BLOCO DE NOTAS

 

 

 

Régua quebrada

 

Não me importo

com numerar as penas do cisne.

 

Versejo com apetite.

Cato palavras de aluvião.

Sou sapo de língua comprida catando mosca.

 

Insisto na ingenuidade da metamorfose.

(só sei transformar sapato em borboleta)

 

 

 

 

 

 

Frango com farofa

 

No fim de semana

estendo o pano xadrez

no céu de pólvora;

 

arregalo o olho

para entrar o cisco;

 

uso a cara de bobo

e ignoro o vício;

 

O pano xadrez — início;

o cisco no olho — chuvisco;

na cara de bobo — o riso.

 

 

 

 

 

 

Só sei que vou te amar

 

I

 

A quantas anda

a secura de tua boca?

 

Fulgura ainda

em teus lábios

a liga do beijo?

 

Entende que é breve

o que se diz eterno.

 

E que a intenção

se revela no

mesmo segundo

em que a mão esbofeteia.

 

 

II

 

Esse teu ar sério

de sapatos pretos...

 

Percebes

que esse para-raios

na manhã de sol,

convida ao pouso?

 

Esse medo indissolúvel

de tua face

denuncia o temor

das grossas nuvens.

 

 

III

 

Estou aqui, sentado.

 

Sobre minha cabeça

chocam-se as nuvens.

 

Sou indiferente;

não porto guarda-chuva,

dispenso relógio,

 

sei perfeitamente

as dúvidas que pretendo ter.

 

 

IV

 

Começo a perceber 

um  certo arrepio

de santidade

através da tua camiseta.

 

Não economizo,

dou da mão

as duas faces!

 

Remexi a culpa

que me compete.

Cuspi a língua

que me consome.

 

Somente o riso,

na antevéspera

de teu gozo,

ou teu mamilo rijo de agora

— esse futuro e presente —

horizontalizam meus

pensamentos.

 

 

V

 

Bebi a cachaça das encruzilhadas;

Roubei hóstias nas sacristias;

o tridente do diabo

enfiei no rabo da mãe de santo

e fiz pior:

encarei no olho do homem!

 

Deito sujo em tua cama.

Assim quero

te dar meu desejo.

 

O frescor da pureza?

Não encontrarás na minha pele.

 

 

 

 

 

 

Sexo

 

Derramarei teu corpo sobre a relva...

 

A alma, não!...

 

A alma, sábia,

despirá a pele

e largará em meus braços a tua loucura.

 

                            A alma será o entorno...

 

De carne

entende o corpo.

 

 

 

 

 

 

Beijo

 

Quero comer a tua boca,

para misturar nossas palavras.

 

Quem sabe assim,

com as frases embaralhadas,

voltemos a criar caminhos.

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

O ESTALO DA PALAVRA

 

 

 

Ofertório

 

Certas bocas

não vestem bem as palavras.

 

 

 

 

 

 

Duo

 

Sou do tipo de poeta

que não tem cisma

de beijar o diabo na boca.

 

Sou poeta;

aprendi cedo

a mordiscar os lábios de Deus.

 

 

 

 

 

 

Rotina

 

Convivia-se com a conformidade

de ter o universo próximo de casa.

 

O espaço delimitado

pelo absurdo traço da conveniência

era marcado pelas solas dos sapatos.

(e trazia a fotografia do mijo fora da privada)

 

Para o gozo o número era par.

Pouco importava a singularidade da morte.

 

 

 

 

 

 

Um pouco antes

 

Um pouco antes do desespero

entregarei as cartas;

 

não essas falsas memórias

principiadas em momentos de luxúria.

 

Somente a coragem de um moribundo

permite alguma crueza nas letras.

 

Talvez eu comece a entender Rimbaud

diante de meu cadafalso.

 

Por enquanto, tudo é entretenimento;

só cuspe e falsidade.

 

As cores são vivas e fortes

em meu semblante de camaleão.

 

Ao menos não me persigno;

não faço falsas preces.

 

 

 

 

 

 

A prazo

 

Levem-me as horas

para os caprichos mundanos!

 

Já destaquei a etiqueta.

 

Tomei posse do indivíduo.

 

Será que não veem

no meu antebraço

o carimbo de "pago"?

 

 

 

 

 

 

Balada da carne

 

Já que o dia é par, falemos de amor.

 

Já que à frente sempre restará o horizonte,

não me enterrarei além dos olhos.

 

Já que é no vazio insalubre da cura

que se percebe a alma evanescendo,

            tragam-me uma taça.

 

Já que eu disse sim,

limitem os convidados

presentes à minha  embriaguez.

 

Já que a palavra é uma puta,

                  rasguem o poema.

 

Já que a rima é farta; e o poeta, um estorvo,

que se recompense o primeiro idiota

            a me cortar a carne.

 

 

 

 

 

 

Brava gente

 

Sempre haverá uma boca do inferno mastigando

                                                [asas de querubim.

 

Bocas escorrendo gordura

exclamando babujadas: que bunda!...

 

Bocas abertas,

implorando hóstias.

Bocas abertas,

recebendo gozo.

Bocas abertas,

reclamando o justo,

dizendo o justo que lhes convém...

 

Bocas com hálito de tabaco,

matando-se aos poucos.

Bocas ordenhando favores,

ordenando que se fechem outras bocas,

involuntariamente abertas,

           definitivamente abertas,

                      fechadas por outras.

 

Haverá sempre alguma boca

ruminando o nascente ou o poente;

 

Bocas dirão amém!

Outras irão além

e se esquecerão do dito.

 

A boca dizendo do amor,

do dissabor.

 

A boca e seu duplo propósito:

seduzir os sentidos

enquanto come o coração.

 

 

 

 

 

 

No entorno

 

"o homem é um ser para a morte"

                                               Martin Heidegger

 

No entorno havia pensamentos.

 

Nada que se diga terá serventia

quando grudado no casco dos cavalos de ferro.

 

Espertas são as samambaias

que sobrevivem na eflorescência das pedras

(aproveitam a verticalidade dos muros

onde não pisam os homens).

 

Ocupemo-nos da fuligem...

 

Enquanto tivermos pulmões para soprar as pétalas

exerceremos o ofício temerário de celebrar a vida.

 

No entorno existe uma carência desesperada de gestos.

 

 

 

OLHOS VERDES

 

 

 

Morte verde

 

Gostaria de que o final

do ciclo dos sóis visíveis

me encontrasse bestando a apreciar bromélias.

 

 

 

 

 

 

Apocalipse verde

 

O mar afoga as colinas onde até anteontem os passos deixavam

                                                  [marcas de certezas.

Os três ou quatro versos que eu deixei voltaram ao sal.

Já não restam vogais,

somente rastros na rocha dos tempos.

Rezar não adianta;

na cruz — poleiro dos derradeiros papagaios —, os musgos

viçosos sobrevivem.

O VERBO partiu e levou consigo o pecado.

O mundo suspira aliviado o retorno à solidão.

 

 

 

 

 

 

Hóstia verde

 

Vó Bela!

O homem é assim:

cultiva a ausência do verde,

e, quando este finalmente falta,

vende o que resta aos idólatras.

 

Benditos os iconoclastas

derrubadores do ídolo verde!

 

Vó Bela!

Será que chegará o dia

em que tomaremos em nossas bocas

uma folha verde como hóstia?

 

 

 

 

 

 

Poema à morte da ingazeira

 

Morre de pé o verde,

até que a inexorável gravidade

trace seu rumo definitivo:

partir para o esquecimento.

 

 

 

 

 

 

Ideal

                           

Para Vicente Nolasco

 

Abriu portas no labirinto dos séculos

e chegou ao ponto de partida.

Tinha dado a volta ao mundo

brincando de cabra-cega.

Adiante, somente a porta verde

emperrada pela ferrugem dos livros.

Usou do rastro da lesma

para azeitar a fechadura.

Lambeu os dedos até ficarem verdes

e persignou-se pela última vez.

Desarmou o trinco com uma cusparada certeira,

e foi sentar-se sobre o relógio de sol

para enganar o tempo.

 

Agora, era só esperar as borboletas...

 

 

 

 

 

 

Decreto

[para ser lido tomando água de coco à beira-mar]

 

Atenção!

Está suspensa a transitoriedade das insignificâncias.

Não é permitida a inspirabilidade do óbvio.

É mandatório o afogamento das circunstâncias.

O status quo deverá ser limpo com papel higiênico.

Será suprimido do vocabulário o beijo sem língua.

No cardápio das quartas-feiras o prato principal será o ócio.

Que se nomeiem os filhos conforme o cricrilar dos grilos.

Cada bocejo deverá ser celebrado como profecia.

Ao homem, que não se lhe falte ovos fritos com torresmo, chicletes e água fresca.

Que todos os reflexos sejam queimados nas piras da reflexão.

Para cada ser humano, um momento lento de aurora.

 

[imagens ©aarthyr]

 

Jorge Elias Neto (Vitória/ES). Médico cardiologista, pesquisador e poeta. Publicou Verdes versos (Vitória: Flor&cultura, 2007) e Rascunhos do absurdo (Vitória: Flor&cultura, 2010). Participa de vários portais e sites de literatura. Escreve o blogue O Estalo da Palavra.