Espiã

 

Comia com os olhos

admirava detalhes

os olhares imorais e reles

Que brotavam aguinha na  pele

grudavam coxas e dedos

e fazia, fazia, fazia

e subia, variava, ora lua, ora estrelas: como gostava de vê-las!

 

 

 

 

 

 

Exaustão

 

Transpiro solidão

coração suado pingando

noites minguando

Sem quando

sem início

sem fim

desperdício

de mim

 

 

 

 

 

 

Espólio

 

O amor

ainda e há  meses

doendo às vezes

 

Sobre panos onde  se come

lençóis onde se dorme

As travessas brancas

peças tantas

lãs e mantas

e

fotografias.

 

Desses dias.

 

 

 

 

 

 

Silêncio

 

As coisas são  mansas

Servem e nos lembram  

por algum tempo de alguém

Sobretudo

há uma paixão muda entre nós três:

De nós duas

E

do que se fez.

 

 

 

 

 

 

Perecível

 

Eu não guardo poesia.

 

A Poesia é dura. A Poesia não se molha.

 

A Poesia não estraga.

 

Ela não precisa ser guardada.

Eu preciso. Eu estrago.

 

 

 

 

 

 

Copo de mágoa

 

Deságua

em

jato a esmo

 

Chora

traída mesmo

 

 

 

 

 

 

Náufrago

 

Toda vez que um amor acaba

O coração boia na água parada

Roxo

 

frio

Em alto-nada

 

 

 

 

 

 

Crime passional

 

Amarraram o amor numa tábua

E mataram à paulada a noite estrelada.

E a felicidade morria sem dizer nada.

Depois

ainda rasgaram todo o corpo do sonho.

 

Foi um crime. Um crime medonho.

 

 

 

 

 

 

De...lírios I

 

Tu me olharás e serei teu novo amor

lindo e livre

Cantarás meus encantos e minhas curvas

e juntaremos os dias as noites as semanas e os meses

E todas as vezes em que nos sentirmos pra sempre.

 

 

 

 

 

 

De...lírios II

 

Ela faz tipo

eu fito

é sim

acredito

ela ri

ela vem

eu estava

ela também

 

Tesão, amém!

 

 

 

 

 

 

De... lírios III

 

 

A paixão  mexida   batida   em neve:  a clara  leve

depois  a massa   amada   assada   e   servida à mão

quente     pelando         a   tez      do   coração.

 

 

 

 

 

 

Azul e rosa

 

Teu meio em mim

Chupo pérola

engulo sumo

e

te contemplo

A

língua quente entre as tuas pernas

não é sede

não é fome

A

língua quente entre as tuas pernas

é músculo

que lambe e entra

ou um amor

que te experimenta

experimenta

experimenta

xperienta

perienta

erienta

rienta

ienta

enta

nta

ta

 

 

 

 

 

 

Delas

 

Porque uma é feita de palavras

E as tem como alimento

Enquanto a outra é feita de tinta

E escreve sentimento

 

Mas se encontram

E se escrevem

Uma sobre a outra

Longe ou perto

Em claro alfabeto

Que  elas

Têm e usam

Se escrevem e abusam

com a propriedade das que não acabam

Porque são palavras

E não se apagam...

Porque

Uma é corpo e alimento

e

A outra é tinta e sentimento!

 

 

 

[imagem ©r. martinez v.]

 

 

 

Neusa Doretto. Atriz e dramaturga (EAD/USP). No teatro, trabalhou com Renata Palottini, Fausto Fuser, Neide Archanjo, Guarnieri, Lourdes de Moraes e Teresa Aguiar. Paralelamente, mantém atividade literária em jornais como Diário de Sorocaba, Diário do Povo de Campinas, Revista Vivere e Boletim de Artes Plásticas. Como orientadora cultural, trabalha com projetos ligados ao teatro e de incentivo à leitura, apoiados pela Secretaria de Cultura de Campinas, desde 1991. Dirige o "Teatro Falado", de incentivo à leitura dramática, desde julho de 2007, trabalhando textos e poemas da literatura contemporânea. Escreve os blogues Poesia Rápida, Sinceridade Brutal e Poema Curta-Metragem, que edita.