redundância, mas redonda ganância de ser.

Não é fingimento nem disfarce. É meu enlace comigo:

compreendo-me através de minha imagem-metade.

...

Emular é pôr-se de igual para igual, buscar cooperação pela igualdade. Emular é rivalizar, é competir.

Emparelhar-se com alguém é competir? Pôr-se de igual para igual é rivalizar?

Meu rosto real rivaliza com minha imagem no espelho?

Minha imagem é uma emulação ou simulação de mim?

Emulo-me: quanto mais me vejo, mais quero me ver.

Narciso acha feio o que lhe é estranho.

Simulo-me: quanto mais me reproduzo, mais eu tento ser.

Na natureza, nada se cria: tudo se emula, simula, estimula.

...

A realidade virtual é simulação ou emulação?

Simulamos ser o que não somos no espaço virtual

— ou o que fazemos são simulacros do real?

Ao me conectar, emulo ou simulo um outro que não sou eu?

Sou eu uma emulação de mim mesmo? Meus papéis sociais não são simulações vividas por mim?

Se simular é re-criar, sou seqüência infinita de simulações de mim.

...

Minha norma é arremedar-me, imitar-me até me sentir.

Ao me imitar, recrio-me.

Normalidade é repetir-se.

...

Eu reproduzo, tu copias, ele simula. Nós emulamos, eles imitam.

Meu estímulo é te emular para ser como eu mesmo.

Somos todos emanações de um só mesmo desejo:

nosso desafio maior é sermos fiéis ao nosso próprio espelho.

 

 

 

 

 

 

A ARTE DE PERDER

[Inspirado no poema "Uma arte", de Elizabeth Bishop]

 

Que se aprenda

dia após noite

que a arte de perder

tem só um mote:

 

perder. Perder-se

para achar,

perder para encontrar-se.

Perder, e não abandonar.

 

Que a arte de perder

seja aprendida sem susto:

que não se perca a alegria

nem se reaja mal, com custo.

 

Aprender a perder é ganhar,

e ganhar por toda a vida.

Não é dar vida a um surto,

não é querer não acompanhar.

 

Querer perder, na verdade,

é querer muito encontrar

paz de espírito na tranqüilidade,

esbaldar-se em leveza e verdade.

 

Saber perder é levitar

por sobre toda a vã iniqüidade.

Não é perder a fé nem matar,

é alçar com asas à liberdade.

 

Quero, portanto, hoje,

querer perder para não mais encontrar.

Quero perder o que não sei mais ser,

quero perder minha intenção de guardar.

 

 

 

 

 

 

ENCANTAMENTO

 

não quero um ritmo,

mas o poder de quebrá-lo.

dominar o tempo

é transformá-lo.

 

não quero atonia,

mas o ruído.

que me acorde para além

da razão sem sentido.

 

não quero melodia definida,

mas o som dos gentis.

que minhas notas sejam mais

do que tessituras servis.

 

não quero uma canção,

mas o poder de encantá-la.

encantar é o dom de transformar

tudo em nada.

 

 

 

 

 

 

FURTA-COR

 

Não, eu não me pareço contigo.

Também não me pareço

com aquela que fui ontem nos teus braços,

nem com aquela que vai a supermercados.

 

Minha cabeça é um moinho de ventos

que voam vorazes, em todas as direções.

Meu ser é um experimentar situações.

 

Não, eu não me pareço comigo.

Até porque eu não sei

em que esquina eu me larguei

e nem se dormi direito, meu amigo.

 

Meu ser vive em plangente dor

de ser sempre o mesmo,

furtando-se da própria cor.

 

Não. Definitivamente o que se vê

é mera sombra de um esboço de luz.

Um vôo de espada, um risco no ar,

um rastro do amor que me conduz.

 

 

 

 

 

 

DEUSA BRANCA

 

Minha mulher está séria,

compenetrada na própria criação.

Entronizada como ser numinoso,

a Deusa Branca tem o grande olhar

pousado sobre os quadris.

 

Minha mulher natural,

tão séria quanta branca,

encarna o saber original.

Sentada, ela embala a vida

como a um globo terrestre.

 

Para que não me esqueça dos olhos

que olham e recebem as coisas

por entre suas pálpebras,

eu carrego minha mulher comigo

como um pingente.

 

Assim como uma criança carrega o cordão

para se lembrar da mãe,

ou como uma mãe

para se lembrar da filha.

 

 

 

 

 

 

MULHERES Y LUAS

 

Mulheres não têm porto,

Mulheres não têm praia.

 

Mulheres não têm rosto,

Mulheres não têm saia.

 

Mulheres têm o gosto

das frutas meladas.

 

Mulheres têm o desgosto

das trovas não cantadas.

 

Mulheres têm sabor

de noite alucinada.

 

Mulheres têm pavor

de ferida mal curada.

 

Mulheres têm o sol

no fundo da noite mais fria.

 

Mulheres têm o mar

da água mais sombria.

 

Mulheres têm as cores

da natureza feminina.

 

Mulheres têm as dores

da paixão que nos anima.

 

Uma mulher não se sabe

outra coisa que não mulher.

 

Pois mulher é coisa vasta,

muitas luas a viver!

 

 

 

 

Rosy Feros (Santos/SP, 1971). Poetisa, publicitária, fotógrafa, apaixonada por música e, recentemente, também pianista. Cursou Comunicação no início da década de noventa e lá do alto, das nuvens telemáticas do Vídeotexto brasileiro, viu nascer a grande rede comercial chamada Internet. Pesquisadora do comportamento natural do homem contemporâneo e seus "poréns". Escolheu a Literatura para abrir as janelas de sua alma e ver, além das pessoas, suas paixões, dramas, alegrias, esperanças e sonhos. Ah, e também sonha com a paz mundial em um mundo sustentável. Uma de suas maneiras de ver o mundo é através de um instrumento imaginário chamado Fractoscópio [ http://www.fractoscopio.net ].