Decresce o corpo fenecem pelos poros e eis surgir a juventude de uma era outra, cúspide de uma outrora certeza de vigor e força. Campeia o corpo. Agora antigo, monumento ao tempo a partir de então semeador para paragens muitas de futuro presente, distância de afetos e clamores. Portal para o fim, espécie em retorno, em breve semente. Ovo.

 

 

 

 

 

 

entranhados na carne da aurora

dialogam pássaros

entre vísceras de árvores

a argumentar aos músculos do vento

o encadeamento do tempo

articulações da existência

bege, sanguínea e suspensa

a criatura da manhã

nutre a teia daqueles galos

e gera do púlpito de batimentos

reflexões nos homens,

insones rebentos

 

 

 

 

 

 

plantios

 

planta em mim

dos pés

o peito de flores

 

guirlanda sobre este teu solo lírico

pomares contidos

cheiros teus, húmus humores

 

onde caiba a raiz

a percorrer o território inteiro

de heras e amores

 

a tua seiva-luz, geração

do mar do cultivo

de tempestades em folhas

 

alimento do amor

planta em mim

as ondas da Terra

 

 

 

 

 

 

percurso

 

          Para Tanussi

 

 

Para percorrer o corpo

 

há que se ter

um santo espírito

alma de pássaro

de vôo esconso

 

há que se ler

na pele abandonos

nos ossos temores

nas vísceras assombros

 

corpo percorrido

livro aberto

mar incontido

o mesmo que o universo ler

esfera no cosmos

pupila no olho

deus dentro do homem

e um homem presente no outro

 

 

 

 

 

 

dançaria o quão necessário

para medir os vãos do mundo

em passos

 

corpo uníssono

missa do quadril

paramentos dos braços

pescoço escapulário

pendo ao sacro ofício

de sentenciar em giros

o essencial

: a alma primária

 

de santos movimentos subo aos céus

grafando com o corpo

planos vários

 

 

 

 

 

 

segue o diálogo com o tempo

erupção de tratados e pactos

de um longínquo estar

pelas entranhas do universo

antepassado presente

refletindo a abóbada dos séculos

e egrégoras de todas as eras

 

escoar épocas

 

prossegue o diálogo

vestir vocábulos

envergar a palavra

para traduzir

o mundo primevo

o mundo velho

o mundo eterno

 

 

 

 

 

 

Torrente fluxo desmemoriado de história e pensamento. Nascer crescer contrair expandir recuar enfrentar e amadurecer, cair e ser novamente fruto em vistas a ser outro e mais outro e diverso ente alguma criatura na prospecção do que gera e nunca termina — sem bordas. Corporificar o tempo em determinado instante. Apenas. Ser segmento do infinito. Mais um. Não cessar com o fim. Aguardar pela epifania dos recomeços. Que duram, eternos. Como as obras da arte.

 

 

 

 

 

 

recolher dos gestos

o silêncio erétil

fundador de sanguíneos sabores

trilha para a fera

à espreita

de dentes, músculos e pelos

em movimento

caçar o momento

do abate inteiro

do banquete cego

no clarão interno

do desejo

 

 

 

[Poemas do livro Corpo estranho. Rio de Janeiro: Editora da Palavra, 2009]

 

 

 

 

 

Ave-Maria

 

Quando em todas as seis da tarde

sob postes, sinos e luminosos

se divisa o ângulo certo

para ver o céu

Entre nuvens de vaga-lumes

e o vão dos vértices dos prédios

em rosa e azul e luzes várias

a face interna dos homens

entardece em filosofias

A vida às seis da tarde

é uma medida

 

 

 

 

 

 

E todas as vezes que o poeta veste o jaleco do pintor

é levado a pensar nos bons cães, nos cães filósofos,

nos verões de São Martinho

e na beleza das mulheres muito maduras.

 

Charles Baudelaire,

Pequenos poemas em prosa

 

 

 

 

Um cão de rua

é mais humano do que uma flor

do que uma foto de família

do que um anel de casamento

 

O cão de rua

sorri com olhos tristes

a nossa sincera e comum tragédia

Ele não implora

nem reza

 

Um cão de rua

é órfão

como os irmãos homens

que ele adota nas calçadas

para permanecer ao lado

ou guiar pelos caminhos

 

Um cão de rua

é imenso

como o mundo

com as gentes das metrópoles

e dos campos ermos

 

Ele é

um monte

e vira uma espécie de ente

que dentro das pessoas é

alguma coisa

 

em extinção

 

 

 

 

 

 

Na iluminura da manhã

escreve o tempo

papiro de ouro

 

Gravado na pele das horas

permanece o movimento

 

Em fibra de cal e fantasia

nossa vida é um livro aberto

 

 

 

 

 

 

Meditação Azul

Nas pedras em tranças

alcançar

o sentido

da praia estendida sobre o vão

Lençol de perguntas

rebatendo na face

— Para onde? Para onde?

 

 

 

 

 

 

Surto

 

É a palavra sem dó

piedade nem

que rompe a tela estática

da eletrônica

 

Estou no sábado de chuva aos potes

e nada além

do cheiro que rompe a pele cítrica

de gosto crônico

 

Automotiva

faço arte porém

na loucura que arromba

a cola límpida

 

da lembrança

 

 

 

 

 

 

Lanternas vermelhas

 

Na chegada do metrô

o dragão chinês em festa

 

Me lembra o teu rito do fogo

o teu riso de medo

o poder das entranhas

da mecânica da tua terra

Interno

teu movimento é sempre

vulcânico

Sigo agora dentro do dragão

que engole a mim e os pensamentos

 

de larva apaixonada

do Ocidente 

 

 

 

 

O clamor por ti cavalgaria o horizonte. Este corcel em pleno carrossel de desmesurados anseios seria capaz de romper a película do mundo. Por seres tudo o que desejo, ó carnaval de inteiros mitos do amor, é que te cavalgo impotente, em febre pelo que se esvai e se corrompe em corrida, em movidas pelo enlevo. Agora toureio.

 

 

[Do livro Prova. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2004]

 

 

 

 

 

[imagens ©javier alvarez cobb]

 

 
 
 
Rosane Carneiro. Apontada como uma das fortes vozes da poesia feminina carioca mais recentes, em Além do cânone, organizado pela professora Helena Parente Cunha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), publicou Excesso (edição da autora, 1999), Prova (Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2004)  e Corpo estranho (Rio de Janeiro: Editora da Palavra, 2009). Já integrou diversas antologias, sendo também publicada pela revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional. Em 2010, tem poema traduzido e estudado na coletânea Brazil, Lyric and The Americas, da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. Redatora e editora, é mestre em Literatura Brasileira pela UFRJ.