©DiOli
 
 
 
 
 
 
 

 

KAROL PENIDO

 

Embarka no Barkaça [http://barkaca.blogspot.com], novíssima geração do VLER de Divinópolis/MG, faz experiências eletrônicas e performances poéticas. Inaugura-se em cada arte. Tem blogue próprio: www.aquarelaemversos.blogspot.com.

Nesta edição: "Vai pro brejo" (parceria com Márcio Almeida) e "Pássaros".

Contato: karolpenido@yahoo.com.br

 

 

Vai pro brejo

 

 

Pássaros

 

 

 

 

 

 

 

PAULO MERÇON

 

No prefácio de Abreviaturas do invisível, lançado no final de 2009, Edgard Pereira Reis, elegante como sempre, assinala os diferenciais do poeta, com ênfase na "associação entre águas lapidadas" e na escrita poética, a "atenta percepção" numa "disponibilidade laboriosa ao imponderável, ao enigma, ao mistério, a uma forma inédita de expressão", o aprendizado da partilha, o "repertório de fragmentos", a "permeabilidade a outras formas de arte", "o resgate de sentidos esparsos", as metáforas da "espuma", a "revitalização da metáfora, a "escolha da cidade como tema", a "altíssima voltagem e das filigranas expressivas do lirismo".

         Somente um autor/crítico com imensa sensibilidade e generosidade responsável, como a de Edgard Reis, poderia captar com tamanha competência o lastro, o rastro perpetrado pelo jovem poeta estreante.

         Há um bom tempo não me sentia de tal modo surpreendido como o fui por este Abreviaturas do invisível. De pronto, me deparei com um título não apenas imprevisível, mas já obrigando a acuidade máxima na leitura do seu teor eivado de estranhamento, liricidade, surrealismo, garimpos fractais. Então, deduzi que o invisível estava nos versos da contracapa: um intervalo fugaz entre a existência e o nada. E, a partir daí, o livro tornou-se arrebatador. Pus-me, na sequência, a pensar sobre a palavra "abreviatura", desossando-a em nível semântico-linguístico: ela ABRE VIATURAS, cria VIAS de acesso para esculpir signos raros. O que ela condensa poeticamente (BREVE), se expande no imaginário. Depois veio a surpresa de o poeta escrever com palavras, compor versos-blues como quem se põe a lapidar gelo sob "o brilho do saxofone" e a "insônia das rosas". E vieram as metáforas profundas como o não-existir a aliciar a comoção: "o dia amanheceu — levemente envelhecido o céu já disfarça suas rugas"; "a arquitetura de cada silêncio"; "os músculos sempre jovens da água"; "a borboleta laranja eram os lábios / do meio-dia dizendo à relva"; "era a muda escultura / de todo som e do que restará um dia / em fósseis de verve ou angústia"; "o segredo ainda úmido se anuncia"; "que em cada instante, só o efêmero perdura"; "no quarto dos hóspedes / a estante é um rosto / cheia de bocas onde / os livros são dentes"; "orquídeas em desvario"; "todo o litoral abreviado num píer". Além de dois momentos particularmente emblemáticos: o verso "na paisagem do nada", que condensa o título do livro; e o verso-indagação "a ausência existe?", síntese do livro. Abreviaturas do invisível é um livro denso, de quem tem convívio com a poesia e profundidades de quem esculpe espumas, de quem, com dignidade das tradições genuínas, constrói para nada. Contato: editora@7letras.com.br   

 

 

O Copo D'água

 

Paulo Merçon

 

Dentro de um copo de vidro

se exasperam!

E logo se acalmam

os músculos sempre jovens da água.

Um discurso, veloz e prolixo

no formato do vidro se cala

e o silêncio

cristalino e estático não sabe

sua angústia inata de oceano,

a ânsia tramada de tempestade.

Ou, de outro ângulo,

a água límpida daquele copo

talvez fosse um pincel

(invisível) entre os dedos

paralíticos

da sede.

 

 

 

 

EDUARDO SABINO

 

            Ideias noturnas — sobre a grandeza dos dias (São Paulo: Editora Novo Século, Coleção Novos Talentos da Literatura Brasileira, 2009) é livro de autor in progress em vias de maturidade mediante o alcance de dicção própria com a narrativa de ficção. Seu autor é às vezes kafkiano; outras, relator no viés do caso e da crônica, expondo-se numa escrita simples, na qual predominam descrições de vivências locais ou interativo-familiares, cujos relatos, boa parte deles, estão ainda engessados numa estrutura "acadêmica", sem comprometer o teor geral do livro. Quando Sabino ousa, produz conto antológico como "Cidade verbal", metalinguístico, ou o realismo fantástico de "Doce lar", supimpa. A ficção do jovem autor (finíssimo!) está impregnada por uma ênfase dada à marcação do tempo, impressionando o registro que faz em descrições sequenciadas: "A casa fazia o centésimo décimo primeiro aniversário" – "Quatro pessoas e centenas de baratas" (15) – "Dois meses, dez dias, nove horas, cinco minutos e alguns segundos que ela expirou" (21) – "Nono, por favor. Sexto andar, senhor, sétimo, oitavo, a poesia" (26) – "em um dos quatro cantos do meu mundo" (28) – "em questão de segundos" (idem) – "um terceiro ser humano deixou o jardim de Éden" (31) – "Espero há um mês por essa festa!" (45) – "nesses trinta centímetros que separam nossos rostos" (49) – "fazia naquele instante 48 horas" (50) – "tomado há dois dias e uma festa" (53) – "Eu tinha 14 anos de idade" (57) – "ela ressuscitaria no terceiro dia, na manhã de segunda" (61) – "Passados noventa minutos" (73) – "descobriria quanto vale um milésimo do infinito" (97) – "Os algarismos finais arrepiam-me" (103) – "a comida não sobrevive mais um minuto nas mãos miúdas" (118), entre outros, inclusive a materialização do tempo virtual, no conto "O vírus".

         Algumas marcas ficcionais de Eduardo Sabino são a recorrência ao assunto morte, família, lar, doenças e descrições médicas. Às vezes o autor cria situações inusitadas, caso do camponês que toma vinho à luz de velas, em "Abismo". E às vezes ainda se permite grafar alguns clichês e lugares-comuns. Nada impede que Idéias noturnas acenda o interesse do leitor exigente por estórias bem contadas.

Contato: eduardosabino1986@yahoo.com.br

 

 

 

Cidade Verbal

 

Eduardo Sabino

 

  Largaram o verbo atrás da Serra do Curral. De lá o coitado tentou fugir do mundo, pegando carona no sol. Com jangada de pedra conjugou-se tempo, até descer com a água das chuvas para o asfalto.

Passou por entre os carros na Nossa Senhora do Carmo, misturado às balas, cuspindo fogo, mas os vidros permaneceram fechados. Para chamar a atenção, escondeu nos olhos de sujeitos de um metro e meio. Alguns vidros se abriram e objetos caíram direto nas mãos pequenas.

Mas o verbo, pequenino, queria mesmo era dizer. 

Então subiu o morro, entrou no barraco, chegou na hora sagrada da refeição. Entrou pelos ouvidos, saiu por outros, atraiu-se pelo grito de uma mulher. Afogou em pancadas, com a dita cuja, por infiltrar no sangue da terceira pessoa. Singular morena, do corpo surrado, como diria os gringos, o Brasil é legal — para todos, legal. 

         Mas o verbo pequenino não queria ver. Queria era percorrer.

         Desceu o morro, subiu aos prédios. Foi cuspido pela boca do homem, tomou forma de faca. Entrou no coração do adolescente, saiu escorrido em lágrimas no travesseiro. Então o signo-verbal desceu desalentadamente, alado pelo diabo, caiu em ponto, tomou o coletivo. Passou espremido por entre os corpos, escorregou na bengala tremida, sumiu por baixo da roleta. 

Saiu debaixo da saia, pulou na caixa de balas, foi sugado pela língua seca e saiu decorado. Passou de cansa pra câncer, de câncer pra ânsia, de ânsia pra esperança e desceu no centro.

Mal tocou a calçada e foi pisoteado. Escapou na corda, lançado no jornal que acorda o dia. Encontrou amigos empalhados, vendidos a 25 centavos para leituras corriqueiras de coisas permanentes.

Quer ser lido ali no meio, encara o cara que olha pro nada. Nada nas ondas de cabelos loiros artificiais. Segura a franja e balança para os olhos verdes, e nada.

Em frangalhos vai à Pena, onde se traveste de adjetivo. Mais vale, quem sabe, um adjetivo no ar, do que um verbo pisoteado? Agora lhe enxergam e lhe xingam. Veem-no, mas não podem lê-lo.

         Leva socos no âmago dos signos. Distorcem-no, enforcam-no, todas as pessoas, pelas costas da terceira pessoa do plural, participam da surra.

         Sobrevive. Levanta, sacode o Pereira, dá a volta pelo Silva. Serve da língua afiada do motorista para alcançar os ouvidos do motoqueiro. Dali de cima, vendo as ruas passar como um texto sem contexto, sonha em pilotar e costurar as almas como as motos, o trânsito.

De boca em boca, chega à Pampulha. No silêncio das caminhadas e bicicletas vai adentrando no lago. Dessa vez, tomado pelo assombro da lua, que pousa sobre a cidade sem ousar tocá-la. Logo o verbo que se toca, salvo pelos resmungos de um sujeito oculto. 

         Toma-lhe de empresto, acompanhando-o na correria até prestar queixas do visto. Dói-lhe o cacetete nas costas do moleque. Foje.  Vai do quer que haja, ao que quer que não houve, permeia as migalhas do hoje, mas quer no subjetivo o presente do subjuntivo: que você aja?

         Vai parar, tomado pela voracidade do couro, em arena esportiva de Belo Horizonte. Ricocheteia de cara em cara, retumbante nos peitos azuis e brancos,  brancos, pretos e amarelos.

Na multidão nem se sente sozinho. É hino, é raça, graça paga com suor e sangue. Passados 90 minutos, o vocábulo, encabulado, é só soluço. Viu o quanto era maldito. Não quer mais encarar, quem não lhe pode ver. Sob luar, escorrega no silêncio dos namorados, compartilha adeuses analfabetos.

Toma o metrô, cai pelos cantos da Praça da Estação, por onde está e nunca esteve. Acorda embriagado na boca do mendigo. Quer voltar a dormir, voltar pros sonhos do pedinte, onde conjugava o mundo sem dizer.

         Sai cambaleando até um táxi. Vai da boca do engravatado para o monitor do notebook. Experimenta o não lugar, quase esfarela em bits na linguagem pictórica. Escapa da tela agarrando flores virtuais, salta do carro, cai em cambalhota de alívio, de volta ao odor das calçadas.

Cansado de verdades não ditas, dá voltas na cidade, impulsionado pelos gritos do palanque e cai, de novo, no ovo da Serra do Curral.

         Agora, o verbo é pura aliança com o silêncio. Na visão panorâmica do texto urbano, espera a mudança das subordinações, a revolução das pessoas. Sonha ainda em dizer. Quer transformar o sujeito simples em sujeito determinado, ir além dos tempos e mágicas enganosas.

A semente verbal somente queria dizer. Estava convicta: aquilo não passava de uma frase difícil.   

 

 

 

JAVIER VILLAFAÑE

           

Nasceu em Buenos Aires em 1909, onde morreu em 1996. Ficcionista do realismo fantástico, poeta, narrador, ensaísta, pensador e andarilho, iniciador do teatro de bonecos na Argentina. Em 1933, criou sua célebre personagem Maese Trotamundos y la carreta La Andariega, percorrendo com ela dezenas de cidades. Em 1940, foi designado pelo governo argentino a divulgar oficialmente a atividade teatral de bonecos por todo o país, publicando uma coleção de livros relacionados a essa atividade. Em 1967, viu-se obrigado a auto-exilar-se, residindo na Venezuela e em seguida, na Espanha. Regressou a Buenos Aires em 1984, quando foi recebido com premiações e louvores. Sua prolífica obra foi traduzida para o português, francês e italiano, sendo reconhecida em várias partes do mundo. Entre seus livros constam: Circulen, caballeros, circulen; Don Juan el Zorro, Historiacuentopoema.

 

 

A parede

 

Javier Villafañe

 

         Numa cidade na costa do Pacífico há uma parede que está prestes a cair. São os restos de uma muralha que existe há séculos — pedra sobre pedra — levantada pelos índios.

         — Cuidado, diziam os habitantes da cidade quando algum turista a passear ao lado da parede —, no cruzamento da rua.

         Era um perigo essa parede. Podia cair a qualquer momento. Sobre a parede faziam a sesta os gatos no inverno. Havia lagartixas ao pé da parede. Havia uma trepadeira. Havia formigas que subiam e desciam pela parede. Havia ratas debaixo da parede. Em um buraco da parede havia um ninho de pássaros. Havia aranhas.

         Um dia houve um terremoto. Tudo foi destruído na cidade: a igreja, o hotel, as árvores. Só restou a parede de pé, inclinada, a ponto de cair. (Tradução de Márcio Almeida)

 

 

 

 

 

DiOli  [David Willian de Oliveira]

 

É um poeta que justifica a leitura pós-modernidade da poesia experimental. Novíssimo em todo sentido. Mas não novamente. Fazendo jus à inclusão entre o que há de melhor na produção contemporânea. Com uma vantagem: por conta própria. Oriundo do Barkaça [http://barkaca.blogspot.com], consolida seu trabalho em Corações, víscera e sangue, prova cabal do seu crescimento em busca de posicionar sua dicção própria de fazer poesia hoje. Seu livro, visceral, porquanto reflexivo, endógeno, bem que poderia ter por epígrafe um verso de Mário de Andrade: "Há uma gota de sangue em cada poema". O livro, inédito, é a resposta segura de um aprendizado honesto, que inclui leituras, vivências, experimentações, que agora confluem num texto que diz muito, que se expõe com as marcas de um poeta que empreende luta renhida com as linguagens. Há em Corações, víscera e sangue alguns focos norteadores de um trabalho realmente criativo. Não por empréstimo de favor literário, mas de convicção, coerente. O 1º deles refere-se à renovação antropofágica que conscientemente o poeta se propõe a fazer com toda visceralidade ante "esse excesso de angústias e de pelos". No 2º foco tem-se a presença de uma ironia leminskiana, perpassando às vezes pelo Nicolas Behr dos anos 70/80 e, por vezes, pelo "Assassigno" de Márcio Almeida, cutucando a clivagem do sarcasmo, mormente nas entrelinhas dos poemas mais experimentais.

Outro foco de leitura está na experimentação semântico-linguística pós-concreta, pós-drummondiana, agregada a um jeu des mots. Há no miolo um lirismo realista, a exemplo do poema "é foda o que v. merece, meu bem", de "transa sex boate" e de outros. Foco recorrente em DiOli é a exploração crítica da urbanidade, de que o poema

 

na fila que irrompe a madrugada

SUS

to

 

é antológico. Idem "na raul soares", este dando a ver um cartão-postal autêntico de uma BH locus da transigência que acontece naquela praça confluente de destinos urbanos, ao expor o ser humano a todo tipo de prazer, humilhação e risco, como por décadas vivenciei também, de um 23º andar da Rio Grande do Sul com Augusto de Lima. Há outro foco que remete à inquietação existencialista: "enquanto assisto a vida", p.ex., no qual o poeta sintetiza o desencanto pós-moderno, ao mesmo tempo em que ainda tenta imprimir um pouco de esperança cínica no cotidiano das palavras, porque elas dizem o outro, agregam a outridade. A alteridade acontece nos poemas com a força emocional de quem perde uma mãe todos os dias. Outro foco diz respeito (ou à falta de) ao (f)erotismo — a linguagem poética é bem construída, provocativa, igualmente irônica e não raro machista. E há, também, os sonetos "p.o.e.m.a", "caco fonia", perfeitos!

Importante destacar para os futuros leitores deste Corações, víscera e sangue, o diálogo do poeta com linguagens das vanguardas históricas, como a intenção de amealhar estranhamento e surpreender o leitor com uma poética que com toda certeza e sem favor algum é da melhores da geração de DiOli. DiOli representa o que há de  melhor em criação poética na atualidade. É o barkaça que adentra um porto seguro em meio às incertezas de tudo. Contato: dioli@rocketmail.com  

 

 

 

 

CARLOS ANTONIO LOPES CORRÊA

           

O bilíngue Língua bifurkista — 13 poemas e um enigma, publicado pelo Grupo Educação, Ética e Cidadania, Divinópolis/MG, 2010, é de intuição quase premonitória. Resistência poética. Lopes batalha com a palavra há décadas. Participou de Dazibao, coeditou Barkaça, empreendeu o projeto Caça-palavras da literatura divinopolitana e publicou nas coletâneas Prelúdio penetrável (1984), em parceria com Camilo Lara, e Um múltiplo comum (1996). Contato: clopescorrea@bol.com.br

 

 

Esfinge

 

Carlos Antonio Lopes Corrêa

 

sobre a palavra tirana investigo

vasculhando as melhores

enciclopédias

tirana — a palavra —

entre fileiras de estantes

se enfeita

entanto

quero a tirania da palavra

em páginas abertas sobre a mesa

pulsando

inclemente

para poder subvertê-la

 

 

 

JOÃO GILBERTO LARA

 

João Gilberto Lara (Belo Horizonte, 1990), é estudante de publicidade na PUCMG e, desde 2007, dedica-se à elaboração de videopoemas. É autor do blogue Frame a Frame [www.deframeaframe.blogspot.com].

Nesta edição: "Lâmina sobre a íris" e "A menor parte", ambos em parceria com a poeta Adriana Versiani.

Contato: joaoglara@uol.com.br

 

 

Lâmina sobre a íris

 

 

 

A menor parte

 

 

 

 

 

 

ADRINO ARAGÃO

 

Autor amazonense, mestre da minificção, humílimo, parece não se dar conta da importância que tem na Literatura brasileira. É objeto da tese de pós-doutoramento de Joaquim Branco, de análise de toda sua obra que inseri em meu livro A minificção do Brasil — em defesa dos frascos & comprimidos, e é unanimidade crítica, não obstante carecer também de maior visibilidade inclusive acadêmica. Nilo Maciel afirma ser ele "dos poucos que saíram íntegros do turbulento carnaval literário iniciado nos anos 1970", de cuja época há que incluir-se com toda justiça literária tambérm Caio Fernando Abreu, Domingos Pellegrini, Sérgio Santanna, Ignácio Loyola Brandão, João Antonio, Oswaldo França Jr., Edgard Pereira Reis e, na poesia, entre outros, Ana Cristina César.

         A obra aragonesa pode ser analisada sob vários enfoques, destacando-se a intertextualidade.  Seus livros, sobretudo os de minificção, onde se o tem com maestria estilística, mantém uma narrativa seccionada, próxima da redação jornalística e da fragmentação pós-moderna. Comum em seus minitextos a referência ao bestiário, influenciado positivamente pela vivência in loco da riqueza ecológica do Amazonas, mas também pelo paideuma da tradição lítero-cultural latino-americana. Seu temário, no qual predomina o diálogo intermitente com escritores e a reflexão sobre o ato de escrever, a Literatura e o leitor, inclui forte influência bibliográfica, religiosa, epifânica, de linguagem bíblica. Comuns em seus minicontos são as situações propensas ao fantástico, manutenção de símbolos recorrentes. Ele sabe usar o legado da cultura popular sem cair no exótico folclore nacional. Sua marca mais contundente, contudo, está em o autor ser personagem de si mesmo, num jogo de metalinguagem. Tigre no espelho (1993) reúne todas estas referências de sua produção ficcional. Trata-se de "uma homenagem ao ofício de escrever", assinala Emanuel Medeiros Vieira, no "Posfácio". Não raro, Adrino Aragão usa o mesmo jogo de espelho para projetar a fabulação onírico-real de Borges, travando como ele próprio, ficcionalmente, diálogo elucidativo das principais questões postuladas pelo escritor portenho. O autor transita referencialmente entre Kafka, Kipling, Mark Twain, Lewis Carroll, De Quincey, Stevenson, Walt Whitman, Homero, Shakespeare, Leopoldo Lugones, Chesterton, John Donne, Júlio Verne. Adrino Aragão questiona, p.e., quem é quem na rede de significações literárias, e, consciente do clássico conceito de Julia Kristeva — "Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto", ele desempenha, conscientemente, o papel de operador de leituras. É o que Borges havia feito em "Kafka e seus precursores" (in Outras inquisições, 1952), em cujo texto inverte o processo de produção, transformando Kafka em modelo para os que escreveram antes dele, originando daí uma tradição. Com isto, os precursores tiveram a priori a intenção de levar o leitor a estabelecer novos nexos relacionais entre o que é e o que se supõe ser.

         Analiso a obra aragonesa com o seguinte esquema: intertextualidade ligada ao conteúdo, intertextualidade associada ao caráter formal dos livros, intertextualidade ligada a modelos de conhecimentos globais, às estruturas, superestruturas e aspectos formais de caráter lingüístico típico de cada narrativa, os contra-argumentos, textemas, sintagmas estereotipados e perífrases léxicas (se alguém se interessar, é só pedir e receberá o ensaio na íntegra).

Contato: adrinoaragao@gmail.com

 

 

Conto, não conto

 

Adrino Aragão

 

         É isso aí, Albertus. Gostei de sua análise/crítica. Porque longe daquele gosto/não gosto. Do elogio fácil ou da crítica tendenciosa. Em vez disso, você dá um mergulho, vai lá no fundo, até atingir os meandros da obra. Traz à tona o nem sempre revelado nas primeiras leituras ou mergulho inicial. E então o leitor se descobre (ou redescobre) na fonte/nascedouro/feto.

         Embrião de conto, ou situações/atos que seriam sementes/gêneses de alguma obra final que o autor não ousa. Conto, não conto. Ou poesia? O questionamento/conclusões se justifica. Mas me pergunto: o que isto importa? Vale mais o texto — e a literatura acaba sendo mesmo texto. Aliás, esse foi o propósito. A intenção/intuição. Quis o conto não conto, liberto da camisa de força. Proposta ousada, naturalmente. Até mesmo para os escritores "de peso". Mas o que é projeto de arte, senão uma proposta de ousadia. O escritor-aprendiz ousa. Obra/esboço — projeto.

         Por isso, Albertus, conto não contando. Busco o leitor. Quero (faço-o) cúmplice. E o texto se faz. Transcende. Voo. Inquietação. Dizer/sentir. Significado/significante. Impacto. Dor? Alfinetada apenas. A palavra se insinua. Metáfora. A realidade se descobre sonho. Caminhada/queda. A palavra se reparte — labirinto. Chegar? Nunca se sabe.

         O artista/aprendiz é (se faz) amargo. A ferramenta abre talhos. Não há lógica nem atalhos. Literatura: compromisso de vida. Não há fuga. Porque estigma. Danação. Angústia. Que se faz gozo. E renasce a cada desfalecimento.

         Eis, meu caro Albertus, o conto/canto/texto/feto. O grito lúgubre. A realidade se transpassando. O sonho. O poeta. Disse/não disse. O projeto se (re)faz. Labirinto. Obra/vida — metáfora. Deu pra entender, Albertus?

 

Primeiro livro

 

         Pagou a pequena edição de seu livro e se sentiu um contista realizado: distribuiu um a um, pelas ruas da cidade, ao apelo de que, como recompensa ao autor, lessem os contos.

 

Encantamento

 

         A canoa solitária descia de bubuia as águas barrentas do Solimões. Ao redor de chapéus de palha que flutuavam ao sabor da correnteza, o festim dos botos anunciava o encantamento de duas cunhas do vilarejo.

 

Paixão

 

         Desquitado, deu agora de encher a cara e fazer serenatas para a ex-mulher.

 

Parábola

 

         Afastou o cálice, a toalha branca de morim sorveu o vinho de mesa. A mulher xingou a repetição do gesto muito antigo do marido. O pão, de muitos dias, não pôde ser repartido. O cão magro lambeu os pés do dono, e saiu sem esperança. Do céu escuro desceu a estrela azul, e mergulhou no mar. Foi quando a pedra encantada surgiu, e os peixes se multiplicaram.

 

 

 

 

ACHADOS & PERDIDOS

 

"A História deve manter a vida viva". [Américo Castro]

 

"Nenhum autor inventa o escrever sozinho. As ideias estão no ar e não pertencem a um único indivíduo. Autor é sobretudo um redutor de complexidade e desenvolve uma função temporária, isto é, fazer uma síntese a partir dos fluxos de informação que sejam transmitidos por toda sociedade e que a atravessem de um lado ao outro. Quando um escritor escreve, todo o mundo escreve com ele. Wu ming se opõe ao culto entediante da celebridade e deseja superar os mitos, os ritos e os detritos da propriedade intelectual. É contra e para além do parasitismo das grandes corporações e dos dinossauros estatais da andropausa. Objetivo Wu Ming é ajudar a contar melhor". [Do Manifesto Wu Ming, Itália, 1994-99]

 

Autor coletivo: "Todo cidadão é um repórter". [Lema do Ohmynews, jornal da Coreia]

 

"Naqueles remotos, longínquos anos, Biúte conversa com o Baravelli, seu colega no Grupo Escolar Júlio Lucante, a primeira escola pública de Assombradado, na qual os estudantes passadistas vão dando continuidade à tradição das sabedorias que já esquecemos:

— Ei, me empreste a borracha.

— Eu não tenho, nunca trago borracha.

— Por que, Biúte, você não costuma errar?

— Não, bicho, é que eu jamais acerto". [Uilcon Pereira, Ruidurbano: uma antologia]

 

 

 

março, 2010