1

 

hoje nenhuma palavra

a ser dita

nenhum grito,

nenhum silêncio

saudade nenhuma

nada

apenas um dia

que despencou do

calendário

 

 

 

 

 

2

 

uma noite

minha mãe

puxava-me pela mão

éramos quatro;

eu, ela, o medo e a pressa

disso lembro-me bem

enquanto os três conversavam

eu pregava os olhos nos olhos tristes das casas e

me dava uma tremenda vontade de perguntar

"mamãe, o que elas têm?"

 

 

 

 

 

3

 

deixa disso

siga o risco

o que é a vida

se não olho e cisco?

seja arisco

sangra o resto

o que é a morte

se não sábio disco?

nunca teremos o pouco aquém do menos

nunca seremos o muito além do mais

a cota será certa

a senda será meta

sempre serena será

a reta eterna da

raça toda

 

 

 

 

 

4

 

hoje sonetos

amanhã só netos

 

 

 

 

 

5

 

rio de fevereiro,

quando alguém me diz:

só em março, depois do carnaval

rio de março,

o ano só começa em abril

rio de abril,

o primeiro dia é quando somos sinceros

rio de maio,

desse, rio demais

é o mês do meu aniversário e

não há nada pra comemorar

rio de junho,

o carnaval ainda não acabou

rio de julho,

não há motivos, por isso rio

rio de agosto,

mais pra lá do que pra cá, mas ainda riso

rio de setembro

o dia sete é uma boa piada

rio de outubro

sou uma criança, mas eles não acreditam

rio de novembro

o ano seguinte já mostra o seu riso amarelo

rio de dezembro

o vizinho me sorri, só porque é natal

em janeiro não rio

meu riso tira férias

vai ao Rio de Janeiro

curtir um choro

 

 

 

 

 

6

eis minha vida de volta ao ninho

tardes tornam a pousar

meu sorriso esgueira-se sob os escombros

de arrependimentos mofados

meu verbo, cortado ao meio, não mais agoniza

seus olhos não estão mais nos faróis dos carros e

a Lua já não é mais somente um satélite

melhor do que não esperar

é uma esperança sem memórias.

 

 

 

 

 

7

 

entre a caneta e o

guardanapo; um dilema

eu não sabia se tentava ou se

ia ao cinema

não fiz uma coisa nem outra

assoei o nariz com o quase-poema

ah! chega!

com ele ou sem ele

nada muda

é tudo cena

 

 

 

 

 

8

 

o mar

o azul

o domingo

bati na porta de Deus

Ele estava dormindo

o bar

o sol

o alarido

fui convidar Deus para um trago

Ele havia saído

então!

bebi

o mar

o azul

o domingo

o bar

o sol

o alarido

só não bebi Deus

porque Ele havia morrido

 

 

 

 

 

9

 

os vestidos escondem

mais segredos que o mar

 

 

 

 

 

 

10

 

vá

pode ir

dê voltas pelo mundo

faça amor aos montes

case de novo

tenha filhos

mas, daqui, de dentro de mim

você não sai.

 

 

 

 

 

11

 

os macacos

desceram das árvores

aí nasceu o trabalho,

a infidelidade, o divórcio e

o apartamento de um dormitório

 

 

 

 

 

12

 

seu corpo

é o único argumento

que não sei

refutar

 

 

 

 

 

13

 

seus olhos

são meu livro de cabeceira

 

 

 

 

 

[ imagem: foto do ator canadense

Michel-André Cardin, como La Vigie,

no show Varekai, Cirque du Soleil ]

 

 

 

 

 

Reynaldo Bessa é músico, escritor e poeta. Já lançou cinco CDs. O mais recente, com músicas suas sobre diversos poemas de autores como Drummond, Leminski, Auta de Souza, Alphonsus de Guimaraens, além de Fabrício Carpinejar, Wilmar Silva, Ricardo Corona, Alice Ruiz entre outros. Em 2008, lançou seu primeiro livro Outros Barulhos — Poemas (Prêmio Jabuti 2009, poesia) que também concorreu ao Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2009. Em 2010, foi um dos vencedores do Prêmio Sesc de Literatura em parceria com a Editora Record, com o seu livro de contos  Algarobas Urbanas. Tem poemas, contos, crônicas publicados em revistas, jornais e suplementos literários pelo Brasil e exterior. Escreve o blogue Algarobas Urbanas. Seu site: www.reynaldobessa.com.br
 
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