eder galdino *
 
 
 
 
 
 


 

Noel Rosa foi bem mais que um compositor genial e virtuoso criador de samba-canções que lhe converteram à imortalidade e à atemporalidade de sua obra no contexto musical brasileiro. Noel foi, e é, a síntese máxima do boêmio carioca, do Rio antigo de paixões. Sua obra foi o verdadeiro big bang da MPB contemporânea.

 

Um sujeito esquisito, franzino, com uma deformação cutânea no queixo. Seu nascimento foi difícil, pesava quatro quilos. Os médicos, diante das dificuldades do parto, resolveram usar o fórceps. O menino foi extraído a ferro e traumatizado com fratura do maxilar inferior, originando o defeito que se acentuava à proporção que crescia. Várias foram as tentativas de correção, sem sucesso. Noel cresceu como todo garoto do subúrbio carioca: Amava a rua, a confusão dos amigos, as pipas, os piões e os balões. Era também artista de estribo de bonde. Menino alegre e de gênio bom. Sua casa era uma festa musical, aliás, a família era de uma musicalidade genealógica: Sua mãe tocava bandolim, seu pai, violão, sua madrinha, piano, sua tia, violino. As crianças participavam, ouvindo. Foi dona Martha  quem iniciou Noel na música, ensinando-lhe a tocar bandolim, entretanto, ele se sentia fascinado por qualquer instrumento. Qualquer manifestação musical era fascinante para o menino que, aos 14 anos, já fumava, bebia cerveja e boas doses de traçado nas rodas de choro. Nos balaústres de bonde, exibia sua malícia, seu deboche e toda sua graça imaginativa. Já era uma supernova... a célula inicial de uma genialidade. Tocava violão como ninguém. Amava, cada vez mais, a música e a poesia.

 

Como ex-aluno do tradicional Colégio São Bento, com excelente formação e redação primorosa, Noel Rosa chegou a frequentar o primeiro ano da Faculdade de Medicina. Só que os ecos da boemia e do samba soaram mais alto; Fazia ponto no Café Vila Isabel, do Carvalho, local onde fez grande parte de suas composições, durante as madrugadas. Era ali que o encontravam ou deixavam recados para que fizesse serestas e serenatas. Foi a partir do Café Vila Isabel que começou a fazer parte do Bando de Tangarás. Sua primeira aparição em público foi em 27 de junho de 1929, no Tijuca Tênis Clube. Com apenas 18 anos. Ao seu lado, Almirante (pandeiro e vocal), Braguinha (ele mesmo, o João de Barro no violão e vocais), Henrique Brito (violão) e Alvinho (violão e vocal). Esses eram alunos do Colégio Batista na Tijuca e foram convidados a gravar o primeiro disco no ano seguinte, pela Odeon.  As casas das ‘tias baianas’, em especial, Tia Ciata, com seu candomblé e festas que duravam dias, reunia todos os ingredientes para o surgimento do novo ritmo nacional. Noel xeretava por ali, no alagadiço das ruas, de casa em casa. Sinhô e Pixinguinha eram os batutas do local, onde se ouviam cordas, pianos, flautas, clarinetes e metais.  Os ‘malandros’ do ritmo circulavam pelo carteado, pelos antros de meretrizes, pelos terreiros de jongos, rituais e capoeiras... Nilton Bastos, Ismael Silva, Bide, Baiaco e Brancura, João da Baiana, Sinhô... Muita sabedoria popular em um lugar só.

 

Em 1929, Noel arriscou suas primeiras composições, Minha Viola e Toada do Céu, ambas gravadas por ele mesmo. Mas foi no ano seguinte que o samba muito bem humorado Com que roupa? cuja melodia foi modificada por Homero Dornellas e a letra melhorada por Nássara, seu grande amigo,caiu de vez no gosto popular.  Hoje é um clássico do cancioneiro brasileiro. Essa música foi inspirada numa ocasião em que, quando ia sair com os amigos, Dona Martha, preocupada com a boemia desenfreada do jovem Noel, escondeu suas roupas. Noel saiu assim mesmo, com roupas emprestadas e atendendo o apelo boêmio.  No caminho compôs essa pérola eternizada por décadas e regravada por inúmeros intérpretes da MPB moderna. O samba explodiu em todo o país no carnaval de 1930 e apareceu na boca do povo, surpreendendo até seu autor.  A expressão com que roupa? passou a fazer parte do vocabulário do carioca, durante as dificuldades. A velha guarda conta que o cantor Ignácio Guimarães ofereceu a Noel a importância de 180 mil réis pela aquisição da música, o que foi aceito. Dessa forma, o cantor tornou-se dono do samba mais cantado no Brasil. Depois de Com Que Roupa?, Noel compôs sem limites. Bastava surgir um tema para que nascesse uma letra de música e, inevitavelmente, um grande sucesso. Foram 100 canções em 10 anos.

 

Noel também transitou pelo choro. Mas é considerado por muitos críticos o pai do samba moderno, o compositor que teria feito a transição do maxixe para o samba, o branco que fez a ponte com os compositores negros. Noel foi parceiro de Cartola e de Ismael Silva, no início dos anos 30. É de Ismael o primeiro samba gravado na história da musica brasileira e foi ele o primeiro intérprete também a consumar esse feito épico. Independente, ou não, de seu pioneirismo, Noel foi a pedra fundamental dessa transição. Com Vadico, um de seus parceiros mais constantes, compõs Conversa de Botequim, sucesso em 1935, Feitio de Oração e Pra Que Mentir. Entre seus sambas mais conhecidos estão também Fita Amarela, Palpite Infeliz e Último Desejo, este último de um lirismo  e densidade literária impressionantes:  "Perto de você me calo, tudo penso e nada falo / Tenho medo de chorar / Nunca mais quero o seu beijo mas meu último desejo você não pode negar..." reparem o tom de despedida quase dantesco e o lamento com o bom humor sempre registrado nas composições de Noel: "Às pessoas que eu detesto, diga sempre que eu não presto / Que meu lar é o botequim, que eu arruinei sua vida / Que eu não mereço a comida que você pagou pra mim." Sucesso eternizado pela talentosa  e polêmica Aracy de Almeida. Entre os intérpretes que passaram a cantar seus sambas, destacam-se também, Mário Reis e Francisco Alves.

 

Noel teve, ao mesmo tempo, algumas namoradas, mesmo com o biotipo longe dos ícones sexuais de sua época, Noel "passou pelas armas" muitas damas de respeito e foi amante de mulheres casadas das altas rodas sociais do Rio de Janeiro nos anos 30. Casou-se em 1934 com Lindaura, mas era apaixonado mesmo por Ceci, a dama do cabaré.  Viveu os anos seguintes travando uma batalha inclemente contra a tuberculose, que omitia e negava como podia. A boemia, porém, nunca deixou de ser um atrativo irresistível para o poeta da Vila, autor de mais de 300 sambas e que escreveu seu nome na história com pouco mais de 10 anos de carreira. Que, entre viagens para cidades mais altas, em função do clima mais puro, sempre voltava para o samba, a bebida e o cigarro. Mudou-se para Belo Horizonte, trabalhou na Rádio Mineira e entrou em contato com compositores amigos da noite, como Rômulo Pais, recaindo sempre na boêmia. De volta ao Rio, jurou estar curado. Faleceu em sua casa, no bairro de Vila Isabel, em 1937, aos 26 anos, em consequência da doença que o perseguia há 8 anos.

 

Noel Rosa completou 100 anos no último dia 11 dezembro de 2010. Para marcar a data, a Som Livre lançou o disco Noel Rosa – 100 Anos de Celebração. O disco reúne os grandes sucessos do compositor, interpretados por Chico Buarque, Martinho da Vila, Caetano Veloso, Baden Powell e Zeca Pagodinho, entre outros cantores. "Com Que Roupa?", "Pra Que Mentir", "As Pastorinhas" e "Filosofia" são algumas das canções que fazem parte da coletânea luxuosa em homenagem ao centenário do poeta da Vila. Noel não foi apenas um dos maiores compositores do país, foi aquele que mais se aproximou da alma brasileira.

 

dezembro, 2010

 

 

antonioexpress@hotmail.com

 
 
 
 

Eder Galdino *(SP/SP). Caricaturista, ilustrador, artista plástico e designer gráfico em São Paulo. Seus trabalhos podem ser vistos em www.loscarikas.com.br e www.edergaldino.blogspot.com.