Maio de 1971. Maceteado por viajantes mais experientes que eu, tento, no Aeroporto Internacional da Cidade do México, passar pela conferência da imigração sem mostrar o passaporte, a fim de tornar possível meu embarque num voo pros Estados Unidos. Havia acabado de organizar um festival internacional de música na capital mexicana e improvisava uma visita à Califórnia, embora não tivesse visto para entrar em território norte-americano. No saguão do aeroporto, a multidão empunha os passaportes acima da cabeça. Bagunça generalizada. Estendo bem alto meu passaporte brasileiro e vou passando, o policial me aborda: "Tienes visa?". "Como no?", respondo. E sou liberado para embarcar.

Salto em Los Angeles, e solicitam-me o passaporte. Escândalo. O funcionário da imigração ao ver que não possuo visto sai berrando: "Aerolíneas!". Surge um assustado representante da companhia aérea que me havia transportado. Finjo que nada entendo do que falam e exibo (seguindo as dicas que havia recebido) a passagem de volta para o Brasil já marcada para daí a sete dias. Prendem meu passaporte até que saia do país (conforme estava previsto), mas me liberam para ficar desde que notifique onde vou me hospedar. Já tinha tudo pronto. Informo-lhes o endereço do hotel e parto, livre.

O hotel indicado por amigos revela-se bastante acolhedor. Dispenso o táxi, levo a bagagem para o salão de entrada. Um casal de terceira idade, muito simpático, me recebe. São os donos da hospedaria. Ainda conforme fui instruído, apresento-lhes referências fornecidas por amigos que haviam se instalado ali. Educadíssimos, transmitem-me a má notícia: não mais abrigam diaristas, apenas mensalistas.

Olho desolado para os sofás bem cuidados, sinto o silêncio acolhedor do ambiente da sala de estar, vislumbro um pra lá de atraente cantinho de leitura. Tudo o que desejei naquele momento foi que abrissem uma exceção para mim; não só pelo lugar aprazível, como em razão de não possuir nenhuma outra indicação de hotel. Sem esquecer, ainda, que havia fornecido esse endereço à polícia de imigração.

Os velhinhos, ambos de óculos e fala suave, parecem até mais decepcionados do que eu. "Só para mensalistas?", pergunto. "Por quê?", insisto numa última tentativa de demovê-los da ideia de não permitir que fique. A velhinha se aproxima dois passos e diz: "Janis Joplin". Surpreso, fico sem entender. "Janis?". Vejo que seus olhos se enchem de lágrimas. "Ela... Ela morreu aqui", completa bem baixinho. Pergunta-me se gostava dela. Ora, como diretor do Festival Internacional da Canção, havia acabado de instituir, no concurso que organizara no ano anterior, o prêmio Janis Joplin para melhor intérprete feminina em homenagem a ela. Atitude, aliás, que deixou setores conservadores revoltados.

Coincidentemente, ao mesmo tempo em que se dava o festival ocorria também no Rio um congresso nacional do juizado de menores. Nem precisa dizer que a reação à nomeação do prêmio (ainda mais naquela época de plena repressão) foi muito forte e suscitou um debate nacional, já que a morte da cantora teria sido causada por uma overdose de heroína.

Como lidávamos com verbas governamentais e estávamos vivendo os piores momentos do regime militar, a reação dos juízes, que viam na premiação um estímulo ao uso de drogas, repercutiu de tal modo, e especialmente no Planalto, que quase pôs em perigo não só a premiação como o próprio festival. A oposição dos magistrados logo viria em forma de extensa nota divulgada à imprensa, condenando-nos. Nossa resposta, porém, foi imediata e eficaz, graças à habilidade de Augusto Marzagão, presidente do festival. O texto que João Medeiros Filho, nosso assessor de imprensa, redigiu salvou-nos a todos. Um trecho dizia: "Não se deve confundir o drama existencial de um artista com a sua obra". E relembrava tragédias existenciais vividas por grandes artistas — desde Van Gogh — que em nada desmereceram o legado que acabariam produzindo. Foi um formidável cala-boca.

Mas a cena que importa agora desenrola-se em Los Angeles na recepção do hotel simples e aconchegante, e é protagonizada pelo amável e atencioso casal.

A mulher fala da cantora como se falasse de uma filha. Depois de um comovido silêncio, pergunta se não quero conhecer o seu quarto, de onde ela partiu. Digo que sim e seguimos pelo corredor no ritmo do seu passo miúdo. Chegamos ao quarto onde Janis morrera um ano antes. Gira a chave na fechadura e o abre. O quarto está como ela o deixara. A velha senhora deixa-me sozinho e pede que, ao sair, devolva a chave na portaria.

A família permitira que a maioria dos objetos pessoais continuasse a ornamentá-lo. O pequeno abajur, a cama de viúva, tudo está ali como se ali ela ainda estivesse. Caminho até a janela, tentando imprimir a mesma sensação que Janis tinha ao olhar através dela. A lembrança da cortina branca de renda bem fininha que o vento balança alegremente me acompanha, nítida, até hoje.

Com a ajuda prestimosa deles, consigo outro hotel. E, também auxiliado por eles, aviso à imigração que vou para outro endereço.

Despeço-me do hotel. Janis, adeus.

 

 

 
setembro, 2010