ROSA DOS VENTOS

 

impressionou-lhe a desnovidade que era a vida. até os dezoito anos pensava que cada ano e cada fase deveria ser marcada por músicas de bandas do momento, algumas modas ficariam, outras não, sonhava com o beijo de língua na boca de um namorado que pudesse chamar de seu, enquanto no céu brilhariam fogos de artifício durante a passagem de um velho ano novo. se dela dependesse, seus pais teriam o dom da eternidade, seu mundo de mentira continuaria a ser verdade, e não haveria perigo de andar livremente sem rumo, muito menos de pensar e agir diferente do que lhe impunham sem pudor. e ao mesmo tempo não sabia se a cíclica rosa dos ventos que era a vida lhe daria chances de criar outra oportunidade. sentiu como é fácil fazer das paredes de sua prisão doméstica braços que lhe acolhem num afago, quando tudo o que você mais deseja é se esconder de um medo cultuado feito fé cega. talvez porque todos agiam sincronicamente, previsivelmente camuflados em suas desesperanças, viu-se frágil taça de cristal, que emite belos sons quando nela se toca, mas sangra fácil a mão de quem a estilhaça. e o ar-matéria que tudo ocupa sufocou-a como se em profundo mar ela se afogasse, sugada pelo ventre que a quis de volta sem pedir permissão.

 

 

 

 

 

TEORIA DO CAOS

 

Outro aniversário na família enorme que mal se conhecia. Novamente as mesmas conversas (Como você cresceu!, Tá cursando faculdade?, Já tá namorando?, Quando casa?) e Jonas esparramado no sofá feito um abandonado saco de batatas. Toucinhos, cervejas geladas, arroz branco com creme de frango e farofa e de sobremesa brigadeiros. O chão acumulava migalhas que escapuliam dos pratos e os espetos requentados ainda torravam mais alguma coisa na churrasqueira de mil novecentos e tanto.

No quintal, o pagode continuava madrugada adentro. Na sala de estar, nenhuma companhia e o Corujão daquela noite em nada entretinha.

Horas depois, a segunda garrafa com aguardente estava pela metade. Dos amendoins comidos com desespero, sobraram apenas cascas. Ainda remoendo dor-de-cotovelo, devido à traição da ex, três meses atrás, Jonas recordou as declarações de amor que fazia por telefone pontualmente às 23 horas, antes que sua amada Janaína dormisse. "Eu te amo" durante 573 noites ininterruptas, todos desperdiçados e jogados na lata do lixo por aquela vaca!

Foi com um pequeno esforço que Jonas cambaleou de encontro à poltrona, ao lado do criado-mudo, e decidiu gastar todos os "Eu te amo" que ainda tinha: antes distribuí-los para estranhos do que ceder para quem não os merecia. Apossou-se do telefone, suspirou coragem e discou vários números aleatórios:

— Eu te amo.

— Ahn?!

(e desliga)

— Eu te amo.

— Seu filho da puta que me acordou!

(disca um novo número)

— Eu te amo.

— ?

(tu-tu-tu-tu)

Bárbara ficou olhando para o telefone. Como assim?!?, pensou. Não acredito que o Adrian fez isso! Sim, pois é, o Adrian, aquele moço que tentava conquistar Bárbara há alguns meses. Eu te amo. E desliga. Aquele tesão de macho que propôs fugirem no cruzeiro do Pacific amanhã, as oito da matina, acredita? Ela ainda tinha ficado meio assim-assim, mas para um homem ligar às cinco da madrugada depois de — na tarde do dia anterior — levar o terceiro "não" e ainda se declarar daquela forma, não era coisa à toa. Bárbara não se conteve: discou o número de Adrian e Você ainda me quer?, Quero, quero muito: desejo você mais que tudo!, Tô indo praí!

Não demorou dez minutos: Bárbara se arrumou e pôs o essencial em uma bolsa. Colocou a aliança sobre a mesinha de cabeceira e um bilhete sob a porta. Saiu de mansinho. Deixou seu ex-futuro-marido dormindo um sono de criança.

 

 

 

 

 

EVA

 

Sábio o homem que retratou a perda da virgindade da humanidade através da astúcia de uma mulher: Eva. E Deborah conhecia a Eva que existia dentro de cada um.

A traição é um desejo eminente: jamais cessa. Os problemas dos muitos casamentos que se desfaziam, e que Deborah bem sabia, resumiam-se em um só: o desastre de uma peça mal-ensaiada, onde homens e mulheres representavam papéis de coadjuvantes, sem nunca atuarem como protagonistas de uma atração principal. As mulheres então, coitadas, quantas Deborah não havia presenciado choramingarem por homens que não as mereciam? Noites em claro, desespero consumado, tudo porque não agiam conforme queriam.

Esposa-amiga-irmã-mãe-profissional e uma grande maioria esqueciam de exercer justamente o papel de putas. Sim, porque existe uma puta dentro de cada mulher: o problema é que o recalque, sabe-se lá por que, as impedem de explorar a derradeira vocação. Que chatice seria se Eva não tivesse oferecido a maçã para um desocupado Adão na vida! Culpam-na de ter desvirtuado Adão, mas se esquecem de que Adão escolheu comer a maçã e acredite: Eva deveria ser bem mais gostosa do que uma macieira in-tei-ra.

Felizes as mulheres que zelam pela puta que carregam consigo e que não têm medo de revelá-la no momento oportuno. Não é preciso ganhar dinheiro com o próprio corpo para serem putas: basta não ter o pudor de ser mulher. E muitas mulheres esquecem de ser mulheres para si mesmas. Há, inclusive, aquelas que carregam mais colhões do que muito macho por aí.

Prostitutas ganham pela profissão: putas todas as mulheres são por vocação. Depois reclamam dos maridos que pulam a cerca, pensou Deborah, enquanto vestia uma meia pink arrastão que comprara no dia anterior. Colocou um espelho no chão para ver melhor o efeito de baixo pra cima: tinha adorado uma abertura na meia, bem na entrada; assim, não precisaria usar calcinha e, numa simples levantada, cruzada ou abertura de pernas, garantiria a despensa por mais uma semana ou, quem sabe, alguma compra cara no shopping, sábado à noite. Com o cartão de crédito, claro, só por precaução.

 

 

 

 

 

23

 

O último guardanapo fora rabiscado até se rasgar. Naquela tarde, Roberto aguardava Letícia com um buquê de rosas vermelhas que estavam sobre a mesinha do café-bar. A roupa e o cabelo estavam impecáveis e não exagerou no cheiro de colônia para não incomodar. Ele era um sujeito meio franzino, branquelo, com olhos constantemente tristes e uma presença melancólica por vocação. Aquele tipo de pessoa que parece pedir desculpas pelo simples fato de existir.

No auge de seus vinte e três anos, Roberto finalmente tomara coragem para declarar seu amor por Letícia, a moça mais carismática que uma turma de faculdade poderia desejar. Com cabelos loiros e compridos, esbelta, de sorriso fácil e companhia agradável, Letícia sempre fora motivo de cobiça por muitos rapazes, mas para um só desejava se entregar.

Aquela máxima de que os opostos se atraem é verídica. Letícia conhecera Roberto na faculdade e ambos se tornaram muito próximos, tão próximos que gerou segurança suficiente para Roberto, finalmente, aproximar-se de uma garota. Ele não tinha corpo de Apolo: seu físico passava longe disso. A capacidade de conquistar alguém para si também era mínima. Parecia tão assexuado, que nem levando revistas eróticas para o banheiro, conseguira bater punheta durante toda a adolescência. Mas ele gostava de mulher, disso sabia. Depois de tanto tempo, pela primeira vez (por um desses milagres únicos que a vida nos proporciona) se aproximara de Letícia. Após um ano e meio de amizade, dias e noites pensando e repensando, tinha adquirido coragem para se declarar. Aquela era uma chance que Roberto não queria perder.

O tempo passava. Ao seu redor, mesas e cadeiras ganhavam vida através de intensas gargalhadas que denunciavam pseudo-alegrias, garçons andavam de um lado para outro em equilíbrio circense com suas bandejas e o repetitivo tilintar dos talheres parecia gongos que tornavam pública a humilhante solidão de Roberto. No meio de tudo aquilo, deteve o olhar na mosca que passeava pela borda da xícara com café que há pouco degustara. Sentiu afeição pelo inseto: ambos passavam despercebidos aos olhos alheios. Desejou ter a autonomia que a mosca tinha de voar pra onde quisesse. Mas serei sozinho por pouco tempo!, pensou. Sinto que Letícia gosta de mim, eu sei! Sinto isso de maneira forte e verdadeira como nunca senti antes, disse baixinho, fingindo crer em si, enquanto esboçava um criminoso sorriso.

Letícia queria muito conversar com Roberto. Algumas pessoas olhavam torto aquela dupla tão estranha, mas Letícia era indiferente aos comentários alheios. Havia uma confusão de sentimentos dentro dela e tudo o que mais precisava naquele momento era da companhia de Roberto. Confiava nele como até então não havia confiado em ninguém. Sentia-se à vontade ao lado dele e por isso marcara um encontro, à tardinha, naquele café-bar de sempre.

17h. Uma hora de atraso. O celular de Letícia não atendia. As rosas do buquê começavam a murchar. Roberto consumira três cafés e duas rosquinhas: comer e beber, além de funcionar como estratégia para mostrar-se ocupado, era a maneira que encontrara para tentar encarar os punitivos rostos ao seu redor.

Roberto sentiu-se murcho como as rosas que pouco a pouco apodreciam. Ela desconfiou! Talvez eu tenha dado pistas demais! Ela desconfiou que eu iria me declarar e fugiu! Fugiu porque não gostava de mim, não me amava... Ela fugiu..., pensou aflito, com mãos trêmulas e olhar evasivo. A réstia de esperança se despedaçou feito os vários guardanapos riscados e destruídos ao longo da ansiosa espera. Os raios de sol refletiam pouca claridade nas persianas das janelas e uma brisa morna acalentava aquela tarde estranha.

Droga de carro! Tinha que quebrar justo agora!, pensou Letícia chutando o pneu traseiro, enquanto vários veículos seguiam em frente. O celular descarregara e Letícia não conseguiu avisar a Roberto sobre o imprevisto que ocorrera. Por uma feliz coincidência, alguém estacionara logo atrás a fim de ajudá-la: era Thiago, um bonito rapaz da faculdade por quem Letícia suspirava à toa ultimamente.

Letícia bem que tentou ligar pelo celular de Thiago, mas o telefone de Roberto chamou, chamou e não atendeu. Lábios contraídos, testa franzida. Roberto vai compreender depois, sempre compreende, tentou se confortar. Letícia lamentou o fato de não ter conseguido conversar com seu amigo: há dias ela pretendia se declarar para Thiago, mas gostaria de ouvir de Roberto uma opinião que fosse, alguma boa ideia que pudesse ser colocada em prática. Não contava, porém, com o acaso que o destino lhe proporcionara.

O bendito pneu furado gerou tempo suficiente para Thiago e Letícia, ao conversarem, perceberem que o desejo era recíproco. Depois de mais alguns ajustes, Thiago deu por terminado o conserto e não tardou em convidar Letícia para uma saída logo mais à noitinha. Letícia, claro, não titubeou em aceitar: prolongariam a conversa em uma pizzaria e depois, quem sabe, alguma boate. Só preciso antes passar em casa, mesmo que isso demore um pouco. Maldito engarrafamento!, pensou Letícia sempre acompanhando Thiago pelo espelho retrovisor, enquanto dirigia a dez quilômetros por hora. Sorriu timidamente. Sentiu um arrepio gostoso, de quem acreditava que algo bom estava por vir. Thiago a seguia, em seu carro, logo atrás. Esperaria por Letícia o tempo necessário, mesmo com aquele trânsito caótico, mesmo que demorasse todo o tempo do mundo.

Lá na frente, sinal verde. Os carros, parados. Polícia tentando impor controle pra mostrar serviço, buzinas insistentes, discussões e o engarrafamento aumentava. Algumas testemunhas falaram que tinham visto, minutos atrás, um rapaz meio franzino e branquelo, agarrado a um buquê de rosas murchas, descendo a escada de um café-bar. Corria com desespero e assim atravessou a pista. O asfalto ganhara uma enorme mancha vermelha. A poucos metros dali, rente ao meio-fio, estavam registradas duas chamadas não atendidas em um celular.

 

 

 

[imagem ©cristina carriconde]

 

 

   

 

Fernanda Lym é escritora e pesquisadora. Formada em Letras pela Universidade Federal do Ceará, já ministrou palestras e oficinas sobre Criação Literária e mantém alguns de seus rascunhos guardados aqui: http://trans-fusoes.blogspot.com/. Twitter: @Fernanda_Lym