Rodrigo de Souza Leão – Rosane, o que lhe motivou a escrever livros?

 

Rosane Villela – Escrever livros, meu amigo, deve ter sido simplesmente a consequência de algo que eu sempre fiz: gostar de ler e escrever. Já em meu caderno de caligrafia, a repetição das letras não me chateava; ao contrário, ao perseguir a forma que eu considerava ser a mais próxima da ideal, naquele espaço onde deveria ser inserida, era uma conquista e um sentimento de prazer, quando eu sentia que tinha havido melhora. Mas aprendi, também, algo muito útil para a vida. O belo na minha caligrafia não era o mesmo que o belo de outras pessoas, nem vinha de um modelo que conseguiria ser seguido rigorosamente. Era independente e residia muito mais nas diferenças no que na própria e definida forma que eu pretendia alcançar, como cópia de um modelo a seguir que vinha para nos orientar em cada fonema. Deve ser por isso que encaro a literatura como algo além de cada escritor. Como se o escritor fosse, na realidade, apenas um fonema nas manifestações distintas das palavras, cujo caminho ele deve sentir como sendo o seu, único e com identidade, mesmo que com influências e contribuições outras que não a literatura, mas a pintura, a música, as artes em geral, assim como a própria vida e o mundo que naturalmente vem ao seu encontro.  

 

Quem sabe não foi a caligrafia a semente que plantou esse sentimento que me acompanha quando tento escrever algo até que o considere um bom trabalho, mesmo sabendo que outras infinitas possibilidades poderiam ser melhores? Quem sabe não foi ela que me trouxe a ideia de que a letra traz a possibilidade embutida do belo, mas que, na realidade, ninguém o atinge totalmente? Atrapalha? Penso que sim, no sentido de me deixar obsessiva em relação a rever e rever meus textos e, depois de algum tempo, ao retornar a eles — não apenas os inéditos, como os já publicados em livros e na internet —, analisar que determinadas mudanças deveriam ter ocorrido. Então, como posso ter dito que aprendi algo útil para a vida? Tomando a consciência das diferenças e das infinitas possibilidades da arte, que existem embutidas em cada fonema humano e no respeito à história de quando essa arte foi construída.

 

Acredito que a arte da escrita, misturada à dificuldade que sinto e ao prazer quando consigo concatenar a ideia a uma forma e a um conteúdo que diz respeito ao seu espaço, o da criação, tem muito disso. Magia pura no sentido de ser única e distinta para mim, como para cada pessoa, e magia também do tempo em que surgiu.  

 

Também, pode ser que muitas pessoas nunca gostem nem de lembrar desse caderno de caligrafia. Mas é essa lembrança a que ele me reporta. Ainda bem. Hoje em dia, muitas das escolas nem adotam esse tipo de exercício, e a escrita da maioria dos alunos virou garranchos, muitos deles além da órbita do mínimo entendimento. E o que pode isso significar, de repente, num preenchimento de um formulário ou ficha para um trabalho, sem o computador para ajudar? Qual a impressão que podem passar palavras das quais a compreensão precisa ser extraída por meio mais de adivinhações, presumindo até que nem elas podem advir?

 

Depois, veio a fase do diário, onde eu registrava alguns fatos e momentos de minha vida, assim como dava asas às páginas com o que observava ao meu redor. Vida e imaginação se alimentando juntas. Como sempre, eu creio, aliás. Não posso me esquecer, por exemplo, de que a música significou, com toda a certeza, um outro passo em direção à escrita. Pois, desde quando, aos seis anos, comecei a estudar o piano e a ouvir, extasiada, Beatriz, minha primeira professora de piano ler uma partitura e tocá-la todinha para me incentivar, eu ficava encantada pela magia de cada nota se juntar com outra e mais outra, até formar um conjunto de sons. Sons que, como as palavras, me levavam para um lugar onde eu me sentia livre para imaginar qualquer história. 

 

Esses fatores somados a uma mente divagadora como a minha devem, na realidade, ter convergido para aguçar a minha sensibilidade, fazendo-a explodir na forma da literatura, já que a música ficou para segundo plano quando eu, achando que estava espertamente pensando que iria, no vestibular, passar na segunda opção, a de música — por não ter estudado nadica de nada para a primeira opção, a de Letras —, me surpreendi com o resultado de que havia passado para Letras na PUC-RIO. Na época, a gente respeitava até a vontade do pai e, no meu caso, foi ele quem não aceitou a música como primeira opção, achando que eu viria a morrer de fome se dependesse dela. Eu me lembro que fiquei um tantão desolada, pois eu já me dedicava, com afinco, ao estudo do piano clássico, tendo, inclusive, pela Escola da Madalena Tagliaferro, me apresentado com mais uma aluna escolhida pela Escola em um concerto no Museu de Belas Artes, do Rio de Janeiro. Também me lembro da bronca da professora Dona Rosina de Barros por, envergonhada, eu ter escolhido ir para casa ao invés de esperar por ela. Soube, depois, que, dentre a plateia, um maestro alemão havia se interessado por minha performance. Fiquei frustrada? Na época, sim, lógico, mas é um sentimento que carrego hoje em dia, com, acredito, sabedoria, pois me ensinou que fugir não é o melhor caminho, nem quando a gente se sente, de repente, tímida ou envergonhada. Além disso, essa experiência me deu a possibilidade de entender que a verdade de uma vida nem sempre se encolhe, às vezes, nas próprias escolhas que fazemos quando nossos atos as desdizem. Várias outras podem aparecer quando têm de aparecer. Como se o destino de uma pessoa, mesmo que fosse o mais perto do retilíneo, fizesse curvas com algum propósito e nos levasse para lugares inimagináveis...

 

Com a ida para Letras, a música acabou ficando relegada, ainda que me acompanhasse de uma maneira menos dedicada já que começara a trabalhar logo no segundo ano de Letras como professora de inglês do Oxford e, depois, do IBEU. Ainda hoje, confesso que tenho vontade de retomar o estudo e treino da música clássica, pois, agora, depois de tantos anos, toco-a muito mal. Mas como tenho bom humor em minhas próprias críticas, me divirto com os erros e esquecimentos das notas, graças à maneira como encaro o que toco, pensando que, talvez (quem sabe aos 110 anos?), eu retorne a estudá-las. O bom é que também consigo tirar de ouvido algumas músicas para me consolar, achando até que estou sendo demaiisssss por conseguir ainda fazer isso. Haja humor! 

 

Tenho consciência de que a música ressoa nas palavras que me inspiram a escrever, com seus sons, conduzindo a partituras que, muitas das vezes, nem sei aonde querem me conduzir. Só sei que as vou seguindo e ouvindo, como força sonora que se iguala às notas de um instrumento. Palavras como notas, e o possível livro como uma partitura que me fazem tentar alcançar a sua melodia própria, sintonizada com a sensibilidade do momento e afinada com a vida. Assim eu sinto, assim é para mim, quando escrevo... 

 

 

RL – O que deve ter um livro para agradar as crianças?

 

RV – Rodrigo, o Apanhando a lua... é o meu primeiro livro direcionado a elas e confesso que, ao escrevê-lo, não pensei em agradá-las. Pensei em respeitá-las. Respeitá-las como leitoras, principalmente. Daí a minha procura da autenticidade da escrita, encarando-a como um trabalho sério de literatura. E também honesto comigo mesma. Acredito que eu não saberia escrever, se fosse para agradar esse ou aquele público. Antes de tudo, eu procuro me agradar, me respeitando, já que sou eu o meu primeiro leitor, aquele que caminha com as palavras do texto e pode ver nelas alguma possibilidade de encontro. O que não quer dizer, no entanto, que, quando escrevo para determinado público, eu dê as costas a ele. Como leitora de meu texto, tenho de ter a responsabilidade de me colocar no seu lugar, o de leitor. Para sentir que realmente pode haver a possibilidade de ele, também, se comunicar com o texto e, assim, processar o seu encontro. Afinal, de que adiantaria um texto sem comunicação, sem encontro?

 

Além disso, sua pergunta me reportou ao mundo adulto. O olhar da análise da agradabilidade de um determinado livro vem sempre do adulto que considera que, de um modo ou de outro, ele vai atrair as crianças. Não é que seja torta essa ideia; o caminho naturalmente é esse mesmo, mas é preciso estar atento de que é a partir desse domínio exclusivista que nasce o perigo. A criança pode ser vista como produto, assim como pode se converter em produto a escrita do autor. Uma pena. Vemos livros sendo publicados, muito bem elaborados, com ilustrações belíssimas, mas com textos fracos que não condizem com elas. Atrair pelo olhar é excelente, mas o bom mesmo seria que ilustração e texto caminhassem de maneira a fazer com que a criança ganhasse. Quando as ilustrações têm a missão (porque se torna uma missão para o ilustrador) de tornar um texto fraco um sucesso, quem perde é a criança, como leitor. A boa notícia é que, cada vez mais, há preocupação com a formação do leitor, com a boa literatura, e podemos ver no mercado livros belos e ricos em expressão visual e verbal. 

 

É importante, também, nunca nos esquecermos de que cada coração de criança é diferente e, por isso, elas não são seres previsíveis. Dependendo da maneira como são criadas e educadas, acostumadas ou não a ouvir histórias contadas pelos pais ou avós, com contingências de ambiente familiar e pessoal distintas, elas, como qualquer leitor, podem ou não gostar de uma determinada história, ainda que seja ela bem contada. Por isso, o que importa, no final das contas, é respeitá-las e não inseri-las em caixotes uniformes onde isso agrada e aquilo não.

 

Enfim, o que quero dizer em relação a sua pergunta é que realmente acredito que a fórmula para um livro agradar as crianças é não haver fórmulas e sim, uma consciência autoral e editorial de acertos, para que o livro se converta numa esperança de encontro. E encontro, na minha concepção, é "encantamento". Funciona desse jeito comigo. E, para as crianças, não creio ser diferente.

 

 

RL – Como foi o seu processo de criação em Apanhando a Lua...?

 

RV - Já disse e sei que você sabe muito bem que sou obsessiva em refazer o que escrevo sempre que sinto que a ideia, a forma e o conteúdo não estão maduros o suficiente e precisam ser mais trabalhados. Um pouco por causa da caligrafia que também me deu a noção da impossibilidade de se alcançar o belo, o perfeito, por mais que tentasse chegar perto dele pela multiplicidade de beleza que poderia existir ao seu redor... Essa sensação infantil me entranhou a compreensão de que a perfeição, em todos os sentidos, é algo muito além de nós, mas, ao mesmo tempo também me trouxe a significação da não-acomodação e nem das desculpas para não tentarmos chegar mais perto dela naquele determinado momento em que vivemos. Talvez por isso, eu não sinto angústia e nem apresso o resultado. E, também, talvez por essa aceitação, eu encontre, nesse meio tempo, outras histórias sobre as quais nem pensava escrever. Histórias inacabadas, guardadas em pasta, para onde, vez por outra, retorno para ver se há algum canal de comunicação desse meu eu-fonema humano com outros onde eu possa navegar em outro tempo meu.   

 

Acredito que o tempo da escrita não é o mesmo das personagens e das palavras que nos saltam; daí o meu sentimento de confiança quando constato que, depois de algum tempo, elas ainda insistem em permanecer unidas. Como uma letra de música que se encaixa na melodia ao invés de descaminhar se os compassos não se coadunam.

 

Outro detalhe: apesar de não me preocupar em estabelecer critérios quando escrevo, sei que existem. E sei que são diferentes para cada livro. É como se fosse uma contracorrente à fluidez da inventividade, um pisca-pisca num limite entre o factual, o ilusório, o inconsciente e o consciente. Essa mecânica trabalhando em mim e eu ao largo dela, somente zoiando, sabendo que ela existe, mas não me deixando ser pega pela sua rigidez tão lúcida... 

 

Sobre meu processo de criação no livro Apanhando a Lua..., ele iniciou-se com um desafio numa lista literária da qual eu participava, pela internet, a Avelós, a convite de Antonio Mariano, jornalista, poeta, escritor e, atualmente, o editor do suplemento literário Correio das Artes, do Jornal A União, da Paraíba. Foi a escritora Lucilene Machado quem enviou, para a lista, um poema de Murilo Mendes que homenageava Juan Miró, lançando o desafio de escrever inspirados num poema do Murilo ao quadro do Miró. Assim surgiu o meu poema intitulado, primeiramente, "Sol Vermelho", que depois viria a ser o poema-história "Ele Calçava Lâmpadas" na obra Ele Calçava Lâmpadas e Outras Histórias, quando a editora responsável pela Paulinas, Maria Alexandre de Oliveira, me ligou, sugerindo que todos os textos que eu enviara (a não ser um conto que foi negado), fizessem parte de uma única obra, ou seja, os poemas-histórias "Ele Calçava Lâmpadas", "Olhos que nos Espiam", "Um Pedido de Lágrima" e os contos "História Desejada"  e  "O Menino que Tinha o Mar Dentro de Si". Na realidade, a editora estava certa, já que todos os poemas e os contos falavam de histórias de três gerações; os avós, a mãe e os netos. 

 

A aceitação desse trabalho pelo Conselho Editorial foi em 06/07/2006, sem previsão de data do lançamento do livro, uma vez que o texto iria passar por um processo editorial, seguindo a ordem de entrada dos livros na editora. Mas a data não me preocupava. Eu estava muito feliz e sabia que era assim mesmo. No entanto, essa alegria, desde o começo em que pensei a obra como uma unidade, era sempre invadida por um sentimento de frustração, por nunca ter conseguido fazer um poema-história com a figura paterna, pela saudade do próprio pai, devido ao seu falecimento tão repentino e sem aviso prévio de doença nenhuma, a não ser o enfarto fulminante do mesentério. Uma dor da qual eu não conseguia ultrapassar por justamente ele ter sempre me incentivado tanto na literatura e não mais estar presente para dar as sua opiniões. 

 

Eu sentia que ele sempre gostava de ouvir os meus poemas e escritos e costumava dizer que eu tinha talento, que deveria ir em frente e dizia que eu era poeta. Sugeria também mais trabalho, mais reflexões, quando não gostava muito, daquele jeitinho dele, mineiro, com cuidado, mas preciso e consciente, para que eu não me chateasse, apontando até, em alguns lugares, onde seria melhor eu refletir. E, como essa ideia de não homenageá-lo me perseguia dia e noite, eu achava que ela brotaria, com certeza. O personagem pai tinha de estar presente e não me rendi ao insucesso de pensar nisso. Insisti e, como nada surgia, resolvi fazer, então, o que sempre faço: reler os escritos antigos. Foi assim que, numa crônica poética muito antiga, intitulada "Se Essa Rua, se Essa Rua...", me deparei com essa frase inicial: "A rua, que não é a minha, cola flores e gentileza de passarinho. Tem gosto de goiabada em tacho, tem adulto brincando, a gravata pendurada no varal, tem crianças catando luas verdes com dedos de jardim". PRONTO! As imagens da "gravata pendurada no varal", e a de "catar luas verdes com dedos de jardim" foram o gatilho de que eu precisava para retornar à infância na fazenda de meus pais, onde brincávamos de catar os vaga-lumes, e de homenageá-lo como mais um personagem do poema "Pássaros Azuis". Porque, na obra, assim que o pai chega à fazenda do próprio pai para pegar a filha para voltar à cidade com as férias escolares dela terminadas, ele, como um passarinho, pousa no varal, deixando nele a sua gravata, voa para o pai e a filha e os convida para catar juntos, os três, os vaga-lumes. Uma brincadeira que o avô nunca tinha feito com a neta e foi-lhe passada no encontro das três gerações, para que ela também pudesse colorir verde a sua história, cheia de tantas luas... Graças a Deus, esse poema-história foi aceito em 07/11/2006.

 

Depois, animada, enviei mais um poema-história "O Pescador de Histórias" e um conto, "A Velha e o Menino" e, depois, recebi outra ligação da Irmã Maria Alexandre, me propondo aceitar colocar esses dois trabalhos na mesma obra. Minha preocupação inicial foi com a unidade do livro, mas, ao conversar com a Irmã Maria Alexandre, ela me disse que "O Pescador de Histórias" entraria como uma epígrafe para a obra. Logo concordei, pois, era, realmente, em termos de literatura, um trabalho de metalinguagem que falava do envolvimento do escritor com a própria obra, em linguagem infantil, onde o personagem acena de um balão, e o outro personagem (no caso, o autor) pergunta quem ele é e tenta fazer com que ele não pule nem desapareça.

 

Pedi um tempo para pensar, para que eu pudesse sentir a obra, amarrando-a como gostaria e a Irmã Maria Alexandre me deu apenas dois dias para fazer isso. Varei os dias e as madrugadas, mas valeu a pena. Não apenas "A Velha e o Menino", como também mais três contos eu acrescentei, sendo eles "A Sombra e a Menina", A Dona dos Bobes nos Cabelos" e "As Bonecas". Porque senti que a costura da obra se mantinha unida pelo fio do afeto. E, mais animada ainda, e relendo novamente os meus textos, vi um poema que trabalhei novamente, para colocá-lo como introdução, para que ele se abrisse como um mundo de fantasia infinita que vale a pena entrar, para que a sensibilidade possa aflorar numa possibilidade da própria melhoria do ser e do estar no mundo. 

 

Tem uma folha,

um favo de mel,

um suspiro voando.

 

Tem um risco,

um fado de lua,

um nariz só olhando.

 

Tem até o até,

o além de tudo,

e o mais do mais...

 

 

Esse sentimento de costura, que senti como uma música que, regida em movimentos diversos, trazia uma sintonia única, foi, inclusive, para minha alegria, compartilhado pelo Tino Freitas e explicado numa resenha linda que ele fez sobre o meu livro, em seu blogue (clique aqui para lê-la), assim como também por uma grande amiga minha, a Marcia Cristina Silva, autora de diversos livros, entre eles infantis e juvenis, como O Colecionador de Segredos, editado pela Brinque-book; Violeta, da DCL e Olhos de Violino, da FTD, e que, como professora de inglês, trabalhou no IBEU, como eu. Mesmo depois de termos tomado caminhos diferentes, nos encontrávamos ou nos falávamos muito ao telefone. Mas, por incrível que pareça, quando foi lançado meu livro de poesia Navalha no Verso, ela nem sabia que eu gostava de escrever. Nem eu sabia que o mesmo acontecia com ela. E, então, um novo tipo de amizade, ligada à poesia, à literatura, foi sendo alimentado por nossos papos e trocas de opiniões.

 

Depois de ela ter lançado O Colecionador de Segredos, realmente imperdível, ela me perguntou se eu não tinha nada que servisse para o público infantil e juvenil. E eu sabia? Nunca me preocupei em escrever para determinado público... Mas foi ela, sim, quem me incentivou a pensar a possibilidade de um trabalho de uma obra infantil, no poema "Sol Vermelho", cujo título mudei para "Ele Calçava Lâmpadas", e em outros poemas meus, surgidos, um, como desafio do André Eicardo Aguiar na lista literária Avelós, que tinha a chuva como tema, pois ela não parava no Brasil inteirinho, tornando o dia tedioso tanto aqui no Rio, quanto lá na Paraíba onde ele morava; e o outro, elogiado por Antonio Mariano.

 

Quem diria que o poema, com o título que mantive na obra Ele Calçava Lâmpadas e Outras Histórias como "Olhos que nos Espiam" era assim:

 

A menina rastreva Deus naquele quadro

dizendo ser o pontinho azul o Seu começo.

 

"Veja bem: corre daqui como uma força aberta, não sente?"

 

(Resolvi ceder a sua imaginação, sorrindo).

 

"Assim não vale. Tem que acreditar".

 

E o deserto escapuliu-me...

 

e chegou-lhe de uma forma que eu não esperava. Mariano disse que meu poema "possuía uma atmosfera de mistério que muito me lembra um belíssimo poema de Apollinaire sobre o abismo. Vale a pena fazê-lo crescer mais do que é...". Exatamente o que minha amiga havia sugerido, mas como obra infanto-juvenil... 

 

Quando pedi a ele que me enviasse o poema, ele disse que tinha encontrado apenas esse fragmento abaixo no Livro da Tribo 2002/2003 (S. Paulo: Editora da Tribo).

 

— Aproxime-se do precipício.

— Não, vamos cair.

— Aproxime-se do precipício.

— Não, vamos cair.

 

Eles se aproximaram do precipício.

Ele a empurou e eles voaram.

 

Guillaume Apollinaire

(Roma, 1880 - Paris, 1918)

 

Como é bela a literatura e como ela nos surpreende por estar no além de cada um de nós! Senti o ritmo dos dois poemas e me deu vontade de compará-los (em vermelho os versos de Appolinaire), como se ouvisse música, comentando como era genial essa in(ter)ferência de escritos diversos, e brincando que Appolinaire havia soprado seu cachimbo nos meus ouvidos e eu não me tinha dado conta. Não é mesmo interessante, Rodrigo?

  

"Veja bem: corre daqui como uma força aberta, não sente?"

 — Aproxime-se do precipício.

 

 "Assim não vale. Tem que acreditar".

 — Aproxime-se do precipício.

 

 Eles se aproximaram do precipício. 

(Resolvi ceder a sua imaginação, sorrindo).

 

 Ele a empurrou e eles voaram.

 E o deserto escapuliu-me...

 

 

Agora, como esse poema foi acabar na obra Ele Calçava Lâmpadas e Outras Histórias como uma visita de crianças a um museu, onde um pontinho num quadro todo azul lembrava a Marcinha (o nome que dei à personagem dos poemas-histórias para homenagear e agradecer à amiga Márcia Cristina Silva pelo encantamento que a obra que eu produzia me trazia) o avô que morava no campo por lhe ter dado um lápis todinho azul, é outra história que está, assim como a literatura, muito além de mim ao mesmo tempo em que em mim, com a minha infância cheia de fantasia e histórias. Mas quem acabou recebendo a homenagem inesperada sobre o livro fui eu, ao receber, da amiga querida, essas palavras, num e-mail: "Finalmente encontro tempo e calma para falar sobre o seu belo livro. Peço inúmeras desculpas, mas quase enlouqueci no processo para entrada no Doutorado da UFRJ. Acabei passando, mas foi um sufoco, sofrido, muito, muito sofrido todo o processo. E no meio disso tudo eu ia cada dia lendo um capítulo de seu livro, e assim apanhando pedaços de sonho e poesia. Incrível, como aquele poema, que eu vi nascer tão sozinho de repente encontrou seus irmãos. Parece até que o livro foi escrito todo de uma só vez. Os seus contos-poemas interligados por finais sempre inesperados deram uma unidade impecável ao livro. Assim, você construiu um mundo recheado de afetos entrelaçados no meio das histórias. O afeto ronda suas palavras e nos abraça no final de cada capítulo.  No meio de muitos contos amigos de velhos tempos, encontrei duas surpresas: 'A Sombra e a Menina que me Encheu os Olhos de Jabuticaba' e 'Pássaros Azuis', que me levaram até a lua. Que bom que sua lua é sempre cheia".

 

Mas, voltando ao assunto do processo de criação do Apanhando a Lua..., depois da satisfação com a montagem do livro, veio a insatisfação com o título. Não mais eu conseguia sentir o título Ele Calçava Lâmpadas, por estar incorporado com tantos outros textos. Então, me lembrei do amigo Márcio Vassallo que, um dia, me havia dito que, muitas vezes, um bom título poderia estar no próprio texto que produzimos. Escancarado ou subentendido. Foi assim que, relendo o livro, o título Apanhando a Lua... escancarou-se ante meus olhos. Um título que tinha tudo a ver com o produzido, e também, com a sua atmosfera e intenção que apareceu por causa do meu conto "A Velha e o Menino", que tinha um trecho que falava de um menino que ficava num lago, tentando apanhar a lua, inspiração que veio quando, ao escrever essa história, me lembrei de um trecho de Gaston Bachelard, um dos livros de cabeceira que gosto de reler, chamado A Poética do Devaneio, me indicado por um grande amigo, escritor de Goiânia, Fausto Valle, conhecido há anos somente pela internet em listas literárias, assim como a Silvana Guimarães, nossa amiga em comum, e muitas outras pessoas que contribuíram, e muito, nas trocas de olhares sobre o que produzíamos. Hoje em dia, não participo de listas, mas volta e meia me comunico com muitos por e-mail. 

 

Para encerrar a minha resposta (quem mandou você me dizer para falar e falar muito?), lhe digo que o título foi aceito pela Paulinas, assim como a  publicação do livro, em 2008, com todos os trabalhos que enviei, montados do jeito que eu queria, graças a Deus, e sendo lançado, aqui no Rio, na Livraria Argumento, no Leblon. 

     

    

RL – Quem é o escritor de literatura infantil no nosso pais?

 

RV – Primeiramente, em minha opinião, é aquele que gosta de ser escritor de literatura infantil. Que se orgulha de sê-lo; que sabe de sua importância como mais um veículo para a aquisição de saberes e reflexões sobre o ser e estar no mundo; que se preocupa em ver na criança o leitor e o cidadão adulto do amanhã.

O escritor de literatura infantil é aquele que, muitas vezes, sabe que ganha muito quando consegue ter, entre suas dezenas de livros, somente um deles escolhido no coração de uma criança. É aquele que, continuamente, deve acarinhar o seu olhar infantil com honestidade, para que a verdade sempre transpareça em sua obra. A verdade infantil, que é a mais séria de todas...

 

O escritor de literatura infantil é aquele que se alimenta da esperança de que o Brasil encare com mais seriedade a educação, para que o acesso aos livros não seja apenas de uma parcela da população infantil. É aquele que conta com o mesmo dilema de qualquer escritor: querer sobreviver de seu ofício. E é, ainda, aquele que convive com o preconceito de que a literatura para crianças e para jovens é algo menor, preconceito esse que, mesmo em escala minimizada ultimamente, ainda persiste, infelizmente.

 

Enfim, o escritor de literatura infantil é aquele que encanta a criança, o jovem e o adulto quando, ao elaborar a sua literatura, a sente enquanto arte e, assim, consegue fazer um tipo de literatura que independe do público a que se dirige. Por isso, fiquei mesmo muito orgulhosa — não vou mentir —, quando o Bartolomeu Campos de Queirós escreveu um texto na orelha de meu livro, reconhecendo o tipo de escrita literária que persigo há tantos anos:

 

"Raros são os textos literários capazes de envolver o leitor por meio do inusitado. Desconhecer o destino conferido pelo autor a cada um de seus personagens e ser surpreendido pelo não previsível, é a qualidade maior de uma escrita. É na singularidade de cada momento que o texto nos envolve e nos encanta. A obra Apanhando a Lua…, de Rosane Villela, é um livro para todos os leitores como convém à literatura. Sua percepção refinada diante das nuances do mundo, somada a uma forma original de nos confidenciar, se juntam para inaugurar um tempo mais sensível no coração do leitor. Ler Apanhando a Lua... é permitir-se o luar".

 

 

RL – Quais são os escritores que fazem e fizeram a sua cabeça?

 

RV - Depois da coleção Mundo da Criança, que foi assim como uma espécie de desafio de leitura para mim quando criança — pois era um livro grandão de uma coleção grande, e me fazia sentir toda prosa por conseguir ler e entender — veio o Tesouro da Juventude e o prazer e o encantamento pelo Lobato, assim como por Hans Christian Andersen, Charles Perrault, Charles Dickens, Dumas. Quem, quando criança, não se encantou, não teve medo, não se aventurou, não sonhou com todas as histórias contadas por esses gênios da imaginação e da fantasia? E quem, mesmo adulto, quando as lê, ainda não se encanta?

 

A seguir, os romances de M. Delly, considerados na época como "literatura cor-de-rosa", publicados entre os anos de 1940 e 1960 pela Companhia Editora Nacional, de São Paulo. Minha mãe, leitora voraz de jornais, revistas e romances, sempre antenadíssima com as notícias, tinha comprado a coleção toda para mim e minha irmã, para que lêssemos os livros que ela nos deixaria ler e que estavam fazendo sucesso para as mocinhas que éramos. Os outros, mais picantes, para lermos mais tarde, segundo ela. Mal sabia ela que os líamos às escondidas também. Cansávamos de encapar livros dela com papel pardo subscritos com nomes de matérias, como Geografia, História, etc. Desconfio que ela sabia, mas nunca disse nada. E eu lia e suspirava, como toda menina-moça daquela época... Já li críticas ferozes contra a literatura considerada "cor-de-rosa", mas seria melhor não ler? Mesmo? Fosse o que fosse a coleção M. Delly, ela me fez ler, reler, sonhar, imaginar, e fantasiar, pois trazia, em si, o clima do conto-de-fada. Ponto para a coleção, que me fez querer ser mais leitora. Depois, eu me enjoei dela, só que enjoar não quer dizer renegar.

Teve uma época, também, em que eu devorei quase todos os livros de Pearl S. Buck, interessada em saber sobre a cultura chinesa; outra época, a obra de Jane Austen; e ainda houve a história com Agatha Christie. Meu irmão mais velho adorava e eu, curiosa, queria saber o porquê. O resultado foi que ela ganhou mais uma fã. Passei a ler junto com meu irmão e ficávamos discutindo quem tinha feito o quê na história, para ver quem tinha mais palpites sobre a trama. Depois, a partir daí ou mesmo concomitantemente, não me lembro bem, outras paragens de leitura. Érico Veríssimo, por exemplo, foi o escritor que, posso dizer, me cravou um punhal no coração e na cabeça no sentido de sua narrativa me pegar de jeito. Naquela época, Rodrigo, eu lia sem analisar nada e nem sabia que ele sabia o que estava fazendo. Maravilhoso, não é? Poder ler pelo simples prazer da história e de conhecer a cultura do nosso sul, e ler com vontade de ler mais, sentindo pena quando a história acabava. Essas são as sensações a que me reporto sempre quando falo de Érico Veríssimo. Também no livro Olhai os Lírios do Campo e muitos outros dele. Que contador de histórias ele era! Imagine que na trilogia de O Tempo e o Vento (O Continente, O Retrato e O Arquipélago) foi tal o meu envolvimento, que cheguei ao ponto de fazer uma árvore genealógica (que ainda guardo) dos Terra e dos Cambarás, já que a obra contava a saga das famílias num período, se não me engano, de 150 anos, para que eu pudesse me situar melhor. Não foi ele genial para me levar a isso?

 

E Guimarães Rosa? Lê-lo é, para mim, como ouvir jazz. Jazz sempre me soou como partituras diversas sendo tocadas ao mesmo tempo, mas com uma  vantagem: a da leitura subliminar de uma melodia que dialogam entre si harmonicamente. O mesmo com Guimarães... Tanta melodia sendo tocada numa única língua autoral, tão peculiar sua, que, insistida aos olhos do leitor, traz a harmonia da compreensão e da unidade, em poesia. Um espetáculo. Li primeiro os seus contos, depois, cheguei ao Grande Sertão: Veredas. Até hoje, vez por outra o releio, assim como aos contos, e sempre encontro algo novo que não havia percebido antes.

 

Escritores como Machado de Assis, Clarice Lispector, Drummond, João Cabral de Melo Neto, José J. Veiga, Graciliano Ramos, Shakespeare, Cecília Meirelles, Aníbal Machado, Thomas Mann, Dostoiëvski, Flaubert, Camus, William Faulkner, Fitzgerald, Khaled Hosseini, Cristóvão Tezza, Mia Couto, e outros. Mas não tenho nenhuma disciplina em leitura. Pego um livro que me desperta a curiosidade, por críticas que leio e escuto de amigos, e, se ele me conquista, sigo em frente; se não, deixo-o, um pouco de lado e, depois, o retomo. Acredito que, muitas vezes, estamos sem disposição para ler certos livros, por isso, gosto de retornar a eles. Surpresa, posso ver (ou não) que não era bem o que eu sentia. Também, vivo fazendo releituras, como nas obras de Adélia Prado, Cora Coralina, Manoel de Barros, Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Quintana, Marco Lucchesi. Sem me esquecer de você, sem bajulações, pois sabe que não sou disso. Seus poemas sempre tiveram a capacidade de me surpreender com os finais inesperados. Susto, choque, ternura, tudo junto numa expectativa de leitura que, no final, não se cumpre: surpreende. E o seu romance Todos os Cachorros são Azuis? Ele me trouxe aquele sentimento que consegui definir melhor para você do que ao telefone quando nos falamos, logo após ler a ótima resenha de Victor da Rosa no site Cronópios, em 26/10/2008, que me fez escrever um comentário espontâneo que reescrevo aqui, como uma forma de agradecimento ao espaço que está me dando nessa entrevista sua: 

 

"EXCELENTE a resenha de Victor de Rosa. Como já li a novela de Rodrigo, posso dizer que ele a dissecou com palavras certeiras: corte / esculpir a água. Tudo foge e o entorno que nos cerca em seu livro fica dentro de nós, o azul da sua vida lhe escapando e nos escapando também. Com a imagem do cachorro de pelúcia azul tão presente, e forte, e denso, e tão esparramado em nossas retinas. Um paradoxo entre presença fugidia e a ausência constante que nos persegue... Como o cachorro de pelúcia, azul, preso na sua memória (e na nossa), mas fugidio, pois memória que late como em bastidores... Imagem emblemática que persiste, delirante e real ao mesmo tempo, nos fazendo co-autores e partícipes da história. Ao autor, resta o meu brinde: Rodrigo, isso é que é livro bem escrito! No delírio? Alucinação? Na memória? Que voz inventiva sua é aquela que ouve não ouvindo, tão certeira em literaridade? Parabéns!".

 

Enfim, para falar de mais leituras, por conta de eu estar envolvida com a literatura infantil e juvenil, tenho lido muito autores ligados a ela, tais como o Bartolomeu Campos de Queirós, Lygia Bojunga, Márcio Vassallo, Ana Maria Machado, Raquel de Queirós, Tatiana Belinky, Ziraldo, Roseana Murray, Marina Colasanti, Affonso Romano de Sant'Anna, e outros, como o Elias José, cuja obra tive de ler quase toda, por causa de uma homenagem que me coube fazer a ele, in memoriam, no Congresso de Leitura (COLE), da UNICAMP, no dia 20/07/2009. Cabe-me aqui reforçar que esses autores, na realidade, deveriam ser lidos pelos adultos; com certeza os fariam rever a sua percepção do que é, definitivamente, a literatura infantil e juvenil.

 

 

RL – Toda literatura é invenção?

 

RV – Para ser literatura, meu amigo, tem de haver invenção. Mas nem toda invenção é literatura. Muitas vezes persegue-se a invenção e se cai na invencionice, porque as pontas da originalidade da ideia, quando atadas, perdem-se na qualidade literária da forma e do conteúdo.

 

Acredito que tudo já foi dito e escrito. O que se muda é a maneira como o assunto é abordado. E isso é que faz a diferença para um texto ser considerado como literatura. Se essa maneira, que aborda a forma e conteúdo do texto, chega ao leitor de um jeito que o surpreenda, o agrade e o acrescente, então, penso que a sua literatura é invenção, pois, enquanto arte, se expandiu, manifestando-se fora de si mesma no outro.

 

Invenção, para mim, é essa capacidade da obra extrapolar seus limites e permanecer no tempo. Quer autor mais inventivo do que Machado de Assis, que colocou um morto a narrar a sua vida?

 

 

RL - Como é fazer parte do grupo "Letra Falante"?

 

RV – É discutir sobre a literatura infantil e juvenil. Abrir possibilidades de encontros na área de literatura. Debruçar sobre as obras através de sua leitura e a de textos teóricos. Elaborar resenhas e discutir sobre elas, na troca dos olhares diferenciados. É também saber conviver, repartir, ultrapassar diferenças que surjam, compartilhar semelhanças. E, finalmente, torcer pelo grupo como um todo e querer que cada um se sobressaia em sua individualidade. Para mim, é isso.

 

 

RL – Você é poeta? Qual a diferença entre seu texto poético e sua prosa?

 

RV - Não sei qual a diferença entre meu texto poético e minha prosa, pois acho que o meu olhar é o mesmo, a minha sensibilidade também. Fazer prosa não implica em fazer com que mude a maneira de eu ver o mundo. O olhar é o mesmo. Na realidade, é o exercício desse olhar que muda no sentido do referencial, ou seja, do gênero em que repousa a escrita. Então, penso que a diferença fica mais na forma do que no conteúdo. Tem poemas escritos que podem ser desenvolvidos como prosa, e prosa que também tem a possibilidade de virar belos poemas. Eu mesma gosto desse tipo de exercício. Muitas vezes, um verso que se desenrola num poema, depois que o esqueço, entra em alguma prosa que escrevo, sem nem mesmo ter pedido licença. Ele simplesmente aparece e o seu lugar, na prosa, fica mais certeiro, como se à prosa pertencesse mais do que ao poema. E eu sei escutar isso. Então, fica difícil responder a essa pergunta. Às vezes o tempo espaça tanto as certezas da gente que, no final das contas, nem cabe mesmo saber se realmente as temos. Esse poder não nos cabe, nem a ninguém, creio eu, mas quem sabe ler, ouvir, refletir de mente e coração abertos, deve levar uma certa vantagem sobre outras, que se limitam mais a um tipo apenas de literatura, seja por preferências, por trabalho, ou qualquer outro motivo. Tem livros escritos de maneira que eu não faria, que me instigam e me intrigam ao mesmo tempo. Pois questionam minhas certezas do fazer literário, abre as porteiras da curiosidade (mesmo que eu não goste), e eu acho isso muito bom. Não ter certeza de nada porque, de repente, um livro nos dá uma rasteira e nos coloca a refletir sobre ele. Cioran, por exemplo, talvez por não conhecê-lo bem e estar curiosa, não é o meu preferido, mas ele me faz ver algumas coisas de um outro ângulo. Penso que precisaria de mais informações para entendê-lo melhor e acho isso bom. Vou seguindo a leitura, curiosa, tentando entender, sem saber totalmente, o que deixa um vazio cheio de alguma possibilidade, quem sabe, futura, de um retorno onde eu, mais madura, possa me aprofundar mais. Gosto dessa noção de mais flexibilidade e mais disponibilidade para querer entender o outro. No fundo, a certeza na literatura cabe mais a ela própria e ao cerco das palavras que ela nos impinge e que apenas ela sabe nos manejar.

 

 

RL – Como foi que conseguiu publicar por uma das melhores editoras do mercado infanto-juvenil? Em que trabalha no momento?

 

RV – Com muita persistência. Sempre enviando meus trabalhos e recebendo os nãos de praxe, mas acreditando que, um dia, meus textos sairiam por uma boa editora. Como saiu o primeiro livro de poesia, Navalha no verso, em 2000, pela 7Letras, um bom começo do qual nunca me esqueço, pois me incentivou a continuar escrevendo e a persistir na fé e na certeza de que, tendo sido meu trabalho publicado por uma editora de nome como a 7Letras, era porque um bom trabalho eu conseguia desenvolver. Depois, prossegui na procura de editoras e, nessa procura, Apanhando a Lua... foi editado pela Paulinas, em 2008. Para minha grande alegria, ele foi selecionado para estar entre as amostras dos livros brasileiros publicados em 2008 (que são avaliados por uma comissão formada por 33 especialistas em literatura infantil e juvenil de vários estados brasileiros), para fazer parte do catálogo da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) para a 46ª Feira de Bolonha, na Itália. Os aprovados são organizados em um catálogo em inglês, distribuído durante o evento e que serve como cartão de visitas da nossa produção. E há outra obra, Menina-menina, Princesa de Lama, já aprovada pela Paulinas, para edição que espero, seja o mais breve possível. Assim foi que construí e sigo construindo — lentamente, infelizmente —, as beiradas de um fazer literário que já me acompanha há tantos anos...

 

No momento, trabalho em vários projetos. Também em parceria com a Editora Paulinas, que me apoiou, estou concorrendo ao Programa Petrobrás Cultural 2008/2009. Além disso, há mais três livros infantis e juvenis prontos para ser enviados às editoras. Um livro de contos, mais para o público jovem ou adulto, e um de poesia antigo, o Licor de Linho, que meus amigos me cobram a publicação também. Como mexi tanto nele, penso que devo retomá-lo novamente, para ver se não cheguei a desfigurá-lo. Enfim, tenho muitos escritos, dispersos, e até um trabalho que intitulei Desabafo Laboratorial, sobre o qual, de início, pensei como uma possibilidade de um blogue, feito com o propósito de escrever todos os dias como você pode ver na apresentação que serviria como sua introdução: "O desabafo laboratorial é feito com o intento de brincar de literatura. Quando não consigo produzir nada que vá adiante, ou quando não estou a fim de me prender a gêneros — se é que alguma escrita sã, hoje em dia, consegue totalmente se prender a eles. Brincando, eu me desculpo da falta ou incapacidade da escrita, e expurgo a sensação de desconforto que tal falta me produz. Terapia pura, na realidade. Algumas vezes, essa falta me ama; outras, nem tanto, mas me dão a oportunidade de deixar registrado o momento. Nunca cheguei a pensar em aproveitá-lo, se bem que poderia ser uma boa idéia, não é mesmo? Bem, aí vão os meus pulos". Não foi adiante a ideia. Como não tenho paciência para mexer na internet (e nem sei), esses pulos estão boiando, por enquanto, na minha telinha.

 

 

RL – Você tem alguma frase que a acompanhe pela vida? Fale sobre ela?

 

RV – Tenho sim, uma bem comum, mais muito eficiente, pelo menos para mim: "O humor salva". Com humor, não se perdem os instantes, pois a disponibilidade de encontro com o que quer que seja fica mais aberta e, portanto, mais fluida. A gente vive melhor. É preciso muito humor nesse nosso mundo cão, onde há tanta injustiça, fome, miséria, falta de gentileza e educação, violência, corrupção, e crianças morrendo num estalar de dedos. Aliás, por conta desse sentimento, escrevi nesse blogue que nunca existiu, o seguinte:  "E a roda escorre e pisa como se pisasse em um vagabundo que dorme na esquina, ladrilhado por seus trilhos sem saída. E na roda morre o cão, quando um pedaço de carne lhe mastiga a boca vermelha. Morrem o cão, o vagabundo, morrem as lágrimas dos nãos. Só a roda é viva. Escorre. Pisa. E vai...". E aí? Como dizer que o humor pode salvar num escrito como esse? Com certeza, na disponibilidade que o humor propicia na abertura para o encontro com os sentimentos, para a abertura do trinco que nos desumaniza tantas vezes pelo que presenciamos...

 


RL - Qual o papel do escritor na sociedade?

 

RV - Escrever, escrever, e escrever, tentando fazer com que a sua obra traga a universalidade da humanidade, com valores atemporais e, se possível, reflexivos que se incorporem ou contribuam no que o próprio leitor já tem dentro de si.

 

 

 

[Entrevista realizada em junho de 2009]

 

 

 

outubro, 2009
 
 
 
 
 
 

 

Rosane Villela (Rio de Janeiro-RJ, 1953). Formada em Letras pela PUC-Rio. Publicou Navalha no verso (Rio de Janeiro: 7Letras, 2000) e Apanhando a lua... (Rio de Janeiro: Editora Paulinas, 2008). É membro e uma das fundadoras do blogue Letra Falante, criado em 2007, de discussão de literatura infantil, do grupo do curso avançado de Ninfa Parreira, na Estação das Letras, de Suzana Vargas, onde fez também vários outros cursos. É autora do ensaio "Bartolomeu e o Caminho do Meio", sobre o livro O olho de vidro de meu avô, de Bartolomeu Campos de Queirós, publicado pela Zunái — Revista de Poesia e Debates, em 2008. Tem contos e poemas publicados em revistas e sites literários.
 
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Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista, músico, poeta. Autor do livro de poemas Há flores na pele e Todos os cachorros são azuis (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008), entre outros. Participou da antologia Na virada do século — poesia de invenção no Brasil (São Paulo: Editora Landy, 2002). Foi co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Editou o blogue Lowcura. Morreu no Rio de Janeiro, em 2 de julho de 2009.

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