Quinhão

 

À mesa, como num tribunal

sob o juízo de nossa mãe

disputávamos, com fervor,

os melhores pedaços

da magra galinha.

 

As irmãs menores,

cada qual com suas asas,

balbuciavam qualquer coisa

de bom

voando entre os dentes.

 

O impasse era sempre

com as coxas.

Duas

para três admiradores.

 

Fora o confronto

tomei predileção

por peitos.

 

O que Freud explicaria

com a teoria das perdas.

 

 

 

 

 

 

Epitáfio a um antropófago

 

Aqui jaz

Hannibal Lecter

que ao devorá-los

juntou a fome

com a vontade

de comer.

 

 

 

 

 

 

As crenças infantis

 

Eu era menino como todos foram ou são

e sob as barras do manto

de Santa Tereza Justafé fui criado

 

— mudo de opinião.

 

Menino descozido de crenças

mas tradicionalmente religioso

(rezava aves e pais).

 

Trocava a água das flores

rosas brancas e encarnadas contrastavam

com o local lúgubre

onde o ranço de velas impregnava

as fotografias dos enfermos.

Tudo naquela casa se prostrava

aos pés de porcelana queimada

de Santa Tereza Justafé.

 

Vó Coralina antes de deixar morrer

o símbolo majesto

da matriarca que era,

tinha por desejo supremo

ser enterrada com a santa

 

— e foi.

 

Naquela mesma noite

arrebentaram-me a boca

pois como esperavam o consentimento

de um menino-anjo

achei que seria muito justo

que os mortos fossem enterrados

com seus mortos.

 

 

 

 

 

 

Poema do amor procurado

 

[ Canto para Jack Estripador ]

 

Decepo-lhe as mãos

E delas,

Dedo após dedo,

Procuro por debaixo de seus esmaltes

O vigor que finca suas arranhaduras

Na epiderme das paixões

E não está.

 

Na altura da bela omoplata

Entranho meus porquês

Como lascivo verme

No besuntado marzipã

— vosso pescoço —

E não encontro.

 

E persigo com ferramentas cirúrgicas,

Perito que sou em vasculhar as carnes

E, lanhando, toda ela, a transformo

Em rubra seringueira.

E devasso as ligaduras do baixo ventre,

Desencaixando e trazendo novas

Articulações aos ossos.

 

Como abutre meticuloso,

Fidelíssimo a cada odor.

E com garras de besta fera,

Devoro suas texturas

Feito urso no mel

E nada.

 

Mas após escarnar

Tocando na harpa de suas costelas

Dou-me conta do cálice de prata.

 

Pronto para sorver a tal delícia

Que tanto busco,

Foge de mim.

 

Volto então a procurar

Em outra.

 

 

 

 

 

 

Prece do amor a galope

 

Cabelos persuasivos que dilatam minha retina

e minhas gengivas se enchem de proezas.

Vem sobre a mente obesa do sumo dos beijos

vem sobre os coquetéis deixados,

largados,

distribuídos nos dedos com piche.

 

Alma de gente.

Galopa sobre os temperos

de alho e cominho

e escreve um poema de morte

que faça a ti e a mim

mais vivo que gente.

 

Desemborca essa gravata.

Masca teu orgulho.

Disseca com teu olho doente

um quadro qualquer na parede,

pois tens nas mãos a messe de um homem

enquanto comes o prato de tua comida.

 

Limpa o peixe.

Arranca as guelras.

Deixa as barbatanas para que os gatos voem.

 

Depois invade meus cabelos com dedos desajeitados

e absurdamente patriotas

pois hoje o mundo dá voltas.

 

Daremos sentido ao belo sujo de capim

e eu trago agora no peito um coração inconho e sentido.

 

Que os outros busquem o amor nos malmequeres

mas nós o laçaremos à cavalo.

 

E ter a certeza que o coração engana

mas encouraçá-lo com o amor das certezas.

 

E viver profundamente entregue às mesmices do amar

pois que o melhor do amor

são suas mesmices.

 

 

 

 

 

 

A bomba no homem

 

Protejo-a dos meus esgoelamentos

soldando os lábios em mig-mag

carnivorando todo ar cálido,

descomprimindo

as coisas que nos apaixonam por dentro.

 

Fissura-se

a menor

das menores partes do amor

em

estupor

e

estampir.

 

E o pino da granada

em nossas línguas.

 

 

 

 

 

 

Aperto de mão e paradigmas

 

Quem sabe não sejamos do mesmo insumo,

a peia entre o esmerilhar

                                   das palmas.

 

O pó de berilo e sal que se esparsa

no sopro de um cavalo.

 

Nem mesmo tenhamos o mesmo azul

                                                 de Aspen

ou do mar

              de Galvez.

 

Então

façamos o acordo das asas:

 

entre o eixo e a roda

 

e embora a queda e o tropel

 

aperte minha mão,

 

amigo.

 

 

 

 

 

 

Jesabel

 

O corpo serviçal

em negror de vivo mar

em tão abissal trejeita a pele.

 

A verve da língua

os tecidos cobrindo o betume.

 

Ofertam-te por tanto ouro

 

(...)

 

O que pouco importa aos cães

que a devoram.

 

 

 

 

 

 

Sobre espelho e sabonete

 

Com a réstia de sabonete ele escreve em seu abdômen

um nome que desencarde a podridão que agora escoa pelo ralo.

O espelho franco, que embaçado pelo vapor tenta esconder

o beijo leporino, mostra-lhe o homem limpo

de nariz assoado

cujas mãos alisam o rosto perpetuado

pela hereditariedade de seus pais.

 

Não se barbeará hoje.

Pois acredita que certas ofensas devem

ser nítidas e falhas.

Escova os dentes de segunda mão

com pasta que espuma demais.

Desconfiado lê o rótulo

e certifica-se que o modo de usar

não inclui giletes.

 

Escarra forçado.

Cospe

como se tivesse um marulho fervido em sua boca.

Se teatra com bicos e caretas e se vê pronto.

 

No mais, para o que vão pensar dele,

está cagando e andando.

 

 

[imagem ©pedro reis]

 

 

 

Flávio de Araújo é filho de uma família de pescadores da Praia do Sono, comunidade caiçara situada em Paraty (RJ). Durante a FLIP de 2008, trabalhava entregando marmitex, quando quase atropelou o poeta Benjamin Zephaniah. Desde então, deixou de atropelar escritores com acebolados e parmegianas, lançando Zangareio (Poesia), pelo Selo OFF FLIP. Participou da FLIPORTO - Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas - Pernambuco 2008 e do XIV Festival Internacional de Poesía de la Habana (Cuba) 2009. Bloga no Zangareio [ http://zangareio.zip.net ].